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Filmes de 1995

Primeiro “Toy Story” completa 30 anos como obra atemporal e filosófica

O xerife Woody Pride, que o mundo conheceu há 30 anos, em "Toy Story"
O xerife Woody Pride, que o mundo conheceu há 30 anos, no primeiro "Toy Story" (Foto: Divulgação Disney)

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Há 30 anos estreava nos cinemas o primeiro filme da história gerado inteiramente por computação gráfica. Toy Story: Um Mundo de Aventuras (1995) foi o precursor dos longas-metragens da Pixar e a primeira produção realizada em parceria com a Disney. Três décadas depois, mesmo diante da rapidez com que a obsolescência tecnológica vem acontecendo, a animação resiste com espantosa atualidade, conquistando a dignidade de uma obra atemporal.

Não apenas por seu cuidado quase artesanal com detalhes, como texturas, reflexos, sombras, micro-expressões corporais, que lhe conferiu uma alma própria, mas principalmente por tudo isso servir a uma narrativa bem construída, contando uma história que não só agrada a crianças e adultos, mas é lapidada com maestria de ourives a fazer brilhar seus temas com profundidade emocional e ressonância transcendental.

Esta qualidade se manteve nos demais filmes da franquia, que continuaram a desenvolver os temas relativos à passagem do tempo e suas implicações nas relações humanas, como o da impermanência, o abandono, a desistência e a substituição. Em todos os filmes os brinquedos temem serem substituídos por novos ou abandonados pelos seus donos por estes terem crescido ou ressentidos por terem sido descartados.

Ao longo de quatro filmes – com o quinto prometido para 2026 –, Toy Story conseguiu algo raro, e inesperado, para o que se consideraria um cinema voltado para crianças: propiciar também aos adultos um retrato maduro da nossa impermanência existencial. Se o primeiro filme apresentou o drama do medo e ciúme de Woody por uma possível substituição por Buzz, foi nos filmes subsequentes que se revelou uma dimensão verdadeiramente filosófica.

Paroxismo emocional

Em Toy Story 2 (1999), as consequências do abandono são retratadas na personagem Jessie, com seu ressentimento da menina que a abandonou e a frustração por Woody preferir voltar para casa, para a “sua criança”, Andy, do que ficar com ela. Mas é no terceiro filme (2010) que a angústia existencial pelo fim dessas relações alcança seu paroxismo emocional, com a belíssima cena final de despedida de Andy, que cresceu e está indo para a faculdade, deixando seus brinquedos – Woody incluso – com outra criança, Bonnie.

Já em Toy Story 4 (2019) a franquia atingiu seu ápice reflexivo ao abordar algo ainda mais complexo: o que acontece quando nosso propósito original, o sentido da nossa vida, parece ter se esgotado? Woody, confrontado com a perda de seu papel tradicional de cuidar de Bonnie, como antes tinha cuidado de Andy, precisa reconfigurar sua própria identidade. Padece de uma crise vocacional típica de quem confunde seu ser com o seu fazer, sua identidade com seu papel social, tendo de reconhecer que seu ser não se reduz ao que faz ou aos papéis que possa exercer, mas pode se manifestar de formas diferentes, a partir de chamados presentes em quaisquer circunstâncias.

Forky, o garfo transformado em brinquedo, torna-se a metáfora perfeita disso: acostumado a ser lixo, demora a entender e aceitar que também poderia ser um brinquedo. A angústia existencial de Forky ressoa com a síndrome do impostor que assombra tantos de nós em tempos de mudanças aceleradas e redefinições constantes de papéis sociais. Somos quem deveríamos ser? Será que sabemos quem somos?

Buzz Lightyear interage com Woody no primeiro "Toy Story"Buzz Lightyear interage com Woody no primeiro filme da franquia (Foto: Divulgação Disney)

Subjacente a essa reflexão está o medo mais primitivo: o de não ser nada, ou se tornar irrelevante, esquecido, descartado, abandonado. São fantasmas que assombram todos nós. A genialidade de Toy Story está em transformar esse medo universal em catarse, terminando sempre com uma afirmação de fé na amizade e no amor, mesmo quando ambos parecem ter acabado. "Ao infinito e além", o bordão cativante do outro boneco, Buzz Lightyear, acaba significando mais do que parece neste contexto.

Para aqueles que assistiram ao primeiro Toy Story no cinema em 1995, estes 30 anos representam uma jornada paralela de transformações. As crianças que se identificavam com Andy agora são adultos navegando suas próprias crises de meia-idade. Os pais que levaram seus filhos ao cinema talvez agora sejam avós, confrontados com a beleza e a dor de novos ciclos de pertencimento e despedida.

Questões eternas da humanidade

Com o quinto filme anunciado para 2026, Toy Story se prepara para mais uma reflexão sobre o que significa existir num mundo em constante mudança. Os detalhes ainda são escassos, mas a própria decisão de continuar a saga após o que parecia ser uma despedida definitiva em Toy Story 4 sugere algo profundo sobre a natureza cíclica das histórias que realmente importam.

Talvez seja esse o legado mais duradouro de Toy Story: a demonstração de que certas narrativas não se esgotam porque não são sobre seus personagens, mas sobre as questões eternas que nos definem como humanos. O medo do abandono, a busca por propósito, a coragem de amar apesar da certeza da perda, são temas que não envelhecem porque são o próprio tecido de nossa experiência compartilhada.

O que essas histórias nos ensinam, em última instância, é que a vida é uma sucessão de quartos de Andy, lugares sempre temporários dos quais seremos retirados em algum momento ou confrontados com a consciência de que um dia precisaremos partir. A sabedoria está não em negar essa impermanência da condição humana, mas em abraçá-la como parte essencial da beleza de estar vivo. Como diria o poeta alemão Ludwig Jacobowski: "Não chore porque acabou, sorria porque aconteceu" (não, esta frase não é de Gabriel García Márquez, como costuma ser citada por aí).

Trinta anos depois, Toy Story continua nos convidando para a mesma jornada transformadora: olhar para o que está encharcado de memória afetiva (inclusive os próprios filmes) e encontrar neles o reflexo de nossas próprias almas, com todos os seus medos, esperanças e, sobretudo, a inabalável capacidade de encontrar sentido mesmo quando chegar a hora inevitável do último "adeus". Ir ao infinito e além, no fim das contas, nunca será sobre o destino final, mas sobre a coragem de continuar voando mesmo não se tendo garantias de onde vamos pousar.

  • Toy Story
  • 1995
  • 82 minutos
  • Classificação indicativa livre
  • Disponível no Disney+

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