Ringo Starr, durante show em Curitiba em 2013| Foto: Marcelo AndradeGazeta do Povo

Na noite de 31 de outubro de 2013, o palco do Teatro Positivo, em Curitiba, recebia um senhor de 73 anos, baixinho, magro e simpático, à frente de uma banda formada por medalhões do rock. Assim como ele próprio, os integrantes do grupo já tinham deixado para trás o ápice de suas carreiras musicais. O público, cerca de 2 mil pessoas com idades que variavam tranquilamente dos 12 aos 70 anos, não chegou a ocupar todas as cadeiras da plateia, mas testemunhou um show divertido, alto astral, repleto de músicas conhecidas e desenhado para agradar às famílias. Foi desse jeito que Ringo Starr se apresentou à capital paranaense. 

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Em se tratando de um ex-beatle, era impossível ignorar o caráter tímido da recepção na cidade. Quando Paul McCartney viera a Curitiba, no fim de 1993, 35 mil pessoas foram assisti-lo na Pedreira Paulo Leminski, após meses de antecipação. Mas Ringo sempre foi assim, o quarto beatle, o beatle menor (não apenas em estatura física), o baterista que fora convidado meio às pressas para entrar na maior banda da história e, pior, o beatle que não tinha o dom de compositor. 

O jornalista Michael Seth Starr (cujo sobrenome é apenas uma feliz coincidência) relata em Ringo (Ed. Planeta, 480 págs), biografia recém-lançada no Brasil, um episódio revelador. Em dezembro de 1984, Ringo apresentou o Saturday Night Live, instituição do humor na TV americana. O esquete de abertura do programa era um leilão de souvenires dos Beatles em que uma palheta usada por John Lennon e uma escova de dentes velha de Paul são arrematadas por valores exorbitantes. O próprio Ringo Starr é leiloado, mas não atrai interessados. 

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A anedota é importante por mostrar um traço marcante e definidor no caráter de Ringo: a capacidade que ele tem de não se levar a sério. Ele ria de si próprio e assim lidava com as críticas mais doloridas, que o acompanham há 55 anos, aquelas cujo alvo era sua habilidade como músico. 

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Se há um tema que permeia toda a biografia de Ringo é o fato de o baterista mais famoso do mundo ser constantemente confrontado com suas supostas limitações técnicas. “Acredito que ele se incomodava com isso, até porque o produtor George Martin não demonstrava ser grande fã da bateria dele. Ringo nunca foi um baterista ‘técnico’ – ele é o primeiro a admitir isso – mas toca com sentimento, o que dá às suas batidas um suingue característico”, disse Seth Starr à reportagem da Gazeta do Povo

O epílogo do novo livro traz entrevistas com quatro grandes bateristas – Phil Collins, John Densmore, Max Weinberg e Kenny Aronoff. Todos afirmam que Ringo é capaz de oferecer um contratempo firme e constante como poucos, sem exibicionismos, sobre a qual as canções se sustentam. Os engenheiros de som que trabalharam com os Beatles também lembram que raríssimas vezes uma gravação tinha de ser interrompida por causa de um erro do baterista. 

Ringo oferecia estabilidade às músicas. E a personalidade de Ringo oferecia estabilidade à banda. Afinal de contas, se houvesse mais um polo de egocentrismo nos Beatles, o quarteto provavelmente teria implodido sob o peso das vaidades bem antes de 1970. 

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Infância pobre 

Richard Starkey, nome de batismo de Ringo, teve a origem mais humilde dentre os Beatles, e é razoável supor que as dificuldades que enfrentou na infância tenham lançado certas sombras para o resto de sua vida. Seu pai abandonou o lar quando o filho único tinha apenas 3 anos de idade. O bairro em que cresceu era muito pobre. John entrou para uma faculdade de artes, Paul e George fizeram o ensino médio, mas Ringo, a muito custo, concluiu apenas a escola primária. Duas longas internações hospitalares – por peritonite, aos 6 anos, e por tuberculose, aos 13 – mantiveram-no afastado da sala de aula por três anos letivos. 

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A lacuna acadêmica desenvolveu em Ringo um senso de que estaria um degrau abaixo dos amigos, social e intelectualmente. Por outro lado, Ringo sempre contou com o amor incondicional e o suporte da mãe, Elsie, e do padrasto, Harry Graves, que lhe deu a primeira bateria. 

Essa combinação de passado difícil e afetuoso ajudou a moldar o jeito bonachão de Ringo, o “beatle engraçado”, que complementaria os epítetos “inteligente”, de John, “fofo”, de Paul, e “quieto”, de George. E ele soube valer-se da personalidade boa praça para enfrentar doses cavalares de resistência e desdém quando os holofotes do planeta inteiro se voltaram para o grupo. 

