Bancos e consultorias têm alertado seus clientes para o risco de uma “crise fiscal” no Brasil, apontando para eventuais dificuldades do governo em honrar seus compromissos nos próximos anos.
As contas públicas estão no vermelho desde 2014 e sabe-se que não voltarão ao azul tão cedo. O gasto gigantesco com o enfrentamento da Covid-19 e a consequente disparada da dívida pública, embora obviamente não estivessem no radar até o início deste ano, também já foram devidamente absorvidos pelo mercado.
A novidade que tanto preocupa está nas sinalizações para o futuro das contas públicas. O aumento da popularidade do presidente Jair Bolsonaro entre os mais pobres e o temor de uma forte queda na renda e na atividade econômica em 2021, após o fim do auxílio emergencial, instalaram no Planalto a obsessão por um novo programa assistencial, na verdade uma ampliação do Bolsa Família.
Para existir, esse programa – que já foi chamado de Renda Brasil e agora atende por Renda Cidadã – precisa de dinheiro. Dezenas de bilhões de reais, que hoje não estão disponíveis. O governo terá de cortar verba de outras áreas se quiser manter o teto de gastos, dispositivo criado em 2016 que o Ministério da Economia e boa parte do mercado veem como principal, senão única, “âncora fiscal” do país.
O problema é que o presidente Jair Bolsonaro vetou praticamente todas as soluções que respeitassem o limite de despesas, por soarem impopulares. Com isso, e também com a perda de prestígio do ministro Paulo Guedes, cresceram as chances de que o teto seja rompido ou, no mínimo, contornado com artifícios de contabilidade criativa – as populares “pedaladas fiscais”.
Na visão do mercado, se o país não tiver mais uma âncora fiscal, qualquer que seja ela, financiar o governo passa a ser mais arriscado. O que leva os investidores a exigirem juros mais altos para emprestar dinheiro. O efeito se dá principalmente sobre os juros futuros, de títulos que vão vencer daqui a alguns anos – eles estão muito acima do nível atual da taxa Selic, que é de 2% ao ano, patamar mais baixo da história.
A turbulência dificilmente passará enquanto não houver evidências de que a política fiscal seguirá no caminho do controle dos gastos e da dívida pública. Como costuma dizer o analista Fabio Klein, da Tendências Consultoria, “acabou a complacência” do mercado com o governo Bolsonaro.
Nos tópicos a seguir, explicamos a evolução das tensões em torno da eventual crise fiscal. Clique nos links em azul para ler mais detalhes sobre cada ponto.
11 pontos para entender o risco de crise fiscal no Brasil
No balanço entre receitas e despesas, o governo registra déficits primários – isto é, antes mesmo de pagar os juros da dívida pública – desde 2014. Antes de tomar posse, Paulo Guedes prometeu zerar esse saldo já em 2019. Estava no plano de governo de Bolsonaro: “O déficit público primário precisa ser eliminado já no primeiro ano e convertido em superávit no segundo ano”. A maioria achou impossível, e era. O rombo acabou sendo o menor desde 2014, mas ainda muito elevado: R$ 95 bilhões. O déficit de 2020 será o maior de todos os tempos, por causa da pandemia: o próprio governo espera algo próximo de R$ 900 bilhões. As projeções para 2021, mesmo com o fim do estado de calamidade pública, apontam para o segundo pior rombo da história, de mais de R$ 200 bilhões. Mesmo no cenário mais positivo, o balanço tende a ficar no vermelho por mais seis ou sete anos. O mercado não se abalou com a promessa descumprida de Guedes, pois já não acreditava nela e porque cumpri-la exigiria algum tipo de manobra fiscal indesejável. E por muito tempo os investidores mantiveram confiança irrestrita no discurso do ministro, de austeridade fiscal e respeito ao teto de gastos, porque entendiam que ele tinha o aval do presidente da República.
Apesar do déficit primário, a dívida pública do setor público caiu no primeiro ano do mandato de Bolsonaro, o que não ocorria desde 2013. Encerrou 2019 correspondendo a 75,8% do Produto Interno Bruto (PIB), ante 76,5% no fim do ano anterior. A queda na taxa de juros ajudou, mas determinantes mesmo foram operações não recorrentes: a venda de parte das reservas internacionais e a devolução de R$ 123 bilhões que o BNDES devia ao Tesouro. Mas a breve bonança acabou. O governo tomou centenas de bilhões de reais em empréstimos para enfrentar os impactos do coronavírus, o que está provocando um salto inédito na dívida. Ela chegou a 86% do PIB no fim de julho, e o Tesouro Nacional estima que a relação pode fechar o ano em 94% do PIB.
A pandemia fez a Bolsa cair e o dólar subir, mas o prestígio da equipe econômica ajudou a segurar as pontas por algum tempo. As medidas de combate ao vírus, no entanto, animaram dentro do governo um movimento por mais gastos públicos que ganhou o apelido de “fura-teto”. O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, liderou a criação de um plano de investimentos em infraestrutura – parte deles custeada pelo Estado – batizado de Pró-Brasil, com a ajuda dos colegas Braga Netto (Casa Civil) e Tarcísio de Freitas (Infraestrutura). A iniciativa fez com que Marinho, antes braço direito, se tornasse desafeto de Guedes, com direito a rusgas públicas – como, por exemplo, na reunião ministerial de 22 de abril. Bolsonaro reafirmou publicamente a liderança de Guedes e o respeito à austeridade fiscal algumas vezes desde então, mas as iniciativas fura-teto – que começaram a aparecer antes mesmo da pandemia – sempre retornam ao debate, como o próprio presidente já admitiu.
