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Tolstói nos ajuda a perceber que um bosque não é apenas lenha para fogueira

Pessoas visitam a exposição em homenagem ao centenário de León Tolstói em Montevidéu
Pessoas visitam a exposição em homenagem ao centenário de León Tolstói no Uruguai (Foto: EFE/Iván Franco)

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"Um romance é um espelho que se carrega ao longo da estrada. Tanto pode refletir para os seus olhos o azul do céu como a imundície do lamaçal da estrada.” Esta é uma passagem famosa do ainda mais famoso romance de Stendhal, O Vermelho e o Negro, de 1830.

Considerada assim, toda literatura seria uma janela pela qual podemos conhecer melhor a condição humana nos mais diferentes tempos históricos. Ler a Ilíada e a Odisseia é conhecer o homem grego, assim como a leitura da Eneida revela o romano. A Divina Comédia espelha o homem medieval, como Dom Quixote retrata quem vivia o nascente mundo moderno.

O próprio romance de Stendhal seria um espelho andante do século XIX, o qual, como consta de outra passagem dele: “Este século está destinado a confundir tudo! Caminhamos para o caos.” Caos que as distopias do século XX não deixam de ser um espelho também – para além das profecias de futuro –, apontando para a “imundície do lamaçal da estrada”.

Talvez seja muito por essa confusão que no século XIX nasceu o realismo literário, um movimento do qual Stendhal foi um precursor, com a literatura se tornando também um documento social, com a realidade sendo retratada da forma mais fiel e objetiva possível. Mas é com Tolstói que temos o ápice do realismo literário mundial, elevando o movimento a dimensões épicas e filosóficas sem precedentes.

Realismo total

Tolstói não apenas retratou a realidade social do seu tempo e da sua Rússia, mas ampliou o espelho, no que ficou conhecido como “realismo total”. Dois de seus romances monumentais, Guerra e Paz, escrito entre 1865 e 1869, e Anna Kariênina, produzido entre 1873 e 1877, são exemplos perfeitos dessa ambição pela totalidade.

Em Guerra e Paz temos mais de 500 personagens, com a História – assim mesmo, com inicial maiúscula – se tornando um deles, a própria protagonista a conter essa polifonia de vozes, criando um espelho preciso que permite dimensionar o papel e poder do indivíduo humano diante de forças muito maiores.

O que neste romance ganhamos em visão totalizante e um realismo panorâmico, acrescenta-se com Anna Kariênina a profundidade psicológica, com a realidade exterior sendo abarcada pela visão de mundo a partir do interior dos personagens, especialmente dos dois protagonistas, a própria Anna e Lièvin, que é praticamente um alter-ego de Tolstói a refletir constantemente sobre a realidade, buscando uma verdade para além das ideias correntes e um sentido mais profundo para a existência.

Voltando à “teoria do romance” contida em O Vermelho e o Negro, e considerando agora a obra de Tolstói, que espelha não apenas a sua época, sua sociedade e cultura, mas as abarca e transcende, espelhando o que é universal e atemporal, falando com os homens de todos os tempos, de qualquer época, entendemos melhor também um dos requisitos que faz uma obra se tornar um clássico.

A Morte de Ivan Ilitch

Anna Kariênina continuará sendo lida menos por Anna, como indivíduo típico da sociedade russa do século XIX, e mais pela busca incessante de Lièvin, que se sente deslocado naquela mesma sociedade e só “sossega” quando acredita ter encontrado um sentido maior para a sua vida. Uma busca que o próprio Tolstói jamais deixou de fazer e retratar em seus livros posteriores, como na obra-prima A Morte de Ivan Ilitch, de 1886.

Diminuta, se comparada à extensão de seus grandes romances, mas imensa se comparada ao que conseguiu espelhar da condição humana, esta novela de Tolstói retrata de forma impressionante o que é viver “errado”, quando se deixa para responder depois o que é o mais importante: diante do fato inevitável da morte, que sentido tem a vida? É a proximidade da realidade da morte que confronta a consciência moral de Ivan Ilitch, obrigando a reconhecer que viveu por outras coisas que não este sentido maior. Erro que Lièvin, em Anna Kariênina, percebeu a tempo:

“Esse novo sentimento não me transformou, não trouxe felicidade, não brilhou de repente, como eu havia pensado, a exemplo do sentimento por meu filho. Também não houve nenhuma surpresa. Seja fé ou não, e ignoro o que possa ser, o fato é que esse sentimento penetrou imperceptivelmente na alma, por meio dos sofrimentos, e se instalou aí com firmeza.

Continuarei a me irritar com o cocheiro Ivan, continuarei a discutir, continuarei a expressar minhas ideias fora de hora, continuará a existir um muro entre as coisas mais sagradas da minha alma e as outras pessoas, mesmo a minha esposa, e continuarei a culpá-la do meu medo e a me arrepender disso, continuarei a não entender por meio da razão por que eu rezo, e rezarei, mas minha vida, agora, toda a minha vida, a despeito de tudo o que possa vir a me acontecer, e cada minuto seu, não só não será absurda, como era antes, como terá também o incontestável sentido do bem, que cabe a mim infundir a ela!”

A quem queira dar à sua vida este incontestável sentido do bem, eis aí alguns bons companheiros – livros, personagens e autores – para se levar ao longo da estrada da vida, que espelham o lamaçal à beira e o azul do céu, mas também, e principalmente, consolam pela beleza e orientam o caminhar com sua luminosidade.

E para quem se acredita uma pessoa realista, “pé no chão”, não vendo sentido em leitura de ficção, achando que seria apenas entretenimento, recomenda-se mais ainda essas leituras. Ao menos para não se tornar como aqueles que, como teria dito Tolstói: “Há quem passe por um bosque e só veja lenha para a fogueira.”

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