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| Foto: Ana Branco/Agência O Globo
  • Biografia:JK e a Ditadura. Carlos Heitor Cony. Objetiva, 240 págs., R$ 39,90

Os passeios na Lagoa acabaram: um câncer linfático crônico, considerado terminal há 11 anos, e que afetou a força de suas pernas, o obrigam a passeios modestos, dentro de casa, com fisioterapeutas. Mas quando vai à rua, na condição de cadeirante, Carlos Heitor Cony, 86 anos, não vê limites: viaja para palestras, vai a Nova York e visita o Marco Zero, e não descarta futuras viagens de navio. Fumante de quatro charutos por dia, lê, escreve suas crônicas para a Folha de S. Paulo e participa de debates matinais com Arthur Xexéo na CBN. Há um ano não vai à Academia Brasileira de Letras e não pretende voltar à ficção, como tantos fãs esperam. O que não o impede de dissertar, horas seguidas, sobre o relançamento de Memorial do Exílio(Bloch editores, 1982), com novo título, JK e a Ditadura, agora pela Editora Objetiva. Afiado, o ceticismo de sempre dá espaço aos sorrisos entre o diabólico e o abençoado que o tornam uma das figuras mais carismáticas da literatura brasileira.

Por ser uma espécie de autobiografia em terceira pessoa, JK e a Ditadura, reedição de Memorial do Exílio (1982), é carente de um viés crítico. Ele existe?

Deveria ser o terceiro volume de sua autobiografia, mas ele morreu. Sim, tenho minhas restrições a Juscelino, em que pese o carinho e a admiração por sua obra. Ele se vendeu como democrata irredutível, mas pressionava o Congresso. Por exemplo, quando pediu licença para processar Carlos Lacerda por vazar informações do Itamaraty, jogou pesado para cima da Câmara na intenção de cassar o adversário. Não conseguiu. Mas comprou voto, constrangeu a imprensa, o diabo a quatro, como todo mundo faz, na base do fisiologismo. Politicamente, errou feio ao apoiar Carlos Castelo Branco em troca da promessa de respeitar o pleito de 1965, o que não aconteceu. A jogada de mestre teria sido renunciar à candidatura em favor do [general Eurico Gaspar] Dutra, um pessedista de 90 anos que estava na lista dos preferidos pelos militares e lhe era leal. Dutra ia corrigir os rumos e acalmar os radicais. Uma vez ele me perguntou onde foi que pegou a curva errada e eu disse isso.

Mas isso seria suficiente para neutralizar a hidra da ditadura?

Seria a chance de evitar um quadro tão violento. Além disso, uma falta menos grave: JK mentia sobre a idade. Dizia, no primeiro volume das memórias, que nasceu em Diamantina na Rua Direita no sobrado de seu pai em 1902. Tenho a certidão de nascimento: o ano correto é 1900. O então repórter Roberto Muggiati chegou a ser demitido por ter publicado na Manchete a idade certa: JK reclamou com Adolpho Bloch. Interferi a seu favor e Muggiati acabou "exilado" atrás de uma coluna da redação. Dois anos depois, virou diretor da revista.

E o aspecto programático?

A questão de JK sempre foi mesmo a indústria. Getúlio Vargas fez legislação trabalhista sem um tiro e a sociedade, inclusive o empresariado, aceitou. Mas Getúlio não menciona a questão da terra. Se mexesse na terra, seria deposto. JK também foi avesso a esta questão. Mas, com o que fez, transformou a sociedade brasileira e a levou a outro patamar.

Em 1968, você foi preso na mesma leva que deteve JK. O que guarda desse episódio?

