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Como é de praxe, conceitos antecipados há tempos atrás pela ficção científica acabam se tornando realidade – ao menos em parte. Em 1982, no conto Burning Chrome (sem tradução para o português), o escritor norte-americano William Gibson criou o termo ciberespaço para designar tanto o ambiente no qual circulam os dados digitais como também a representação gráfica deste "mundo" de bits e bytes.

O universo virtual Second Life pode muito bem ser interpretado sob essa ótica. O misto de jogo e comunidade eletrônicos, por vezes chamado de "metaverso" (neologismo para o universo paralelo), imita a realidade e alguns de seus elementos, como o princípio da gravidade, características geográficas, construções, produtos, roupas e até dinheiro. O objetivo é permitir aos usuários uma "segunda vida", como o próprio nome já diz, a ser experimentada apenas na internet.

A idéia é antiga. O filme Tron, do início dos anos 80, mostrava um programador que era enviado por acidente a um mundo virtual de uma companhia de videogames. Lá, os objetos criados para os jogos ganhavam uma aparência realista e interagiam uns com os outros. Mais recentemente, em 1999, Matrix misturou tudo isso e mais um pouco para mostrar milhões de pessoas iludidas por um cenário virtual tão realista que seria praticamente impossível diferenciá-lo da realidade.

É claro que as imagens dos avatares (como são chamados os personagens do Second Life) ainda estão muito longe do que o hacker Thomas A. Anderson, interpretado por Keanu Reeves, via no filme dos irmãos Wachowski, mas dá margem para especular que a literatura de Gibson acertou em grande parte como se daria a evolução do ciberespaço.

Basicamente, a idéia da cultura cyberpunk – que congrega as obras citadas acima – é sempre a mesma: a tecnologia deve avançar tanto que, em algum momento, em vez de se conectar à internet com um teclado e um mouse, bastará ao usuário pressionar um botão para submergir em uma realidade alternativa, idêntica ou semelhante ao planeta Terra, mas que só existirá na rede de computadores.

Os primeiros passos para representar o ciberespaço foram dados na década passada com o surgimento de jogos que reúnem dezenas, centenas ou até milhares de participantes ao mesmo tempo, em uma mesma partida, como Ultima Online, EverQuest e World of Warcraft. Com esses games massivos on-line (ou MMORPGs, com são conhecidos na sigla em inglês), diversos internautas se encontram todos os dias em campos de batalha, vilas ou masmorras em busca de aventuras. Poucos se deram conta de que tais passatempos representam a ameba da Matrix. Ou, pelo menos, do Second Life.

De acordo com o psicólogo André Sendra de Assis, que integra o Núcleo de Pesquisa em Psicologia e Informática da Pontifícia Universidade de São Paulo (NPPI/PUC-SP), o mundo virtual pode ser o embrião de uma nova internet. "A web que conhecemos hoje é ‘achatada’. O Second Life é tridimensional", explica. "Pode ser que, no futuro, quando quisermos comprar um tênis, iremos a uma loja da Adidas ou da Nike dentro do metaverso."

Jogo ou rede social?

Aqui, cabe dizer que o Second Life não é propriamente um jogo. Suas origens podem até estar em games de simulação da realidade e de estratégia, como Utopia, SimCity e The Sims, mas o fato é que o metaverso criado pela empresa norte-americana Linden Labs não oferece um objetivo, premissa básica a qualquer jogo, eletrônico ou não. Da mesma maneira, quem usa o Second Life não é um jogador, mas um residente, como manda o jargão do meio. Ao criar seu avatar, ele pode simplesmente ficar olhando o mundo virtual passar à sua frente. Pode também interagir com outros personagens, participar de grupos de discussão e entrar em comunidades virtuais. E é aí que o portal revela sua verdadeira essência.

A ênfase na interação e no relacionamento do 1,5 milhão de residentes ativos coloca o Second Life ao lado das famosas redes sociais da internet, como Orkut, MySpace e Facebook. A criação de uma "segunda vida" serve ainda para impulsionar comportamentos que já existiam nesses sites, como o exibicionismo e o egocentrismo. Prova disso é que não há avatar feio. Mulheres são invariavelmente magras e siliconadas, e homens são malhados e bronzeados. "O interessante no Second Life são as outras pessoas que o compõem. Trata-se de um ambiente social por natureza", afirma Assis, do NPPI. Segundo o psicólogo, as peculiaridades das relações via web – e entre avatares – ainda não foram completamente entendidas: "Podem ser ruins se a pessoa se refugiar ali, só se sentir segura no metaverso, mas também podem ser extremamente positivas, pois possibilitam a interação de pessoas fisicamente distantes".

Talvez o grande diferencial do Second Life em relação aos mundos virtuais um pouco mais antigos, como Habbo Hotel, mantido pela finlandesa Sulake, e Active World, cujo funcionamento é parecido aos dos jogos massivos, seja a economia real gira em torno dele (veja quadro). Nos últimos tempos, vem se falando de um suposto esvaziamento que estaria em curso no metaverso, mas seus números continuam a impressionar. A cada 24 horas, mais de US$ 1 milhão são movimentados ali – na forma, claro, de linden dólares (L$), a moeda usada no metaverso. Se fosse um país, o universo virtual teria um PIB do tamanho do Timor Leste.

Parte desse dinheiro vem de usuários individuais, que podem comprar terrenos, casas, carros, roupas e toda uma variedade de objetos virtuais. Outra fatia é gasta pelas empresas que mantêm uma sede no Second Life. Fizeram esse caminho gigantes como Adidas, Toyota, Sony e a rede de hotéis Starwood (administradora das bandeiras Four Points, Sheraton e Le Méridien), além de uma infinidade de pequenos negócios. Alguns deles, inclusive, são empreendimentos que ganham um bom dinheiro no próprio metaverso – vendendo produtos e serviços exclusivos para os residentes.

O caso mais conhecido é o da chinesa Ailin Graef que, por meio de seu avatar Anshe Chung, amealhou US$ 2 milhões nada virtuais. Seu negócio? A construção civil – de prédios e casas virtuais, obviamente. "O ciberespaço será uma alucinação consentida, experimentada por bilhões de usuários, de várias nações", profetizou William Gibson, 23 anos atrás. O Second Life pode não ser nenhuma Matrix, mas é o mais próximo que a humanidade chegou de criar um universo paralelo.

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