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“Há vários programas em que o dinheiro foi garantido e mesmo assim não se conseguiu gastar. Um exemplo muito claro é o dinheiro para reforma dos aeroportos – um programa essencial para recuperar a infraestrutura do Brasil.” | Divulgação
“Há vários programas em que o dinheiro foi garantido e mesmo assim não se conseguiu gastar. Um exemplo muito claro é o dinheiro para reforma dos aeroportos – um programa essencial para recuperar a infraestrutura do Brasil.”| Foto: Divulgação

A Fundação Getulio Vargas (FGV), conhecida por ser um reduto de economistas ortodoxos, surpreendeu na última Carta do Ibre, publicação mensal da instituição. Disse em claro e bom tom: o excesso de gastos públicos e o baixo investimento são dois mitos sobre o Estado brasileiro que merecem ser revistos. Num país em que a arrecadação equivale a 42% do PIB, a declaração impressiona. A Carta é embasada em parte de um estudo conduzido pelo economista Mansueto de Almeida, do Instituto de Pequisa Econômica Aplicada (Ipea). Nesta entrevista à Gazeta do Povo, ele explica como chegou a essa conclusão. Segundo ele, o baixo nível de investimento ocorre por um problema da máquina pública. Preocupado com a corrupção, o Estado brasileiro investiu muito em carreiras da área de fiscalização (TCU e Ministério Público, por exemplo), mas não deu atenção para as áreas de execução. Com isso, o investimento ficou engessado. Esse dilema, para o economista, não requer corte de gastos, mas mais investimento nas carreiras de execução. Confira os principais trechos da conversa:Como o senhor defende que o nível de investimento baixo não é culpa dos gastos correntes excessivos do governo?

Normalmente a gente fala que o governo gasta muito. O gasto público no Brasil de fato vem crescendo. Desde 1999, o gasto público aumentou quase 4,3% do PIB. E grande parte do aumento foi em cima do gasto corrente – o que inclui transferência social (programas como o Bolsa Família) e Previdência. Então há um diagnóstico comum no Brasil de que gastamos muito com gasto corrente, e que está faltando dinheiro para investimento. Isso é verdade? A resposta é: isso é verdade até um certo ponto. A gente realmente não tem dinheiro para fazer todo o tipo de investimento que o Brasil precisa. Por outro lado, há vários programas em que o dinheiro foi garantido – o dinheiro foi aprovado na lei orçamentária anual e colocado na conta bancária para ser gasto (empenhado) – e mesmo assim não se conseguiu gastar. Há inúmeros exemplos. Um muito claro é o dinheiro para reforma dos aeroportos – um programa essencial para recuperar a infraestrutura do Brasil. Até porque os aeroportos do país já estão sendo superutilizados. O dinheiro existe, foi colocado na conta e não se consegue gastar. Por quê? O que eu fiz no meu estudo foi pegar vários programas que tiveram nível de execução de investimento muito baixo e ver o que saía disso. O resultado é que nas grandes obras não há falta de recursos, mas se destacam problemas em relação à licitação e ao TCU [Tribunal de Contas da União], e também outros problemas administrativos e gerenciais, que são internos da máquina pública.

Que problemas são esses?

Nos anos 1990, e mais especificamente na década atual, o governo fortaleceu muito as carreiras do serviço público na área de controle. Por exemplo: o TCU e o Ministério Público. Eles verificam se não vai haver desvios, se a licitação foi feita de maneira correta, etc. O salário inicial de um auditor do TCU é superior a R$ 10 mil por mês. De outro lado, porém, o governo federal até recentemente não recrutava engenheiro. E o salário inicial de um engenheiro no serviço público era algo em torno de R$ 4 mil. Então a gente investiu muito na carreira de controle, mas não nas carreiras de execução, para termos engenheiros preparados para fazer um processo de licitação, para interagir e atender às demandas do TCU. Então não adianta apenas aumentar recursos para investimento sem também fazer um esforço para melhorar a máquina pública. Eu peguei os dados de 2008, porque na avaliação do PPA de 2008 há uma questão que especificamente pergunta ao gestor de cada programa qual foi a dificuldade que ele encontrou para executar um investimento. Ele tem de identificar se foi um problema administrativo, gerencial, de liberação de recursos, etc. Quando você pega todos os programas que tiveram baixa execução, não apenas os problemas administrativos continuam sendo altos, mas também aparecem problemas financeiros. Mas aí alguém poderia questionar: se todos os anos o país executa o investimento muito abaixo do que é aprovado no Congresso, como é que temos ministérios reclamando que faltam recursos? Porque há outro problema na execução de investimento público no Brasil. Para alguns programas pequenos, o recurso é autorizado na lei orçamentária anual, mas o Ministério do Planejamento segura aquele dinheiro no início do ano esperando para ver qual vai ser a receita realizada – se vai dar para atingir o superávit primário programado. Apenas no segundo semestre do ano o ministério começa a liberar recursos para esses outros investimentos que não são prioritários. Isso aconteceu com muita frequência em programas do Ministério do Meio Ambiente e também em programas do Ministério da Integração.

