O desafio do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de equilibrar as contas públicas em 2024 pode ser ainda maior do que “apenas” arranjar R$ 168 bilhões a mais em arrecadação. Segundo analistas, o total de gastos projetado no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do ano que vem estaria subestimado em mais de R$ 20 bilhões.
A diferença poderia levar ao descumprimento da meta de zerar o déficit primário mesmo com o aumento de receitas visado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O quadro ainda pode ser agravado caso o Congresso aprove uma série de medidas em tramitação que preveem forte redução de arrecadação ou elevação de despesas – as chamadas "pautas-bomba".
A principal subestimação estaria nas despesas com a Previdência, projetadas em R$ 913,9 bilhões na peça orçamentária apresentada no fim de agosto pelo governo. A Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, calcula que o gasto, na verdade, deve ficar em R$ 932,4 bilhões, uma diferença de R$ 18,5 bilhões.
Para Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da Ryo Asset e especialista em contas públicas, o governo estaria prevendo um gasto de cerca de R$ 14 bilhões a menos nessa rubrica. “A diferença é principalmente por conta da zeragem da fila do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] que o governo diz que vai fazer”, explica. “Ainda que não zere a fila, vemos um crescimento muito forte no número de beneficiários, então é uma variável que preocupa”, diz.
Nos cálculos do economista, haveria subestimação ainda em despesas com folha de pagamento, Benefício de Prestação Continuada (BPC) e Bolsa Família. “Por baixo, são quase R$ 20 bilhões de despesas subestimadas, em um contexto em que a receita está superestimada”, afirma.
Para Barros, os R$ 168 bilhões que o governo prevê arrecadar a mais em 2024 dificilmente serão alcançados, principalmente em razão do que a Fazenda prevê obter com a retomada do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) – em torno de R$ 54,7 bilhões.
“A Petrobras é a empresa que mais tem litígio no Carf, mas para ter esse acordo, os diretores precisam concordar com a desistência dessas ações em disputa”, explica. “Só que, sem um amparo jurídico, eles podem ser responsabilizados na pessoa física, então é muito difícil eles tomarem esse risco”, diz.
A medida provisória (MP) que regulamenta a isenção tributária para créditos fiscais vindos de subvenção para investimentos também deve ser desidratada no Congresso, avalia o economista. O texto regulamenta uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), segundo a qual créditos fiscais devem ser incluídos na base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
O Ministério da Fazenda calcula que a medida teria o potencial de gerar mais R$ 35 bilhões de arrecadação no próximo ano, mas há resistência entre parlamentares que consideram a mudança prejudicial principalmente para empresas do Nordeste e criticam o fato de não haver um prazo para transição.
O economista Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos, estima que as despesas com Previdência devem ficar próximas de R$ 937 bilhões em 2024, R$ 23,1 bilhões acima do calculado pelo governo. “A previsão no Orçamento está abaixo até do crescimento com o aumento do salário mínimo”, diz.
Segundo ele, o gasto com o Bolsa Família também estaria subestimado, em cerca de R$ 10,5 bilhões. “A peça orçamentária traz R$ 169,5 bilhões, mas o benefício anualizado estaria mais perto de R$ 180 bilhões”, afirma. “Mas nesse caso é menos preocupante, porque o governo consegue ter algum controle sobre essa despesa na medida em que pode retirar famílias do quadro de beneficiários”, ressalta.
“Este ano vimos o governo fazer uma revisão nos cadastros, verificar fraudes e excluir famílias, de modo que hoje há um conjunto menor de beneficiários do que havia no início do ano. É possível fazer esse ajuste, então a preocupação é menor. No caso da Previdência, não tem como”, aponta Sbardelotto.
Governo quer cortar R$ 12,5 bilhões em gastos com Previdência
O governo calculou a despesa previdenciária de 2024 levando em conta uma redução de R$ 12,5 bilhões com cortes de gastos, segundo notas técnicas internas obtidas pelo jornal “Valor Econômico” por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
De acordo com a publicação, a economia viria principalmente de três ações. A primeira seria a automação de processos de recuperação de valores depositados após o óbito do segurado.
A segunda, a otimização do processo de estorno de valores não recebidos pelos beneficiários e que são devolvidos pelos agentes pagadores.
A terceira e principal medida seria o fortalecimento das ações de prevenção de irregularidades.
“Eu acho que é um número incerto para compor a peça orçamentária. Poderia ser sido feito como no Bolsa Família deste ano, em que na dotação inicial da LOA [Lei Orçamentária Anual] não constava os efeitos da revisão cadastral”, disse a economista Vilma Pinto, diretora da IFI, ao jornal.
Pautas-bomba podem deixar cumprimento da meta fiscal ainda mais distante
Não bastassem as despesas subestimadas, as chances de se cumprir o objetivo estabelecido no novo arcabouço fiscal podem ficar ainda mais distantes caso o Congresso aprove uma ou mais pautas-bomba já em tramitação.
Uma delas é a proposta de emenda à Constituição (PEC) aprovada no Senado que, caso passe também na Câmara, pode incorporar à folha de pagamento do governo federal até 50 mil servidores públicos que eram contratados dos antigos territórios federais de Rondônia, Amapá e Roraima, transformados em estados nos anos 1980. O custo adicional, nesse caso, chegaria a R$ 6,3 bilhões para a União.
O projeto de lei (PL) 334/2023, que estende a desoneração da folha de pagamento para 17 setores e ainda estende o benefício a prefeituras, impactaria negativamente as contas do governo federal em aproximadamente R$ 19,5 bilhões, segundo cálculos de Gabriel Leal de Barros, da Ryo Asset.
Há ainda um projeto de lei complementar (PLP 136/2023), que prevê a recomposição de perdas de governos estaduais e prefeituras em razão do corte no ICMS sobre combustíveis feito em 2022 pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), além de transferências adicionais aos fundos de participação dos estados (FPE) e dos municípios (FPM) para a compensação de perdas de 2023 em relação a 2022.
O PLP foi enviado pelo próprio Executivo após acordo entre o Ministério da Fazenda e os governos estaduais, homologado em junho pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Por enquanto, prevê-se um repasse de R$ 2,3 bilhões para municípios e de R$ 1,6 bilhões para estados em razão da queda no terceiro trimestre deste ano em relação ao montante verificado no ano passado. Pode haver novas transferências, no entanto, caso haja perdas também no quarto trimestre.
Outra pauta-bomba é a PEC 15/2021, que cria uma espécie de Refis para dívidas previdenciárias municipais, com desconto de 60% em multas, 80% em juros e 50% em honorários, além de permitir o parcelamento por 20 anos.
Barros calcula que se um terço do estoque de dívidas municipais, estimado em R$ 200 bilhões pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), for efetivamente pago, já que há chances de perdão integral de juros, multa e mora, a perda fiscal para a União será de R$ 133 bilhões em duas décadas, ou R$ 6,7 bilhões por ano.
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