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Carteira de estudante de Oswaldo Ferreira dos Santos, segundo médico negro a se formar no Paraná | Aniele Nascimento/Gazeta do Povo
Carteira de estudante de Oswaldo Ferreira dos Santos, segundo médico negro a se formar no Paraná| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Em um amplo e antigo escritório no bairro Jardim Botânico, em Curitiba, o cônsul-geral do Senegal para o Paraná e Santa Catarina, Ozeil Moura dos Santos, abre com cautela a pasta plastificada e estufada de papéis que carregam pequenos capítulos da história de sua família. Das páginas finais, puxa, na ponta dos dedos, um dos documentos dos quais mais se orgulha: o diploma universitário do tio Oswaldo Ferreira dos Santos, jogador do extinto Clube Atlético Ferroviário e um dos primeiros negros a se formar em Medicina no Paraná.

“Se hoje é difícil para um negro se formar em Medicina, pensa 60 ou 70 anos atrás. Você consegue imaginar? Porque eu não consigo”, indaga o cônsul ao manusear o diploma, em um grosso papel timbrado e ainda em cores vivas.

Nascido em Curitiba em 1916, Oswaldo se formou pela Faculdade de Medicina do Paraná (hoje a Universidade Federal do Paraná) em 1945 – mesmo ano em que a instituição graduou a curitibana Enedina Marques como a primeira engenheira negra do país. Nos pontos em comum da história, ambos foram forçados a bater de frente com o preconceito de uma época de segregação. A diferença era que, além de homem, Oswaldo dominava a bola nos pés.

Ozeil lembra que, quando o tio se formou, o racismo fez com que as pessoas o vissem apenas como um craque que se tornou médico, sem destacar que ele era um dos primeiros médicos negros a se formar pela mais importante universidade do estado. No entanto, mais de 70 anos depois, a relação entre esporte e medicina virou motivo de orgulho.

Memórias da bola

Na densa pasta dos documentos, herdada do próprio tio, Ozeil resgata dezenas de recortes de jornais que remontam a trajetória da família no futebol, em especial no Ferroviário, um dos clubes que se fundiram até formar o atual Paraná Clube e que até o fim da década de 60 rivalizava em força com Coritiba e Athletico.

Ao lado dos irmãos João Ferreira Santos, o Janguinho, e José Ferreira Santos, pai de Ozeil, Oswaldo integrou no time do Ferroviário o que foi considerado um dos melhores meios de campo do país na década de 1930. “Eis aí a razão dos retumbantes sucessos do Ferroviário, enquanto pôde alinhar em seu ‘esquadrão de aço’ os irmãos Ferreira”, traz um dos trechos lidos com saudosismo pelo sobrinho em referência ao clube formado por antigos funcionários da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) .

Recorte de jornal fala sobre desempenho inigualável dos irmãos FerreiraAniele Nascimento/Gazeta do Povo

Não se sabe ao certo o que levou o então jovem Oswaldo, mais novo, a vestir a camisa do Ferroviário. Mas não há dúvidas que a carreira, a glória e a persistência dos irmãos foram decisivas.

Janguinho era um dos nomes da equipe do Santos que levou o primeiro título do clube que mais tarde formaria Pelé, o Campeonato Paulista de 1935. Pelo sucesso, Janguinho foi o terceiro atleta negro a ser contratado pelo Coritiba em 1942 - o pioneiro, segundo o Grupo Helênicos, dedicado à história alviverde, foi Moacir Gonçalves em 1932, e o segundo Bananeiro, o quarto dos irmãos Ferreira, em 1941. O sucesso do pai de Ozeil, José Ferreira, também pesou. Irmão mais velho de Oswaldo, ele passou pelo Santos e pelo Palestra Italia (atual Palmeiras) antes de fazer nome no Ferroviário. Era o sangue gritando mais alto.

Mas no caminho contrário do qual seria traçado anos mais tarde pelos craques Tostão e Sócrates, ambos também atletas e médicos, o filho mais estudioso de Claro Lourenço e Lucilia Ferreira -— casal que deixou Santos para viver em Curitiba por volta de 1915 — decidiu largar a bola e investir em uma carreira longe dos campos. Em 1939, já duas vezes campeão paranaense pelo Ferroviário, ingressou na Faculdade de Medicina e só não enfrentou hostilidade maior durante os seis anos em que passou entre um grupo de pessoas brancas e ricas no curso superior porque tinha a fama a seu favor.

“Eu lembro pouco, mas é claro que sei que ele foi um estudante e um jovem médico fantástico. Como ele era craque e era muito inteligente, conseguiu superar as barreiras. De certa forma, a fama que ele tinha ajudou muito, mas mesmo assim acho que esteve longe de ser fácil”, afirma Oziel, que em dezembro do ano passado doou uma cópia do diploma do tio à UFPR.

Dependente de uma renda nos anos de curso, Oswaldo continuou correndo atrás da bola até se formar. Nesse meio tempo, levou mais um campeonato, o de 1944, para seu currículo de atleta. Até a formatura o afastar totalmente das jogadas profissionais.

Logo após conseguir o diploma, Oswaldo se especializou em Pediatria. Trabalhou como médico do governo em várias cidades do interior do Paraná, entre elas Bituruna, no Sul do estado, e Guaraqueçaba, no Litoral, mas na década de 1950 decidiu se mudar para São Paulo, onde abriu um hospital próprio para atendimento a crianças. Sem deixar de estudar, foi nomeado em 1961 integrante do American Academy of Pediatrics, renomada entidade criada para discutir normas de saúde pediátrica Era casado, mas não teve filhos. Dava aos sobrinhos a atenção de pai que lhe cabia.

“Ele sempre foi uma pessoa organizada. Era bem mais quieto que os outros irmãos, mas sabia gostar do jeito dele”, relembra o sobrinho .

Oswaldo morreu em julho de 1990 em São Paulo, aos 73 anos. Ao longo da carreira, juntou centenas de diplomas e condecorações e, mesmo dentro dos consultórios, nunca deixou de agradecer ao futebol pela vida que construiu. “Ele foi para longe, mas nunca deixou de estar por perto. Era mesmo brilhante. Essa história é uma daquelas que não dá pra deixar ninguém apagar”, finaliza o cônsul.

Diploma de Oswaldo Ferreira dos Santos: jovem negro se formou em Medicina pela Faculdade de Medicina do PR em 1945Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

O primeiro

Foi Antenor Pamphilo dos Santos o primeiro médico negro formado em Medicina no Paraná, na década de 1920. Além de ajudar a fundar a unidade estadual da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, foi catedrático de Fisiologia da Universidade Federal do Paraná.

Em 1961, na direção da Faculdade de Medicina, esteve na linha de frente da inauguração do Hospital de Clínicas (HC) da instituição – um dos mais importantes hospitais do estado.

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