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Sting: sem dom para as rimas | Arquivo Gazeta do Povo
Sting: sem dom para as rimas| Foto: Arquivo Gazeta do Povo

Emma Bovary, a personagem mais conhecida de Gustave Flaubert, é condenada pela sociedade burguesa do século 19 da qual também é fruto: filha de um fazendeiro abastado, Sr. Rouault, ela é enviada para um colégio de freiras aos 13 anos onde recebe uma educação religiosa que, no início, lhe agrada. Aprende também a desenhar e se dedica principalmente à leitura de romances para moças, muito românticos, introduzidos clandestinamente no colégio.

Quando está para sair do convento, as freiras percebem que a religião já não lhe interessa mais. Na verdade, Emma sonhava com uma vida exaltada, mas atingiria esse objetivo não mais através dos ideais da igreja, e sim através de um amor que a levasse a viver um estado novo, grandioso, e é essa ansiedade e essa busca que vão habitar a personagem ao longo do romance. Ela precisava encontrar no amor romântico um sentido para sua vida.

Charles Bovary, um médico de província, aparece na vida de Emma quando vai cuidar do pai da moça na fazenda. Esse casamento vai significar duas coisas muito diferentes para ambos: para Charles, Emma era um grande trunfo: uma mulher educada, jovem, bonita, capaz de conduzir a casa e cuidar do marido. Orgulhava-se dos desenhos que ela fazia e estava contente "em possuir uma mulher como ela". Para Emma, Charles é uma grande decepção: "sua vida de casada é plana como uma calçada". No início, ela se distrai organizando a casa e tornando o ambiente mais refinado.

No entanto, ela não entende como vai amar Charles: ele é monótono, conta sempre o dia que teve da mesma maneira; ela o considera medíocre e sem imaginação. E o que os romances haviam descrito, como ela iria vivenciar aquelas promessas? O amor, para ela, é então essa construção abstrata, independente do seu cotidiano. Emma acredita nesse "valor supremo" que poderá modificar a sua vida. Mas não só nele. Existe também um modo de viver que vai elevar sua existência: o refinamento de hábitos que ela quer copiar dos aristocratas para dar sentido à sua vida. Todos os detalhes da casa tomam seu tempo: a forma de servir as geléias, de arrumar a mesa, de enviar a correspondência aos doentes do marido, de arrumar um vaso de flores. A sogra não entende por que se gasta tanto açúcar, vela e lenha naquela casa. Percebe logo que Emma é uma perdulária e não consegue se entender bem com ela.

Mas nem a vida doméstica e nem a maternidade – ela tem uma filha chamada Berthe – vão suprir sua ansiedade, seu vazio. Madame Bovary vai depositar, então, na figura dos dois amantes que encontra – apenas dois e não uma legião – toda essa necessidade de transcendência que ela não entende bem, mas da qual precisa para sobreviver. O primeiro é Rodolphe por quem se apaixona perdidamente e com quem planeja fugir e recomeçar uma vida diferente. Mas Rodolphe já se divertiu o bastante e não está em seus planos viver com Emma. Ele a abandona e ela adoece gravemente. Léon, ao contrário, está fascinado por ela no início: "Ele admirava a exaltação da sua alma e as rendas da sua saia. Afinal, não era ela uma mulher do mundo e uma mulher casada? Uma verdadeira amante enfim?"

Não se pode esquecer que Flaubert era um grande leitor de Balzac e que um dos grandes temas do autor da Comédia Humana é a valorização da relação amorosa com uma mulher casada, em que há sofrimento, sacrifício e também muito desejo envolvido. No entanto, Léon também acaba se afastando porque Emma exige demais do seu amante, concentra toda a sua força em viver essa história com ele, um jovem que não quer se comprometer. Além disso, Emma vai se tornando uma mulher cada vez mais luxuosa, o que a leva a fazer despesas imensas. Suas dívidas crescem e ela se torna refém de um agiota. Para pagar suas dívidas pede ajuda a Léon e até mesmo a Rodolphe. Mas ambos declinam. Arruinada, Emma tem apenas seu corpo a vender, o que ela não faz ao enfrentar o homem que a pode salvar da ruína. É quando ela pronuncia a famosa frase do romance que prefiro citar em francês para não perdermos a sua força: "Je suis à plaindre, mais pas à vendre!" ("Estou numa situação lamentável, patética, mas não estou à venda!"). Depois disso, não há mais volta e ela decide então se envenenar, reconhecendo que nunca tinha valorizado o único homem que a amava, seu próprio marido.

