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Fábrica da Jeep em Pernambuco: incentivo fiscal a montadoras nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste custa caro e tem baixo impacto socioeconômico, concluiu auditoria do TCU e da CGU.
Fábrica da Jeep em Pernambuco: incentivo fiscal a montadoras nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste custa caro e tem baixo impacto socioeconômico, concluiu auditoria do TCU e da CGU.| Foto: Reprodução/Jeep

Os benefícios fiscais para montadoras instaladas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste custam cerca de R$ 5 bilhões por ano aos cofres federais e, ao contrário do prometido, não promovem o desenvolvimento regional.

Em vigor há mais de duas décadas, a renúncia bilionária de impostos – que é bancada pelos demais contribuintes brasileiros – teve baixo impacto socioeconômico, em geral restrito a poucos municípios, e não conseguiu descentralizar a indústria automotiva do país.

Essas são as principais conclusões de uma auditoria conjunta realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) sobre as chamadas Políticas Automotivas de Desenvolvimento Regional (PADR). O relatório, obtido pela Gazeta do Povo, foi analisado pelo plenário do TCU na tarde desta quarta-feira (29) e aprovado por unanimidade pelos nove ministros da Corte.

"As PADR, ao custo de mais de R$ 5 bilhões anuais e mais de R$ 50 bilhões desde 2010, tiveram impacto pequeno e localizado no PIB per capita, no emprego geral e no emprego técnico-científico, não contribuindo assim para o desenvolvimento regional, seu maior objetivo. A instalação das fábricas beneficiárias não resultou em aglomeração industrial ao seu redor, e as empresas compram a maior parte de seus insumos de fornecedores das regiões Sudeste e Sul", aponta o relatório.

O incentivo fiscal foi implantado no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) por duas leis, uma de 1997 e outra de 1999, que garantem crédito presumido de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) às fábricas de veículos e peças das três regiões.

O benefício, que inicialmente duraria até 2010, foi sucessivamente prorrogado pelo Congresso, sem qualquer comprovação de retorno socioeconômico, e agora vale até o fim de 2025.

Segundo a auditoria do TCU e da CGU, entre 2010 e 2021 a União abriu mão de R$ 51 bilhões em impostos de montadoras instaladas nas regiões contempladas, em valores corrigidos pela inflação. Entre 2017 e 2021, a renúncia foi de mais de R$ 5,6 bilhões por ano, em média. "Um custo que é redistribuído para todos os demais pagadores de impostos", apontam os auditores.

No caso da fábrica da Fiat Chrysler (hoje grupo Stellantis) em Goiana (PE), onde são produzidos os modelos da marca Jeep, a renúncia de impostos equivale a R$ 34,4 mil mensais por emprego gerado, "sem que, com isso, tenham ocorrido alterações significativas na realidade socioeconômica desse município", conforme o relatório.

Esse valor, referente a 2019, diz respeito apenas à desoneração federal, e portanto não inclui renúncias fiscais estaduais e municipais. Naquele ano, segundo a auditoria, a montadora foi beneficiada com pouco mais de R$ 4,6 bilhões em incentivo tributário da União, ou R$ 388 milhões por mês, para um total de 11.258 empregos gerados.

O documento compara o custo relativo da desoneração tributária a outros programas do governo. Enquanto cada emprego gerado pela fábrica da Jeep custa mais de R$ 34 mil por mês aos cofres federais, a despesa por família beneficiada pelo Auxílio Brasil (rebatizado de Bolsa Família) é de R$ 600 mensais. No caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas com deficiência, o valor é de pouco mais de R$ 1,2 mil por mês.

Redução de impostos para montadoras teve baixo impacto socioeconômico

O baixo impacto socioeconômico foi a regra em todos os territórios que tiveram plantas instaladas sob o lastro dos benefícios tributários, diz o relatório que foi aprovado pelos ministros do TCU.

Além da fábrica da Jeep, desfrutam das desonerações empresas como HPE Automotores, que monta veículos das marcas Mitsubishi e Suzuki em Catalão (GO), e Caoa, fabricante das marcas Hyundai e Chery em Anápolis (GO). A Ford também fez parte do programa, com fábricas da própria marca em Camaçari (BA) e da Troller em Horizonte (CE), mas no fim de 2021 a empresa encerrou a produção de veículos no país.

Segundo a auditoria, a política de redução de tributos foi incapaz de promover uma aglomeração industrial no entorno das fábricas. De todos os insumos adquiridos pelas cinco unidades analisadas, 71% são produzidos no Sudeste e 7% no Sul do país, e apenas 22% vêm das três regiões que as políticas automotivas buscam desenvolver.

Outra evidência do impacto limitado do incentivo fiscal é a participação de cada região do país no emprego da indústria automotiva. De acordo com o relatório, a parcela do Nordeste aumentou de 3% para 6% entre 2006 e 2020 , mas a participação conjunta das três regiões beneficiadas pela política de desoneração manteve-se em apenas 8%. E o mesmo aumento de 3% ocorreu na fatia da região Sul, que não foi beneficiada pelos programas.

