Em seu terceiro livro, o romancista cria um jogo narrativo centrado no microcosmos, oferecendo novas perspectivas para as coisas menores da vida.| Foto: Reprodução/ Facebook

Há escritores que se especializam em criar um universo, megaprojeções de uma realidade expandida e complexa, permeada de inúmeras tramas e subtramas. E existem aqueles que criam um microcosmo da realidade e desenvolvem, nesse pequeno campo de histórias, uma grande acuidade poética em cantos obscuros e em momentos sutis de seus enredos.

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Grandes nomes constam desse segundo grupo de ficcionistas. Os mais notórios, entre os norte-americanos, são nomes como Richard Ford, Cormac McCarthy e o irretocável Kent Haruf — atilados escritores que incrementaram as obras literárias sobre o interior dos Estados Unidos.

Haruf é um dos responsáveis pela elaboração da estrutura do famoso épico romance moderno do oeste norte-americano. O autor desenvolveu uma prosa onde a ternura e o encanto se manifestam numa construção tão bem arquitetada que as páginas se entrelaçam e o leitor as encara como se todas elas fossem parte de um organismo pulsando vida enquanto o mosaico polifônico do oeste norte-americano apresenta-se como chamado a um Novo Mundo.

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Canto da planície, terceiro livro de Haruf e o primeiro de uma trilogia, apresenta-nos a pequena cidade interiorana de Holt, próxima a alguns quilômetros de Denver, no Estados Unidos. Nesse condado, onde todos os moradores se conhecem e guardam laços de ligação entre si, o escritor americano executa um fino escrutínio dos dramas da alma humana.

Montando um painel de protagonistas, Canto da planície cria um ambiente onde os diversos personagens e seus processos de vida eclodem numa narrativa exuberante. A serenidade da escrita de Haruf impera na elaboração de uma cidade fictícia que sintetiza o símbolo real da condição do ser humano na terra, sem apelar para grandes discursos ou grandes acontecimentos.

O objeto de foco da visão narrativa do autor está direcionado para os episódios mais simples. É dali que o narrador extrai lições e perspectivas que alargam as percepções da existência.

Ao nos colocar em contato com figuras comuns, que vivem suas vidas comuns, o escritor nos propõe um exercício analítico sobre a psique de seus personagens por meio de caminhos sinuosos, numa costura de tramas artificiosamente empreendida sobre acontecimentos simples que, na prosa de Haruf, ganham ressonâncias totalmente novas e muitas delas com uma importância surpreendente.

Quando nos deparamos com a rotina da pacata Holt, entendemos por que os seus moradores integram uma espécie de vivência que parece contrária à ansiedade contemporânea.

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A beleza entranhada nas linhas de Haruf repousa no seu pleno domínio da condução das histórias. A habilidade para ir trançando os pontos de convergência das tramas nos mostra como o escritor é exímio na arte de contar um fato e fazê-lo se materializar na frente do leitor, sem que ele note os artifícios que foram utilizados na construção daquela cena.

Jogo narrativo

Gurthie é um professor que se separa de sua esposa depressiva, Ella, deixando os dois filhos, Ike e Bobby, atordoados pela situação. Outra personagem é Victoria Roubideaux, uma adolescente que descobre estar grávida e é expulsa de casa. Ela acaba indo morar na casa de dois senhores idosos, os irmãos McPheron, que sempre viveram sozinhos e redescobrem a vida, com uma dinâmica renovada, devido à situação.

Cada um desses personagens passa por suas próprias vicissitudes, que ora colidem entre si, ora demonstram estar em polos completamente distintos. O que permite conhecer cada uma dessas vozes, que ecoam na ambientação formulada por Haruf, é a autenticidade que o escritor dá às emoções.

Não existe artificialidade no jogo narrativo do autor. A sua potência repousa na capacidade de escrever uma prosa límpida. A delicadeza com a qual descreve as tensões emocionais dos personagens faz com que o leitor absorva as sensações.

A saudade, o medo, a depressão, a tristeza, a frustração, o carinho, a ternura, o cuidado, a vingança — estão compondo a ampla gama de sentimentos que se misturam, numa narrativa cristalina onde reina a beleza de um texto soberbo mas sem resquício de superioridade.

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Haruf está muito próximo, ainda que não compartilhem de um estilo que guarde alguma similaridade, exceto pelas bordas, de Sam Shepard como menestrel dessa América que está desaparecendo entre os dedos da contemporaneidade, ao mesmo tempo que lhe resiste com certa ternura, mas sem perder seus aspectos mais duros e rançosos.

O autor de Canto da planície não camufla a realidade. Ela continua dura. Victoria continua a estar confusa na sua condição de jovem mãe que se vê confrontada com uma realidade completamente inesperada; Ella está perdida no seu estado depressivo, que lhe tira todas as forças de viver e que a deixa sem saber lidar com os próprios pensamentos; Ike e Bobby se veem entre os pais separados, atordoam-se com a nova rotina e sofrem com a distância da mãe. Os conflitos internos se amalgamam numa miscelânea de bacorejos turvos e nebulosos.

Contudo, Haruf produz uma escrita reluzente capaz de identificar o maior brilho na menor pedra. Sua lente de aumento para a beleza das coisas simples faz com que o leitor sinta-se atravessando um caminho de profundo senso de significado sobre tudo que lhe rodeia.

Essa capacidade de enxergar beleza na aparente insignificância das circunstâncias premidas de banalidade e transformá-las em belos quadros faz de Kent Haruf um mestre cuja originalidade no trato do diálogo dentro do texto, a organicidade com a qual eles são embutidos no enredo e como misturam a fala do narrador com os sentimentos dos personagens que integram a narrativa elevam a experiência da leitura.

É a descoberta de que a literatura, enquanto uma manifestação da arte, pode alcançar novos patamares sem se utilizar de ferramentas que desembocariam num texto hermético.

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Haruf dizia que os Estados Unidos não eram bonitos, mas eram lindos. E, tomando como lugar de sua trilogia as planícies gélidas do interior americano, o autor de Nossas noites — outra obra colossal, na qual destrincha os percursos afetivos do amor na velhice — ressignifica o tempo, transcende o rés do chão e nos posiciona como espectadores privilegiados do espetáculo da vida comum de seus protagonistas.

Canto da planície é a abertura perfeita de uma trilogia que se equilibra numa prosa sóbria, de estrutura sólida, na qual o afeto e o sofrimento humano desencadeiam uma série de acontecimentos que se interligam. A trama demonstra claramente que toda vida se encontra conectada uma à outra, e que a saga humana na terra é saber o segredo de conviver com seus meandros mais internos enquanto se descobre o universo insular que é o outro ser humano.

© 2019 Rascunho.

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