Em 1962, John, Paul e George tocavam juntos havia quatro anos. Durante um teste de estúdio, o produtor George Martin chamou de lado o empresário Brian Epstein para lhe dizer que o então baterista do grupo, Pete Best, não era bom o suficiente. Loucos para estrear em disco e também insatisfeitos com o que consideravam falta de comprometimento de Pete nos shows, os Beatles não demoraram para demiti-lo. 

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O melhor da cena 

A essa altura, Ringo, candidato natural para preencher a vaga – uma vez que tinha substituído Pete em várias ocasiões – estava na posição de barganhar. Três meses mais velho que o líder e fundador Lennon, Ringo era tido por muitos como o melhor baterista da cena de Liverpool. Sua banda, a Rory Storm and the Hurricanes – na qual recebera o apelido famoso por causa do gosto por anéis (“rings”) – era sob vários aspectos mais experiente do que os Beatles. Ele aceitou o convite. 

Em Liverpool, a rejeição de parte dos fãs foi imediata. Os Beatles passaram a fazer shows na cidade natal ao som de gritos “Pete para sempre! Ringo jamais!”. Na Inglaterra como um todo, Ringo tinha de superar a imagem de alguém que pulou no trem da Beatlemania quando ele já estava deixando a estação. 

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A redenção veio nos Estados Unidos, onde a banda não carregava bagagem do passado. O charme e as piadas do baterista nas coletivas de imprensa conquistaram os adolescentes americanos. Lá, em 1964, Ringo era considerado o beatle mais popular, e ficaram famosas as faixas e bottoms “Ringo para presidente”. 

Durante os oito anos em que permaneceu nos Beatles, a voz grave e desafinada de Ringo encontrou espaço em todos os LPs da banda, fossem elas covers (“Boys”, “Act Naturally”), composições de Lennon-McCartney (“Yellow Submarine”, “With a Little Help From My Friends”), ou, nos últimos álbuns, as raras músicas de autoria própria (“Don’t Pass Me By”, “Octopus’s Garden”). 

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Mas nem mesmo Ringo, com todo seu espírito de camaradagem, conseguiu suportar a animosidade dos anos finais do quarteto. Em 1968, no meio das gravações do Álbum Branco, Ringo foi o primeiro a deixar a banda – a bateria de “Back to the USSR” é tocada por Paul. À época, o caso foi abafado, mas Ringo só voltaria depois de duas semanas sob a insistência dos demais. 

Obra relevante 

É na segunda metade de Ringo que fica clara a sua importância, afinal, trata-se do primeiro registro biográfico de fôlego sobre o baterista mais famoso do mundo. “Eu lia muito sobre os outros Beatles e sempre achava Ringo meio esquecido. Ninguém voltava ao nascimento dele em Liverpool para traçar o arco de sua vida e carreira”, explica Seth Starr. Os primeiros capítulos trazem relativamente poucas novidades para quem já conhece a história dos Beatles. A infância é enriquecida em detalhes com alguns depoimentos exclusivos, mas o autor baseou boa parte da pesquisa em fontes secundárias. Futuras edições do livro também se beneficiariam de uma revisão mais cuidadosa, que filtrasse melhor erros e repetições desnecessárias. Desde a introdução, no entanto, Ringo oferece uma leitura divertida e um bom encadeamento narrativo, e fica mais interessante e relevante ao lançar luz sobre fatos pouco conhecidos da vida pós-Beatles do baterista. 

Descontados experimentos sônicos vanguardistas de John e George (que ninguém de fato escuta), Ringo foi o primeiro beatle a lançar um LP solo, Sentimental Journey, de 1970. O ano foi marcado pela guerra total dentro dos Beatles, que ainda existiam no papel. De um lado da trincheira, John e George; de outro, Paul. Um dia, Ringo, o eterno conciliador, decidiu ir à casa de Paul para dizer que concordava com os demais e que o baixista deveria adiar o lançamento de seu disco solo para não competir em vendas com Let It Be, o último trabalho da banda. McCartney expulsou o baterista de sua casa sob berros e xingamentos. 

Mas Ringo surpreenderia o mundo, que considerava a carreira dele acabada após o fim dos Beatles, ao lançar dois singles consecutivos de sucesso estrondoso, “It Don’t Come Easy” (1971) e “Back Off Boogaloo” (1972), ambas escritas por George Harrison. As duas músicas superaram em vendas tudo o que seus ex-colegas estavam lançando sob seus próprios nomes à época. A letra de “Back Off Boogaloo” (“Acorde, cabeça de bagre / Não finja que está morto”) foi interpretada como um ataque a Paul, algo que Ringo negava sem convencer muita gente. 