Foi na noite de 3 de dezembro, até depois do carnaval. Três meses. Quando fui sequestrado, ouvi que naquela noite iam fuzilar JK. Incomunicável, acreditei, aquele tempo todo, que havia um paredão. Não fui torturado, mas em muitas noites vomitei ao ouvir os berros e pancadas das outras celas. Fiquei numa cela miserável, com um cano de água, que usava para escovar os dentes, e um vaso sanitário. Esta foi a segunda prisão. No total, foram seis. Em 1965, quando ainda havia legalidade, fui processado por [Artur da] Costa e Silva, que, pela Lei de Segurança Nacional, queria me botar 30 anos em cana. O STF transferiu para Lei de Imprensa e peguei seis meses. Cumpri três: foi a única vez na vida que tive bom comportamento. Os militares ainda eram educados. Invoquei a convenção de Genebra e a comida melhorou, ganhei banho de sol e lençóis, e, no Natal um coronel nos mandou presunto, peru, vinho, farofa e castanhas, da casa do comandante.

Por que sua aversão a livros inéditos de ficção? Você desistiu?

Olha, com Pilatos, livro da década de 70, eu disse tudo o que queria dizer. Thomas Mann, depois de escrever Doutor Fausto pensou não escrever mais. E disse: infelizmente, vivi mais que minha obra. Teve que escrever ainda três ou quatro livros, tudo porcaria, pois precisava de dinheiro. Quando fiz Pilatos foi isso: fiquei 23 anos sem escrever. Aí veio o computador, e a doença de minha cadela Mila, eu escrevi para suportar o sofrimento de ouvir seus gemidos.

Quase Memória não é bom?

É um desabafo. O que escrevi depois foi por pura pressão comercial. Nada desse período interessa.

Como é sua rotina hoje?

Tenho um câncer linfático e estou em estado terminal há 11 anos. É o mesmo câncer da Dilma e do [ator Reynaldo] Gianecchini. Não perdi o cabelo, mas o tratamento enfraqueceu minhas pernas. O câncer, porém, não é mais a tal da insidiosa moléstia. Todo mundo por aí tem um. A Hebe, a Ana Maria Braga, todos os líderes do Cone Sul, Lula, Fidel, Chavez, Cristina! Há 12 dias não saio de casa. Meses atrás fui a Nova York. Para visitar os museus, ser cadeirante é bom: fui tratado como príncipe, uma maravilha. No Marco Zero me puseram de cuecas para entrar.

Em JK e a Ditadura você diz que, com a Frente Ampla, JK, [Carlos] Lacerda e Jango [João Goulart] provaram, tardiamente, que a humanidade pode ser melhor desde que cada homem procure, no outro, o seu melhor. Você acredita nisso? precisamos de homens cordiais, como JK?

Não. Em O Ventre, aos 32 anos, eu digo que só creio naquilo que pode ser atingido pelo meu cuspe. Como disse no meu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, não tenho convicções firmes para ser de direita, disciplina para ser de esquerda nem a imobilidade do centro, que é oportunista. Sou um anarquista inofensivo.

A Academia foi uma concessão, em vistas desse ceticismo?

Entrei com 74 anos, idade em que morreu o JK. Desde 1964 já me haviam convidado. Acabaram me convencendo num movimento para legitimar a candidatura paralela, para outra vaga, de Roberto Campos, que até o Celso Furtado queria. Acabei cedendo, sob a condição de não fazer campanha. A Academia é um ambiente de cordialidade. Resumindo, porém, eu diria que é uma espécie de jardim de infância às avessas. No jardim de infância você não tem passado mas um futuro o espera, com relações novas e amigos vindouros. Na academia, não temos futuro. Temos todos um passado, se é que temos, bom, brilhante ou medíocre, mas 90% dos que lá estão não têm mais nada para fazer na vida. O futuro é o mausoléu.

Você tem medo da morte?

Não, a não ser do ritual da morte. Não quero velório. Nem quero ir para o mausoléu da academia. Serei cremado. Toda a liturgia da morte hoje é uma contrafação, fria, impessoal. Já conquistei o que queria. Só me resta o Nobel e a morte. Como o Nobel não virá...

Você gostaria de ganhar o Nobel?

Não recusaria, como Sartre, que ficou enciumado com Camus. Aceitaria sem grande sofrimento.

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