Emma se mata porque não há mais nada capaz de tomar o lugar dessa idealização do amor que ela construiu durante toda a sua vida. O amor idealizado e não correspondido acaba por destruí-la. Ela o idealiza também na medida em que é incapaz de aceitar o forte desejo sexual por seus amantes, desvinculado de um sentimento superior. Não é ainda permitido à mulher do século 19 apenas desejar. E desejar fora do casamento é ainda mais grave. Essas eram as regras para se manter o casamento burguês, regras essas que recaíam sobre a mulher. Pois, para o homem, tudo sempre foi permitido: o amor, o desejo, o sexo vinculado ou não ao sentimento, seja com a mulher, seja com suas amantes. Qualquer modalidade estava à sua disposição desde que o casamento fosse mantido. Basta lembrar outro romance escrito por Flaubert, A Educação Sentimental, em que o herói, Frédéric Moreau, se apaixona por uma mulher casada, liga-se a outras mulheres, não se compromete com ninguém e nem com as lutas políticas do seu tempo, pois há uma desilusão geral no que diz respeito aos anseios coletivos da sociedade, imperam os valores de uma burguesia cada vez mais forte sob Napoleão III, após a frustrada revolução de 1848. Mas nada do que Moreau faz merece ser punido pela sociedade. Ele amadurece na indiferença dos sentimentos e fazendo o que bem entende. Um personagem machadiano, um Conselheiro Ayres à francesa. Já para Emma, a punição é a regra e para Flaubert também, já que é levado aos tribunais pelo escândalo que o livro representa para a sociedade da época.

Flaubert se dedica a Emma Bovary por um período de cinco anos. Sua relação com a personagem não é nada fácil: ele havia acabado de escrever a primeira das três versões de um texto longo intitulado Tentação de Santo Antônio, uma espécie de romance lírico e místico. Pede a alguns amigos que escutem o texto em sessões de leitura em sua casa, porém a sua frustração é grande ao ver que eles reagem mal à obra, dizendo que ele trata ali de temas vagos, difusos e que deveria procurar criar uma história como as que escreve Balzac quando retrata a vida burguesa. Deveria encontrar um tema em que o lirismo fosse tão ridículo que ele seria obrigado a se controlar. Flaubert teria se convencido e teria se baseado num fait divers, uma notícia curta de jornal em que se contam fatos bizarros para criar Emma: uma mulher mal casada, que teve amantes, se suicida por envenenamento, deixando marido e filha.

Mas aí começa o drama de Flaubert: o mundo burguês o irrita, os detalhes da vida de Emma o aborrecem, tem dificuldade em criar diálogos triviais. Mas quer fazer essa árdua tarefa de forma diversa de Balzac; nega-se a fazer reflexões e comentários e procura uma precisão e uma objetividade que fazem seu trabalho com a linguagem se tornar uma obsessão, evitando ainda repetições. Ele próprio diz que Balzac poderia ter sido um grande escritor se trabalhasse melhor a linguagem e não fosse tão entusiasta e presente em suas narrativas. O projeto de Flaubert é outro: ele quer que o leitor sinta quase que materialmente aquilo que reproduz, que viva o movimento interior de Emma ao esperar com ansiedade Léon no hotel e que perceba como ela se esforça para tratar bem o marido ao voltar para casa, compensando-o pela traição. Sem julgamento de valor, sem explicações sociais ou psicológicas.

Para terminar, gostaria ainda de comentar como os leitores recebem Emma Bovary. Poderíamos dizer que há basicamente dois tipos distintos: os que se identificam com ela e percebem que sua busca de amor é como "uma orgia perpétua", para citar uma expressão de um leitor apaixonado, Mario Vargas Llosa. Para outros, Emma é uma mulher egoísta, deslumbrada, que não vê valor no mundo que a cerca e, muitas vezes, esses leitores se comovem com o verdadeiro herói do romance, Charles Bovary, seu marido.

É preciso dizer ainda que, nessa época, outros romances discutem a prisão que o casamento representa para muitas mulheres e que muitas delas decidem não se casar ou abandonar maus casamentos. Balzac publica, em 1843, A Musa do Departamento, história de uma mulher que abandona o marido, arranja um amante parisiense, vai para a capital, engravida e depois volta para a província, onde é aceita novamente pelo marido, que diz a todos que ela precisava mesmo de um tratamento para poder ter filhos... George Sand, uma mulher que escreve com pseudônimo masculino para ser aceita, publica O Último Amor em resposta à Madame Bovary. Dedica o romance a seu amigo Gustave Flaubert. Sua heroína trai o marido com um primo, como em O Primo Basílio, embora em circunstâncias bem diferentes. O marido descobre e procura reorganizar a vida deles, mandando o primo embora para a Itália; tenta, em seguida, perdoar a mulher, mas não consegue. Ela acaba adoecendo de culpa e morre também. George Sand parece querer dizer que a traição não deveria ser algo tão trágico assim e que talvez a sociedade pudesse rever a pesada punição que recai sobre as mulheres.

Na maioria dos casos, os romances que tratam do assunto parecem apontar para o fracasso dessa forma de casamento que tudo permite aos homens, mas que restringe a experiência sexual da mulher.

De qualquer forma, Emma Bovary representa essa tentativa, já no século 19, de uma mulher se descobrir como indivíduo. Se houve desmedida na sua entrega e nos seus desejos, essa desmedida pode ter representado uma resposta, no mesmo nível, à repressão sofrida em sua educação e em seu meio.

Lúcia Cherem, professora de Língua e Literatura Francesa da Universidade Federal do Paraná.

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