Também entre 2006 e 2020, o número de empregados na indústria automotiva no Norte, Nordeste e Centro-Oeste aumentou em 16.082, enquanto na região Sul o aumento foi de 18.153. O relatório de TCU e CGU não aborda os impactos da saída da Ford, que certamente piorou os números do Nordeste a partir do fim de 2021.

"O que se observa é que as PADR estão desarticuladas das políticas de investimentos e de desenvolvimento regional. Ao serem pensadas para incentivar empresas específicas individualmente, sem considerar a necessidade de formação de cadeias produtivas, as PADR não atacam as alegadas 'desvantagens naturais' das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste", aponta a auditoria.

Outro exemplo do baixo impacto socioeconômico da redução de impostos para montadoras é o desempenho do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), calculado a partir dos dados dos dois últimos Censos, de 2000 e 2010. Segundo o relatório, a variação desse indicador nas localidades beneficiadas pela desoneração não foi maior que nas demais regiões do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Incentivo a montadoras repete erros desse tipo de programa

Uma das primeiras constatações dos auditores do TCU e da CGU é que a política de incentivo fiscal a montadoras repete erros comuns nesse tipo de programa, apontados por diferentes estudos nos últimos anos.

A começar pelo fato de que a iniciativa não partiu de um diagnóstico prévio. Não se sabe qual problema público será atacado.

Esse erro original leva a outros. Sem conhecer o problema, a União também não sabe que resultado quer atingir com o incentivo fiscal. Não há, portanto, objetivos concretos, indicadores, metas ou prazos.

"Essas políticas não dispõem de modelo lógico que explique como as intervenções estatais tratarão as causas de um problema público ao menor custo possível", diz o texto.

Tampouco está definido quem é o responsável pela supervisão e avaliação do programa. "As PADR apenas 'existem', embora seus papeis de direção, supervisão e coordenação de implementação, monitoramento e avaliação, quase em sua totalidade, não tenham sido estabelecidos", apontam os auditores.

Problemas semelhantes foram identificados anteriormente pelo TCU em outros incentivos fiscais. Entre eles, os da Lei de Informática, de 1991, e da Lei do Bem, de 2005. Em ambos os casos, o benefício tributário não foi desenhado como instrumento de uma política pública mais ampla, e sim como um fim em si mesmo.

Relatório busca impedir que benefício seja prorrogado sem alterações

Os problemas detectados pelos auditores do TCU e da CGU não impediram que o benefício fiscal para as montadoras fosse prorrogado pelo Congresso em pelo menos três oportunidades, com a duração sendo estendida para 2015, depois 2020 e, mais recentemente, 2025.

A principal recomendação feita pelos auditores, e aprovada pelo plenário do TCU, diz respeito justamente a futuras renovações do benefício.

O documento propõe notificar ministros e outros agentes públicos de que o envio de proposta de prorrogação dessa política, sem revisão e alterações estruturais, "poderá caracterizar conduta irregular", ferindo o artigo 37 da Constituição – segundo o qual a administração pública deve obedecer aos princípios de "legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência" – e outras normas.

O relatório também propõe notificar o Ministério da Fazenda a apresentar, em até 90 dias, um plano de ação para avaliar, definir responsáveis e melhorar a governança das políticas automotivas.

Governo federal abre mão de mais de R$ 450 bilhões por ano

O incentivo às montadoras é parte de um oceano de benefícios fiscais concedidos pela União, por iniciativa do próprio Executivo ou do Legislativo, na maioria dos casos sem governança ou avaliação de resultados.

Na soma de todas as desonerações, o governo federal deixará de arrecadar R$ 456 bilhões neste ano, ou 4,3% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo estimativas da Receita Federal. As renúncias equivaliam a menos de 3% do PIB até meados dos anos 2000, mas ganharam impulso com iniciativas dos governos petistas para impulsionar o crescimento econômico, passando da marca de 4% do PIB nos primeiros anos da década seguinte.

No fim de 2022, a equipe de transição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) indicou a pretensão de reavaliar as renúncias fiscais. Até agora, porém, o governo se limitou a desfazer benefícios criados no ano passado – como a desoneração dos combustíveis – e não apresentou proposta de revisão mais ampla.

Em sentido oposto, Lula acaba de criar mais uma desoneração. Decreto publicado nesta quarta-feira incluiu o segmento de fotovoltaicos, para produção de energia solar, dentro de um programa de apoio à indústria de semicondutores que, em 2023, prevê renúncia fiscal de mais de R$ 600 milhões.

O governo de Jair Bolsonaro (PL) também quis cortar benefícios, sem sucesso. Aprovada em 2021, em meio à pandemia, a Emenda Constitucional 109 obrigava o Executivo a apresentar um plano para reduzir os incentivos a 2% do PIB até 2029 – menos da metade do nível atual.

O plano foi apresentado, mas está parado na Câmara desde então. E mesmo sua eventual aprovação teria efeito quase nulo: o programa foi desidratado por manobras feitas pelo Congresso, que proibiu cortes nos principais incentivos, e por uma contabilidade criativa feita pelo Executivo.

O resultado é que o plano, em vez de cortar o equivalente a 2% do PIB, se propôs a eliminar benefícios correspondentes a apenas 0,06% do PIB – pouco mais de R$ 4 bilhões ao ano, segundo a conta do governo na época.

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