CVM deve bater recorte de investigações sobre pirâmides e irregularidades em 2019. Confira| Foto: BigStock

“Botei 30 mil reais, ganhei 6 mil em 30 dias.” Esse foi um dos argumentos que Fernando (nome fictício) ouviu antes de decidir investir na Ni Cash Trade, empresa que se apresenta como “voltada para o mercado financeiro mundial e que administra e opera fundos de investimentos”. A frase foi dita por um amigo de Fernando – os dois frequentam a mesma igreja. A publicidade da empresa, distribuída em imagens por grupos de troca de mensagens e postagens em redes sociais, é agressiva: seu plano conservador promete ganhos de 1,1% a 1,2% ao dia.

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Hein? Ao dia?

Sim, ao dia. Uma fábula, se comparado a qualquer referência do mercado. Segundo a Anbima, associação que congrega os participantes do mercado de capitais brasileiro, a média de rendimento acumulado dos fundos de renda fixa no país foi de 2,18 no período de janeiro a maio – um porcentual que os magos financeiros da Ni Cash prometem para meros dois dias. “Não temos risco de perder”, sublinha o texto de uma das imagens de divulgação da empresa, distribuída por aplicativos de mensagens instantâneas. Procuramos representantes da Ni Cash, por meio de um contato de WhatsApp com código do Panamá fornecido em sua página na rede social Facebook, mas a empresa não respondeu. Limitou-se a sugerir que a reportagem assistisse às “lives” da empresa, por não haver quem desse entrevista.

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Há outras empresas prometendo valores altos. A maioria delas trabalha com Forex, uma modalidade de aplicação em que as pessoas investem no desempenho relativo de duplas de moedas – o ganho ou perda estará relacionado à variação de uma em relação à outra. O problema é que não há nenhuma empresa autorizada a operar esse tipo de operação no Brasil.

Por isso, várias dessas companhias podem ser encontradas em uma nova página criada no site da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), instituição que regulamenta e fiscaliza o mercado de capitais no Brasil. A página de “Alertas ao Cidadão” concentra todo o material produzido pela CVM em termos de atuação irregular. A ideia da CVM é dar ao investidor desconfiado um acesso simplificado às informações sobre golpes que a comissão já identificou. E são muitos – a quantidade de esquemas fraudulentos cresceu e sofisticou-se em tempos recentes.

CVM está próxima de um recorde

“Houve um crescimento importante na quantidade de ofertas irregulares e atuações irregulares nos últimos quatro anos”, confirma o superintendente de Proteção e Orientação aos Investidores da CVM, José Alexandre Vasco. Para a CVM, essas categorias incluem um grande número de situações, desde pirâmides financeiras até a oferta de ativos sem supervisão da CVM, passando pela ação intermediários que não têm autorização para atuar no mercado. “Em alguns casos, há falta de informação por parte dos agentes. Quando notificados pela CVM, eles buscam se regularizar ou cancelam suas operações. Mas a maior parte dos casos é de golpes financeiros”, diz.

Vasco diz que a comissão prevê bater neste ano o recorde de processos administrativos de investigação. Em 2018, a CVM abriu 105 processos administrativos. Neste ano, a previsão é de que o número deve chegar a 250. A quantidade de denúncias – boa parte delas recebida a partir de relatos de vítimas que procuram a CVM depois de sofrer prejuízos – saltou de meros 47 em 2015 para 143 no ano passado. Um aumento de 204% em três anos.

Golpes estão cada vez mais sofisticados

Os golpes atuais são mais complexos e difíceis de punir, porque usam a internet e saltam fronteiras. A Ni Cash, citada na abertura deste texto, alega ter sede no Panamá. Usando de um conhecido paraíso fiscal na América Central, a empresa capta clientes no Brasil com websites em português e páginas nas redes sociais em que líderes e diretores se apresentam em vídeos para convencer brasileiros a colocar dinheiro em um esquema que mescla atividades financeiras não autorizadas pelo governo brasileiro com elementos que remetem à organização em pirâmide.

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Os clientes são estimulados a trazer novas pessoas para o sistema, com a promessa de obter pontos a partir do desempenho desses novos entrantes. Mais pontos significam mais ganhos e a possibilidade de obter brindes, como relógios, celulares, computadores, motos e automóveis. Um cliente padrão chairman, que acumulou mais de 2,5 milhão de pontos, teria direito a ganhar uma Range Rover Velar, com valor de mercado da ordem de R$ 390 mil. Como nas pirâmides clássicas, os primeiros a entrar no sistema realmente recebem benefícios altos, que são financiados pela entrada de novos componentes. Quanto mais o tempo passa, maior a chance de o esquema todo desmoronar. E, consequentemente, dar o calote em todos os participantes.

