Você sempre pensou que Bono Vox, The Edge e o resto do U2 fossem irlandeses. Hoje em dia, no entanto, eles são holandeses. Ao menos é o que declaram à Receita desde que transferiram o domicílio fiscal para Amsterdã, em 2006, depois que o governo de seu país acabou com uma isenção tributária para artistas que ganhassem mais de 250 mil euros anuais – no ano anterior, a banda havia faturado US$ 260 milhões apenas com a turnê Vertigo.
Quando o U2 deixou a Irlanda, o país ainda crescia ao sabor de uma bolha financeira e imobiliária. Depois do estouro, a economia encolheu quase 10% em três anos. O governo cortou direitos trabalhistas e baixou o salário dos servidores em 30%. Enquanto o contribuinte comum rachava a conta de um resgate bancário equivalente a um terço do PIB nacional, o multimilionário Bono Vox, bom moço e ativista-mor do show biz mundial, se complicava mais a cada tentativa de justificar sua recusa em participar do rateio.
Mais que tudo, o que atrai o Davos Man a Zug é que aqui ele não sente culpa. Em lugares como o Panamá, Belize ou nas Ilhas Cayman, indivíduos vestidos de bermudas e protegidos por seus óculos de sol Ray-Ban, com uma maleta cheia de dinheiro pendurada em um braço e uma morena estonteante no outro, são a imagem que as pessoas esperam ver em um paraíso fiscal (...) Em Zug, as mães vão buscar os filhos no colégio em bicicletas com side-car, todos protegidos com capacetes. Os carros, até mesmo os Porsche, param para deixar passar os pedestres. Aqui alguém que pratica a evasão fiscal pode se sentir como um capitalista filantrópico em Davos, contribuindo para o progresso e a civilização.
A história está em um dos melhores capítulos de Um repórter na montanha mágica: como a elite econômica de Davos afundou o mundo, do jornalista inglês Andy Robinson. No livro-reportagem, o autor observa que a defesa apaixonada de paraísos fiscais e centros offshore feita pelo líder do U2 soa ainda mais incoerente a quem se acostumou a vê-lo angariar recursos para combater as mazelas da África. Os paraísos fiscais são, afinal, o principal destino do dinheiro que escapa clandestinamente do continente e ajuda a perpetuar sua miséria – em três décadas, a fuga de capital somou US$ 420 bilhões, o dobro da dívida externa dos países africanos.
Num texto carregado de sarcasmo, Um repórter na montanha mágica conta quem são, o que fazem e de que se alimentam alguns dos ricaços que frequentam, todo mês de janeiro, o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Os sanatórios que lá existiam no início do século 20, depois transformados nos suntuosos hotéis que hospedam os Davos Men e suas festas, serviram de inspiração para A montanha mágica, de Thomas Mann, obra com que Robinson traça paralelos ao longo de seu livro.
É claro que, ao atribuir a ruína da economia mundial aos habitués do Fórum, Robinson vez por outra flerta com o exagero e a simplificação. No afã de condenar os defensores intransigentes de agressivos ajustes fiscais, acaba por absolver de antemão, sem o mesmo senso crítico, países que obviamente viviam além de suas possibilidades, como a Grécia. Mas a crítica mordaz às práticas dos Davos Men e suas multinacionais e a análise que ele faz da evasão fiscal e suas consequências são precisas e valem a leitura.
Ofensiva contra a evasão
No início do mês, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) lançou um pacote com 15 medidas para tentar conter as práticas de evasão fiscal de multinacionais. O pacote, considerado a mais ampla reforma do padrão tributário internacional em quase um século, busca forçar as companhias a declarar seus lucros nos países onde são obtidos. As artimanhas legais e ilegais usadas pelas múltis – fazendo lucros desaparecer ou transferindo-os para paraísos fiscais – provocam perdas de arrecadação estimadas entre 100 bilhões e 240 bilhões de euros por ano, segundo a OCDE.
Filantropia salva
Embora calça de couro, barba de dois dias e óculos bizarros destoem do figurino dos Davos Men, Bono tem lugar de destaque no livro por incorporar como poucos a fórmula mágica do Fórum, segundo a qual as mais labirínticas estruturas de evasão tributária podem ser perdoadas e até justificadas mediante contribuições para boas causas – ainda mais se as doações, tão apropriadas ao marketing institucional, corresponderem a uma singela fração do imposto evitado.
A fortuna do roqueiro e os impostos que ele deixa de pagar não se comparam às cifras das companhias que se instalam em lugares como Zug, vilarejo suíço de 19 mil habitantes que é sede de 29 mil empresas, das quais 500 multinacionais. Ali fica, por exemplo, a sede europeia do Burger King, cadeia de fast food que tem entre seus donos Jorge Paulo Lemann, o mais rico empresário brasileiro. A maior parte do faturamento da rede na Europa vem da Alemanha, do Reino Unido e da Espanha, onde o imposto sobre a renda varia de 25% a 30%. Mas, ao transferir seus resultados para Zug, ela recolhe só 12%.
A engenharia fiscal, explica Robinson, não só reduz a capacidade de autofinanciamento dos Estados nacionais, como destrói a competividade de micro, pequenas e médias empresas – além de não ter porte nem dinheiro para montar esquemas semelhantes, seus preços não têm como competir com os de quem mal paga imposto.
O livro mostra que o Burger King é um entre centenas. Outros gigantes da alimentação, como McDonald’s, Subway e Starbucks, agem de forma semelhante. O mesmo fazem, na área da tecnologia, companhias como Apple, Google e Facebook. Outras tantas empresas, de variados setores, adotam estratégias parecidas.
“Talvez o exemplo mais triste”, escreve o jornalista, “seja o que ocorreu com a Coca Cola Hellenic”. Maior empresa grega e segunda maior engarrafadora da Coca no mundo, a CCH transferiu a sede para Zug em 2012, “abandonando à própria sorte a Grécia, um país cuja arrecadação tributária é uma questão de vida ou morte”.
Andy Robinson, Editora Apicuri, 224 pp., R$ 39
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