Uma foto que registra Carlos Ghosn com ares messiânicos, as mãos erguidas para o alto sombreando seu rosto, registra bem o que o executivo representa para a cultura do Japão: uma espécie de astro pop. Por resgatar a Nissan de uma crise profunda, que se arrastava desde os anos 1990, ele parecia imbatível. Até ser preso, em novembro, pela polícia da Tóquio. Na Itália, outro executivo que retirou não uma, mas duas montadoras — Fiat e Chrysler — de um caminho de trevas parecia imbatível. Sergio Marchionne morreu de forma súbita, em julho, aos 66 anos.
A saída de cena de dois dos principais nomes do setor automobilístico nas últimas décadas marcou 2018 como um ano terrível para lideranças de montadoras ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, o presidente da Ford foi demitido meses após assumir o cargo. O grupo Volkswagen segue às voltas com o escândalo “dieselgate”, com direito a prisão do CEO da Audi. As ações da Tesla despencaram após sucessivos comentários polêmicos de seu presidente, o bilionário Elon Musk.
À crise na liderança, soma-se o fato de que a indústria automobilística vive uma transformação sem igual em seu modelo de negócios. “Desde que Henry Ford criou seu modelo de produção industrial, o mercado sempre andou de lado, durante 100 anos a indústria viveu de produzir e vender veículos, sem muita mudança no modelo de negócios”, explica o diretor da KPMG Ricardo Bacellar.
De um lado, a indústria é pressionada para abandonar a matriz energética de combustíveis fósseis. Ao mesmo tempo, o carro deixa de ser um objeto de consumo para ser, cada vez mais, uma peça dentro de uma engrenagem de mobilidade nas grandes cidades, o que implica em novas formas do consumidor se relacionar com o produto — e obriga as fabricantes a pensarem em outras linhas de negócio.
Momento delicado para perder um grande líder. “Quando o Marchionne faleceu, você ficava pensando se aquelas ideias iriam embora com ele”, lembra Bacellar, que esteve com o executivo em um bate-papo sobre o futuro da indústria, poucas semanas antes, no Brasil. “E hoje vemos que não”.
É uma preocupação justa. No caso de Marchionne, em especial, e de Ghosn, em parte, muitas medidas que garantiram o sucesso das empresas eram reflexo da personalidade individual de seus líderes. Quando assumiu como CEO da Fiat SpA, em 2004, o italiano fez uma limpa e demitiu a maior parte da alta gerência. Em dois anos, levou uma montadora com perdas de 6 bilhões de euros (2003) para um lucro de 2 bilhões de euros, graças à aliança com a General Motors.
Muitos atribuem seu sucesso ao jeito durão, implacável mesmo com os diretores mais próximos, e à rotina de workaholic 24 horas por dia. Assim como Steve Jobs, da Apple, o CEO da Fiat utilizava sempre roupas simples e parecidas, como se fosse um uniforme. O modelo de gestão foi exportado para a falida Chrysler, incorporada à Fiat em 2014. No ano passado (2017), o grupo registrou lucro de 3,5 bilhões de euros.
A força do líder
“Sempre que você vê uma organização com um líder forte, isto torna ela mais fragilizada, porque você tem que lidar com a possibilidade de que esta figura se ausente por algum motivo”, avalia o advogado Marcelo Bertoldi, especialista em governança corporativa. Dependência que pode ser minimizada com uma cultura organizacional forte. Que pode, inclusive, incorporar parte dos valores individuais destes líderes.
Bertoldi cita o exemplo da Apple, que sempre foi vista como sinônimo de seu fundador, Steve Jobs. “Quando ele se afastou e faleceu havia um temor por parte do mercado de que ela não conseguisse fazer a transição, cultivar seus quadros, e, até agora, ela está conseguindo, em um ramo até mais difícil do que o das montadoras”.
Da mesma forma, o impacto do afastamento de líderes das montadoras “deve ser amortecido pela qualidade de governança que você tem nestas empresas”, avalia Bacellar, da KPMG. Há uma liderança colegiada, construída ao longo de décadas, uma estrutura dentro das empresas que muitas vezes é invisível ao grande público, mas que dá suporte a este líder de personalidade forte. É este ecossistema que precisa emergir em momentos de crise.
Governança faz sistema reagir
Este movimento da própria estrutura organizacional se remodelar, na ausência de um grande líder, deve ser mais complexa no caso de Ghosn, já que ele exercia o papel de principal executivo de três empresas diferentes: Nissan, Renault e Mitsubishi Motors. Além disso, o caso ainda é muito recente. Ghosn segue preso, acusado por procuradores de Tóquio de utilizar a Nissan para enriquecimento pessoal, e a aliança ainda não indicou um substituto. As três optaram por tomar decisões de forma colegiada, por enquanto.
O caso da Ford é um exemplo de bom funcionamento da estrutura. O engenheiro Raj Nair, presidente da Ford na América do Norte, foi afastado do cargo no início do ano poucos meses após assumir a mais lucrativa unidade da empresa.
Após o recebimento de denúncias via canal interno, uma investigação dentro da empresa identificou que o executivo se comportou de forma inadequada, e a Ford afastou Nair por ser “inconsistente com o código de conduta da companhia”. O mercado financeiro reagiu bem. Marcelo Bertoldi considera o caso “a prova de como o sistema pode funcionar bem, repelindo agentes que representem riscos ao negócio, aos acionistas”.
Dieselgate
A Volkswagen segue pagando o preço por um escândalo que eclodiu em 2015, conhecido como “dieselgate”. Pesquisadores norte-americanos descobriram que, entre 2007 e 2015, a montadora fabricou carros embarcados com um software que falsificava a medição de poluentes emitidos pela combustão do motor. Os testes são exigências de muitos órgãos regulatórios para liberar veículos a diesel.
A companhia reconheceu o erro, e tem reagido até com certa humildade, sempre com declarações de que está disposta a pagar por aquilo que deve. As estruturas de governança agiram, e várias camadas de gestão foram impactadas. Muitos grandes executivos tiveram que deixar a companhia.
O advogado Marcelo Bertoldi considera este um caso clássico de conflito de interesses entre os donos de negócio, que têm interesse em fazer o negócio se perpetuar, e os gestores que pensam no bônus do final do ano, sem levar em conta as consequências duradouras que uma ação fraudulenta pode causar. “Foi um desvio de comportamento muito grave”.
Piorou a situação a prisão do presidente da Audi, braço de luxo do grupo, Rupert Stadler, em junho deste ano. Inicialmente a Audi passou ao largo as investigações do dieselgate, até que o Departamento de Justiça dos EUA identificou que fraudes na emissão de poluentes tinham se originado na empresa
A Audi substituiu quatro dos sete conselheiros em 2017, mas Stadler permaneceu. O executivo que chefiou a organização durante os anos de fraude foi também a aposta da Audi para o período de transição.