Em romance, Paulo Bueno busca um paradeiro, um lugar tanto para se assentar, criar raízes, quando para passar pelo doloroso processo da morte.| Foto:

Um livro sobre um lugar é sempre um livro sobre afluências, a plataforma de interseções de diferentes caminhos e épocas. Assim, o livro sobre um lugar revela-se também um relato sobre o tempo, que pode ser lido nas marcas que deixa nas ruas e nas pessoas. Paradeiro, de Luís Bueno, cujo pano de fundo é São José dos Campos, no interior de São Paulo, é, sobretudo, o rastreamento das biografias das personagens que por ali passaram, suas idas e vindas, mudanças e assentamentos.

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Na superfície, o romance traça o panorama de uma época específica, os anos de 1930 e 40, sobretudo da perspectiva política e literária. Olhando-se mais a fundo, porém, a narrativa levanta questões humanas universais e atemporais que nos são apresentadas através das reflexões das três personagens centrais. Elas se veem, em tempos diferentes e por motivos distintos, confrontadas com a doença e com a morte.

É que São José dos Campos abrigava, neste período, sanatórios para tratamento da tuberculose e, mais tarde, com a rápida industrialização, passou a atrair todo tipo de imigrantes. Aqui se entrelaçam as histórias dos três protagonistas, que, no entanto, nunca se encontram. E quando digo “entrelaçam”, não se trata de uma metáfora. Os relatos curtos em primeira pessoa alternam-se num ritmo estonteante, alinhavando os retalhos de uma narrativa polifônica e híbrida, através da qual o autor costura a sua história, lançando mão de diferentes estilos, nomeadamente: a escrita epistolar, o monólogo interior e o fluxo de consciência.

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No centro deste mosaico textual temos Pedro, cuja narração funciona como uma âncora histórica. Pedro é um jovem advogado e crítico literário que, acometido de tuberculose aos 23 anos, retira-se para tratamento e repouso naquela cidade. De lá, mantém contato através de cartas com seus amigos, figuras renomadas do círculo intelectual da época: Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Octavio de Faria, Carlos Lacerda, Moacyr Werneck de Castro, Murilo Miranda.

É através desta troca de correspondências que somos inseridos nas suas discussões sobre os caminhos da política e da literatura brasileira. Por outro lado, mergulhamos com ele numa análise sobre a precariedade das convicções de uma elite intelectual cujo radicalismo revolucionário não resiste ao cotejo com a realidade da vida dos verdadeiros proletários, figuras que Pedro vem a conhecer em São José dos Campos. De fato, ele descobre que a visão da classe operária que tinha tido até ali era ingênua, burguesa e meramente teórica. A realidade se revela mais complexa e ambivalente.

A segunda protagonista é Bibiana, uma senhora portuguesa trazida para o Brasil ainda criança e obrigada a se casar aos treze anos. Separada da família, fica à mercê de uma tia que lhe manipula e explora. Bibiana, que, quando começa o relato, já é uma senhora demente, nos conta sua história em flashbacks, numa tentativa aflita de juntar as peças espalhadas da memória e, com isso, reconstruir o passado para orientar-se num presente que se desmantela. Pois só quem lembra pode se posicionar na linha do tempo: “e o que é o presente sem o passado nada uma pessoa que não lembra não existe somos aquilo de que nos lembramos de certeza é isso um louco é louco porque não se lembra”. Sua fala é uma avalanche verbal sem pontuação, num stream of consciousness que espelha bem o fluxo resfolegante da busca pela memória perdida, no qual as recordações mais antigas se misturam com invencionices e desejos, embaralhando-se em fragmentos desconjuntados e incertos.

E, por fim, temos a terceira protagonista, uma suicida sem nome que atravessa o livro e a cidade com o intuito de pôr um fim ao sofrimento causado por um câncer descoberto tarde demais. Durante a caminhada até a ponte de onde pretende se suicidar, ela revisita a sua trajetória biográfica ao passar por lugares que deixaram marcas em sua memória, reinterpretando situações marcantes de sua história e, assim, redimensionando a sua vida ao mesmo tempo que, inconscientemente, adia o salto da ponte. O medo a acompanha a cada passo, é um depoimento pungente da raiva e da impotência diante da doença, mas é também o testemunho de uma intrínseca vontade de viver face à iminência da morte.

Fio condutor

Essa vontade de viver que emerge em momentos de declínio é o fio condutor das histórias — e das histórias dentro das histórias. Revelando pleno domínio do jogo com a metalinguagem, Luís Bueno — que também é um experiente crítico literário — traça um paralelo entre as tragédias pessoais de suas personagens e a saga da família de retirantes de Vidas secas, de Graciliano Ramos, livro resenhado por seu personagem central, Pedro. Este escreve:

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Nesse livro se conta a história de uma família de sertanejos fugidos da seca. O problema é que, lendo esse romance num momento de crise, li-o como se lê tudo, imagino, li-o como um livro que trata da vontade de viver. O que temos ali é uma família que, a despeito de ter uma vida miserável, quer viver e faz da manutenção dessa vida desgraçada um movimento inútil de esperança. E daí? Se é esperança não é inútil. Em suma, li menos a miséria do livro e mais o desejo de vida que ele traz.

E é essa esperança quase inútil que funde gradativamente as três personagens no imaginário do leitor, de tal forma que, a partir de determinado ponto, tem-se a impressão de que, apesar de viverem em tempos diferentes e não se conhecerem, os três são a mesma pessoa, ângulos diferentes dos mesmos medos, questionamentos e da mesma severa autoanálise. Luís Bueno estabelece essa fusão dos protagonistas não só no emparelhamento temático, mas também no plano formal, com o enredamento dos monólogos, que parecem espelhar-se, perseguir-se e fugir uns dos outros num crescendo, como numa fuga bachiana. Os monólogos alternam-se num ritmo cada vez mais ágil e de notável dramaticidade, produzindo enorme força de tração. O vaivém de vozes e tempos é levado ao ponto de tensão máxima numa passagem marcante lá pelo meio do livro, no capítulo intitulado sintomaticamente “Mote”, no qual se torna quase impossível distinguir quem fala, a que corpo pertence qual dor. Diante da morte, todos os tempos e todas as vozes parecem fundir-se na mesma voz que levanta as questões primevas do humano: quem sou? De onde venho? Para onde vou?

Alguns meses depois, no cemitério, me ocorreu a ideia de que todo mundo se pergunta: ‘de onde viemos’? Eu sabia exatamente de onde tinha vindo, e esse lugar, apenas um corpo, não existia mais, estava ali, debaixo dos meus pés, desaparecendo devagar.

São estas as questões decisivas traduzidas nesta busca por um paradeiro, como o lugar do sujeito no mundo, mas também como “fim ou termo de alguma coisa”. Assim, o termoserve aquicomo uma metáfora tanto para o assentar-se, como para a morte.

De fato, o que fica para mim deste livro doído e profundo, mas também cheio de humor, é a reflexão sobre o envelhecer, que traz consigo o desmoronamento da memória e dos princípios que guiam toda uma vida. O texto propõe a reavaliação das próprias posições e convicções diante do reconhecimento de que nem a identidade nem a verdade são invariáveis. Ou, como descreve a suicida:

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Aos poucos fui percebendo que muito da minha própria tristeza vinha menos do jeito como as coisas eram do que da minha mania de achar que as coisas deviam ser de um determinado jeito, diferente do que elas realmente eram. Nessa história toda, nada disso se perdeu. Só as minhas certezas.

© 2019 Rascunho. Publicado com permissão.