Ao mesmo tempo em que Marinho e colegas defensores de mais gastos ganhavam prestígio, Guedes foi assistindo a um esvaziamento de suas iniciativas, em parte por obra do Planalto. A letargia das privatizações e da reforma administrativa, esta sempre adiada por Bolsonaro, levaram ao que o ministro da Economia chamou de “debandada” em sua equipe, quando dois secretários pediram demissão no mesmo dia. De lá para cá, o mercado tem reagido mal a cada sinal de enfraquecimento no poder do antes “superministro”.
O debate sobre a necessidade do auxílio emergencial começou quando o coronavírus levou a medidas de distanciamento social em todo o país. Guedes defendia “vouchers” no valor de R$ 200, mas o Congresso pressionava por R$ 500. No fim, Bolsonaro bateu o martelo no valor de R$ 600, mais recentemente reduzido a R$ 300. Além de melhorar significativamente as projeções para o PIB, o benefício reduziu a extrema pobreza ao menor nível em 40 anos em plena pandemia, o que impulsionou a popularidade do presidente – a aprovação ao governo foi puxada justamente pelas pessoas desempregadas ou sem renda fixa.
O fim do auxílio emergencial está previsto para dezembro, o que fará com que milhões de pessoas fiquem sem qualquer assistência no início de 2021. Pensando nisso e em dividendos eleitorais, o governo tenta há meses “turbinar” o Bolsa Família. Mas, para criar essa nova versão, é preciso remanejar verbas de outros programas, uma vez que o Orçamento está no limite do teto de gastos e impede a ampliação de uma despesa sem a redução de outra. A ideia do Ministério da Economia para o Renda Brasil sempre foi unificar vários programas tidos como ineficientes, entre eles o abono salarial e o seguro-defeso, mas o plano foi suspenso por ordem do próprio Bolsonaro, que disse não querer “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”. Semanas depois, a proposta de congelar aposentadorias e mexer no Benefício de Prestação Continuada (BPC) levou o presidente a dizer que “até 2022 está proibido falar em Renda Brasil”. Em questão de dias, no entanto, Bolsonaro repassou ao Congresso a missão de encontrar recursos, mas o resultado disso – a proposta de usar recursos de precatórios e do Fundeb, agora sob o nome de Renda Cidadã – teve péssima repercussão entre analistas e investidores. Eles viram na ideia adiamento de despesas e burla ao teto de gastos. A apresentação formal do plano e de suas fontes de financiamento foi adiada, e deixá-la para depois das eleições, como tem sido cogitado no Planalto, prolonga a incerteza e deixa os negócios mais suscetíveis a boatos e vazamentos de informação.
Também colabora para o mau humor do mercado o fato de o governo finalmente ter mandado ao Congresso uma proposta de reforma administrativa, porém considerada muito branda – ela pouco afeta os atuais servidores e, após aprovada, terá de ser regulamentada por outras leis. Ao mesmo tempo, a reforma tributária não avança. Há duas propostas principais em discussão no Congresso, mas elas não são de iniciativa do Executivo – que, da sua proposta, só enviou a primeira de quatro fases prometidas. O maior obstáculo é a falta de um acordo para emplacar um imposto sobre transações nos moldes da antiga CPMF, em troca da desoneração da folha salarial.
Outra questão que mexe com os ânimos de investidores preocupados com crise fiscal são as conversas sobre uma eventual prorrogação do auxílio emergencial em 2021, o que tem sido negado pelo ministro da Economia. Tal extensão, claro, teria impactos sobre as contas do governo que não foram previstos no Orçamento. Ainda que negociada por Guedes, a ideia de prorrogar para o ano que vem mecanismos usados no “orçamento de guerra” de 2020 também provoca incômodo: se levada adiante, tende a expandir os gastos públicos, novamente contornando as restrições do teto.
A recessão derrubou a inflação e, com isso, levou a taxa básica de juros – a Selic – aos menores patamares da história. E juro baixo é uma boa notícia para a economia. O problema é muitos investidores que põem dinheiro em aplicações brasileiras de olho nessa remuneração têm preferido tirar seu capital daqui, num movimento que é intensificado quando crescem os temores de crise fiscal. O resultado é alta do dólar – nenhuma moeda relevante perdeu tanto valor quanto o real neste ano – e queda na Bolsa de Valores.
A queda da Selic derrubou o gasto com juros da dívida pública. Mas não tem sido fácil “rolar” essa dívida, isto é, trocar os títulos que estão vencendo agora por outros, a serem resgatados mais adiante. Meses atrás, o Tesouro Nacional avisou que enfrentava “severa condição de liquidez” – em outras palavras, pouco dinheiro para honrar compromissos – porque governo teve de emitir muita dívida para financiar o combate à pandemia e, em paralelo, houve uma demanda do próprio mercado por títulos de curto prazo. O resultado é que Conselho Monetário Nacional (CMN) autorizou a transferência de R$ 325 bilhões do Banco Central para o Tesouro, a serem usados no pagamento da dívida. O Ministério da Economia queria até mais – R$ 445 bilhões.
Todo esse estresse, que alimenta temores de crise fiscal e dificuldade do governo para honrar seus pagamentos, leva o mercado a exigir remuneração mais alta para continuar financiando o setor público. Como a preocupação é com o futuro das contas, quem mais sobe são os juros futuros, isto é, dos títulos que vencem daqui a alguns anos. No jargão do mercado, a curva de juros “empinou”. A taxa das LTNs (Letras do Tesouro Nacional) para janeiro de 2024, por exemplo, passaram de 6% ao ano dias atrás.
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