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O auge artístico veio com o álbum Ringo (1973) e a música de trabalho “Photograph”, mais uma parceria com George que alcançou o topo das paradas nos EUA. Além de elogiado pela crítica e abraçado pelo público, o disco marcou a primeira vez que todos os Beatles apareciam num mesmo LP desde a dissolução do grupo – situação que só Ringo, o cara legal, poderia ter feito acontecer. Mas, como chama atenção Seth Starr, “é significativo que McCartney não tenha aparecido em nenhuma das mesmas faixas” em que Lennon e Harrison tocaram, juntos ou separados. “Era esse o grau de rancor entre eles na época”. Nem Ringo, perdoado por Paul, conseguia uni-los novamente. 

O sucesso no mercado fonográfico coincidiu com bons resultados em outra frente profissional. Desde a enaltecida atuação em A Hard Day’s Night – Os Reis do Ié-Ié-Ié (Richard Lester, 1964), primeiro longa-metragem dos Beatles, Ringo tentava engatar uma carreira de ator. E o baterista teve desempenhos elogiados nos filmes Um Beatle no Paraíso (The Magic Christian; Joseph McGrath, 1969), em que contracenava com o amigo Peter Sellers; That’ll Be the Day (Claude Whatham, 1973) e Lisztomania (Ken Russell, 1975). 

Decadência 

Os dez anos seguintes foram marcados por uma espiral de decadência poucas vezes igualada até mesmo no universo do showbiz. Ringo havia descoberto que a esposa, Maureen Cox, mãe de seus três filhos, tinha um caso com George Harrison. Em 1975, Ringo e Maureen divorciaram-se depois de 10 anos de união. A relação com o guitarrista ficou estremecida por um tempo, mas a amizade e as parcerias foram retomadas. A carreira e a vida pessoal do baterista entraram em colapso. Ringo continuou lançando discos e fazendo filmes, cada vez piores e ignorados pelo público. Em 1983, nenhuma gravadora se interessava em lançar seus trabalhos. 

No plano pessoal, Ringo afundou-se em álcool e cocaína ao lado dos amigos Harry Nilsson, Marc Bolan (T. Rex), Keith Moon (The Who) e John Bonham (Led Zeppelin). À medida que os companheiros de farra iam morrendo, Ringo mergulhava ainda mais no hedonismo, torrando fortunas em carros, mansões, barcos e viagens entre Los Angeles, Mônaco e Londres, praticamente sem residência fixa. Em 1981, ele casou-se com a atriz e modelo Barbara Bach, que conheceu durante as filmagens de O Homem das Cavernas (Caveman; Carl Gottlieb, 1981). Os anos iniciais do casamento foram marcados por episódios de violência, com tapas e socos desferidos em festas, aviões e outras aparições públicas. “Escolhas ruins, junto com o estilo de vida extravagante, sem raízes, e o alcoolismo, tiveram impacto muito forte na sua vida profissional”, resume Seth Starr.

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Ringo só começaria a sair do buraco em que se metera com um convite prosaico: ser o narrador e dublador na série de desenho animado Thomas e Seus Amigos, até hoje transmitida no Brasil pela TV Cultura e pelo canal pago Discovery Kids. Na versão norte-americana do programa, Ringo vestia-se de maquinista e interpretava o personagem de apenas 45 centímetros de altura que apresentava a animação. Se por um lado era melancólico ver um ex-beatle naquela situação pueril, a biografia de Seth Starr mostra que o enorme êxito da série deixava Ringo satisfeito. 

Salvação 

Depois de um período numa clínica de reabilitação junto a Barbara, veio, em 1989, a tábua de salvação definitiva, na forma da All-Starr Band, um grupo de formação sempre mutável e que, na prática, reúne uma elite de músicos e amigos do baterista. Nos shows da banda, todos os integrantes têm a oportunidade de incluir canções de seus próprios repertórios. Já passou por ela uma constelação de roqueiros da velha guarda, como Billy Preston, Nils Lofgren (Crazy Horse), Levon Helm (The Band), John Entwistle (The Who), Peter Frampton, Jack Bruce (Cream), além do filho de Ringo – e também baterista – Zak Starkey. 

A All-Starr Band resgatou o reconhecimento que evadiu Ringo durante os anos terríveis do vício – e trouxe o baterista a Curitiba, há cinco anos. Para Seth Starr, Ringo é um sobrevivente, algo que contribuiu para seu ressurgimento como uma das “vozes da experiência” no rock. O grupo mantém Ringo, 78 anos, firme na estrada até hoje. Ele será eternamente o quarto beatle, mas é também Sir Ringo, Primeiro All-Starr.