Na Ni Cash, as pessoas são convencidas a investir valores a partir de US$ 13, seguindo um plano de negócios que menciona vagamente “opções binárias” e criptoativos. Opções binárias são uma das formas de se referir ao mercado Forex. Pelas regras da CVM, esse tipo de aplicação é equivalente aos derivativos financeiros, e precisaria de autorização da própria comissão para ser ofertada a clientes brasileiros. Como não o é – na verdade, não há nenhuma empresa hoje que tenha esse tipo de licença –, sua atuação é irregular.

Neste ano a CVM já emitiu atos declaratórios e deliberações comunicando a ilegalidade de sete iniciativas desse tipo (World Way Capital, Liteforex, FX Trading, Capzone Invest, Smartex International, Unick e Zero 10 Club).

Já os criptoativos são moedas virtuais, das quais a mais conhecida é o bitcoin. Essas moedas existem em um vácuo de regulação, e representam um risco porque ninguém sabe realmente qual é a sua solidez e suas perspectivas. “Há uma preocupação dos bancos centrais do mundo inteiro para regulamentar isso”, observa o presidente do Conselho Regional de Economia do Paraná, Carlos Magno Bittencourt. “Nesse campo, tudo está muito disperso, pouco nítido. Em teoria, é papel do Estado regulamentar a emissão de moeda, mas a característica dessas criptomoedas é justamente ser transnacional. Então como fazer?”, indaga.

Vasco, da CVM, diz que a instituição tem alianças estratégicas com reguladores de outros países, o que permite uma atuação internacional. Mas, na prática, muitas dessas instituições suspeitas continuam operando e angariando clientes mesmo depois de serem advertidas e multadas. “Algumas são muito bem sucedidas na arrecadação, e isso realimenta o ciclo”, diz.

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E há ainda aquelas que, depois de advertidas pela CVM, usam isso como argumento de venda, alegando que estão regularizando sua situação perante o órgão brasileiro. E continuam no ar.

Só neste ano, a CVM emitiu documentos alertando contra a atuação irregular de sete empresas no mercado Forex: World Way Capital, Liteforex, FX Trading, Capzone Invest (que opera com a marca HQ Broker), Smartex International  (ou OlympTrade), Unick e Zero 10 Club. Destas, apenas FX Trading e World Way Capital estavam fora do ar na segunda-feira, 8 de julho. Todas as outras mantinham no ar páginas em português captando clientes. A Unick tem feito propagandas em redes de Whatsapp, inclusive com o uso de celebridades. Em seu plano bienal de supervisão de risco, a CVM avaliou as operações de Forex como de risco médio-alto para o mercado, e impôs como meta para o período 2019/2020 a realização de buscas ativas para identificar esse tipo de operação e alertar os investidores a respeito.

No caso da Ni Cash, há ainda o agravante de que as operações são feitas à margem dos bancos. As transferências feitas por Fernando têm sido emitidas e recebidas (no caso do pagamento de rendimentos) por meio da empresa Urpay Tecnologia em Pagamentos. “É um banco virtual”, afirma o cliente, reproduzindo o que conta ter ouvido em sua rede de investidores. Na verdade, é uma empresa de meios de pagamentos – as populares “maquininhas” de cartão de crédito.

A Zero 10 Club contestou nesta terça-feira (9) a informação de que continua captando clientes. Em nota enviada pela assessoria de imprensa, a empresa disse que " acatou recomendação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e encerrou suas atividades".

O fato de as operações se darem à margem do sistema financeiro acaba por estimular o comportamento de pirâmide. “Toda operação financeira é baseada em confiança. Você não entrega o seu dinheiro a alguém que você não confia”, diz José Alexandre Vasco. “No sistema financeiro, a confiança é nas garantias que o Estado dá e à solidez das instituições. Já esses sistemas se apropriam da confiança entre as pessoas. Por isso os sistemas de pirâmide acabam se proliferando em locais como clubes, igrejas, associações. Ali eles correm de um indivíduo para o outro e acabam ficando fora do radar do órgão regulador.”

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Educação financeira é o melhor remédio

O consultor financeiro Altemir Farinhas diz que a chave para combater esse tipo de fraude é a educação financeira. “As pessoas precisam saber que não há como obter rendimentos desse nível legalmente”, diz.  Além disso, ele observa que as pessoas que recrutam novos clientes para a pirâmide podem ser indiciados como responsáveis. “Muita gente pensa que só os criadores do sistema são criminalizados. Na verdade, todo aquele que angaria clientes pode ser responsabilizado.”

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]