E qual é o melhor meio de aumentar a eficiência da máquina pública?

Há várias ações possíveis. Uma forma é ter funcionários de carreira bem treinados na área de execução. O Estado brasileiro deu muito foco na área de controle, e não na execução. Na década de 80, por exemplo, o Brasil tinha um grupo ligado ao Ministério dos Transportes, chamado GIPOT, que era um grupo de engenheiros altamente treinados que fazia todo o processo licitatório. O grupo acabou na época do Collor. Hoje os ex-membros são todos professores universitários. A gente precisa de gente treinada que saiba fazer licitação boa, saiba conversar com o TCU, que saiba se antecipar às medidas de esclarecimento que o TCU solicita. Em alguns outros programas a questão é de treinamento dos funcionários que já existem. Parte dos investimentos da União é por meio de convênios com estados e municípios. Em 2008, o sistema de convênios mudou. Mas os funcionários públicos simplesmente não sabiam como preencher o programa. Eles passaram de sete a oito meses aprendendo a usar o novo sistema. Isso não pode acontecer.

Mas não há espaço para redução do gasto público do governo federal? Combatendo o desperdício, por exemplo?

O gasto público pode ser dividido em cinco ou seis contas grandes. Gastos com pessoal, programas sociais (seguro-desemprego, Bolsa Família), previdência (INSS), custeio (xerox, gasolina, luz), educação e saúde, e investimentos. Quando você olha tudo isso, 84% de todo o crescimento do gasto em relação ao PIB vem de educação, previdência privada (INSS), gasto social e saúde. Isso são políticas que fazem parte da agenda do governo. Não dá para falar que o governo fez algo errado. Era algo coerente com o que o presidente (Lula) afirmava durante a campanha.

E o custo da corrupção?

Existe, mas é difícil de mensurar. O problema é o seguinte. A gente quer controlar a corrupção e cria uma série de regras. Mas elas são tão rígidas que não conseguimos executar as coisas. Para isso, acaba-se tentando burlar a lei. E como se faz isso? Um exemplo bem concreto e recente: o caso da hidrelétrica de Belo Monte. Havia dois grupos concorrendo. Um grupo ganhou. Num processo de licitação normal, um grupo ganha e acabou. Aquilo está definido. No Brasil, não. A licitação tem um vencedor e está se modificando toda a composição societária desse grupo. Inclusive empresas que estavam no grupo que perdeu vão participar do grupo que ganhou. De fato você fez um processo formal para atender a lei, mas ao mesmo tempo há uma série de flexibilidades que vão contra o objetivo da lei, que é de ter um processo de concorrência real e mais transparente. Essa coisa de corrupção tem no mundo todo. Se eu quero combater corrupção, tenho que combater colocando o pessoal na cadeia. Prendendo. E não aumentando o custo de transação, ou seja, não engessando o funcionamento da máquina pública. Durante mais de 20 anos, do final da década de 1960 até 1992, a carga tributária do Brasil era 25% do PIB e a gente investia muito mais. O investimento público total era de 8% do PIB. Hoje esse investimento público total é em torno de 3% do PIB, ou seja, menos que a metade. É muito pouco. E agora chegou o momento em que a gente não pode ser dar ao luxo de não aumentar o investimento. Vai ter a Copa do Mundo, a Olimpíada, e precisamos retomar os investimentos para o crescimento do PIB ficar acima dos 5%.

Se considerada toda a verba liberada, não a aplicada, o nível de investimento já seria satisfatório?

Seria bom. Mas teria que aumentar. O investimento aprovado na lei orçamentária nos últimos quatro anos sempre foi acima de R$ 50 bilhões. Se a gente conseguisse executar isso, significaria praticamente dobrar o investimento público da União. No último ano, o investimento executado foi de R$ 32 bilhões a R$ 34 bilhões.

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