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O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, isolou o Congresso na formulação de sua proposta de âncora fiscal, e aprovação da medida pode ficar para o segundo semestre.| Foto: Washington Costa/Ascom/MF

O governo federal isolou o Congresso na formulação de sua proposta de âncora fiscal e pode pagar politicamente o preço disso. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), surpreendeu parlamentares após antecipar, de abril para março, a apresentação do projeto de lei complementar (PLP) que sugere a substituição do atual teto de gastos.

Líderes e vice-líderes partidários no Congresso desconhecem o teor da proposta elaborada por Haddad. Embora seja uma prerrogativa da equipe econômica de qualquer governo propor e enviar propostas sem um diálogo aberto com parlamentares, lideranças políticas gostam de ser consultadas e participar dos debates, sobretudo de pautas estruturantes como o novo arcabouço fiscal.

O deputado federal José Nelto (PP-AL), vice-líder do partido na Câmara, sustenta que seu líder, André Fufuca (MA), e outros líderes partidários de legendas de centro e centro-direita não estão cientes do teor da proposta, nem participam de reuniões com a equipe econômica. "A não ser que esteja debatendo apenas com o seu partido, o PT, mas acho que nem o PT participa deste debate", diz.

Em conversas com outras lideranças da Câmara, Nelto entende que não há entre congressistas um clima de indignação ou de animosidade em relação à decisão do governo de afastar o Congresso do processo de montagem da nova âncora fiscal. Mas classifica como um equívoco político a postura adotada por Haddad e pelo Palácio do Planalto.

"No mínimo, o governo erra em não abrir esse debate antes. Isso mostra que terá muita dificuldade em aprovar essa âncora fiscal", analisa Nelto. "Se ele já estivesse discutindo com lideranças do Congresso Nacional, encontraria mais facilidade e diminuiria o prazo de debate, tramitação e aprovação", complementa.

Isolamento do Congresso pode anular sinalização de Haddad ao mercado

A surpresa gerada por Haddad a parlamentares ocorreu após uma fala em um evento do banco BTG Pactual. "Nós vamos em março, provavelmente, anunciar o que nós entendemos que seja a regra fiscal adequada para o país", anunciou em 15 de fevereiro. No mesmo evento, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) , alertou que "um texto radical para um lado ou para outro não terá sucesso no plenário do Congresso".

O cientista político Enrico Ribeiro, sócio-diretor da Consillium Soluções Institucionais e Governamentais, avalia o comentário de Haddad como uma clara sinalização ao mercado. "Concentrar o texto no Executivo e na equipe econômica e antecipar a apresentação para março demonstra ao mercado um compromisso do governo em manter a estabilidade fiscal justamente em momento que serão discutidos o reajuste de servidores, o início da reforma tributária e a questão dos combustíveis", comenta.

Como a redação da PEC fura-teto exige do Planalto o envio ao Congresso de um projeto de lei complementar para a instituição de um novo regime fiscal responsável até 31 de agosto deste ano, a antecipação do prazo para março reflete a expectativa de Haddad em receber uma sinalização positiva do mercado, avalia Ribeiro. Como a discussão está atrelada à reforma tributária, que a equipe econômica espera aprovar ainda no primeiro semestre, o gesto do chefe da equipe econômica sugere que o arcabouço fiscal também poderia ser aprovado nesse prazo.

Da mesma forma, a fala de Lira também pode ser interpretado como um alerta ao governo. Ribeiro admite que, em parte, é perigosa a decisão da equipe econômica de afastar o Congresso da elaboração do texto. "Não dá ao governo uma previsibilidade daquilo que pode sair de antemão do Congresso. Você trazer os parlamentares e as lideranças para discutir antes de enviar é sempre de bom tom em um governo de coalizão, porque permite criar as condições e ambientes mais favoráveis com celeridade e certeza", comenta. "Mas nada indica que o governo não vai fazer isso", acrescenta.

Sem participar do debate, congressistas analisam que a aprovação da nova âncora fiscal pode ficar para o segundo semestre e, consequentemente, anular as sinalizações de Haddad ao mercado. "Esse é um debate amplo de 90 a 120 dias. Ele é um debate de 90 a 120 dias, em que o Congresso vai se debruçar nesse projeto ouvindo a sociedade civil, os economistas e governadores. O projeto terá um longo caminho a percorrer", avalia o deputado José Nelto.

O deputado Gilson Marques (Novo-SC) também entende que a aprovação da proposta no Congresso fica para o segundo semestre. "Pela minha experiência de uma reforma estruturante, como a da Previdência, como a âncora fiscal está muito interligada à reforma tributária, não deve ter tempo hábil para o primeiro semestre, apesar de ser o objetivo do Bernard Appy [secretário do Ministério da Fazenda]. Mas imagino que seja possível no segundo semestre", diz.

Como fica a tramitação da nova âncora fiscal no Congresso Nacional

Em razão de o governo deter a iniciativa da proposta, o deputado Celso Sabino (União Brasil-PA) avalia com naturalidade a decisão em restringir, formular e organizar os termos e textos do novo arcabouço fiscal baseado na análise de seus técnicos. Da mesma forma, ele sustenta que será uma prerrogativa do Parlamento discutir a matéria no seu tempo.

"Por óbvio, também verei com uma naturalidade ainda maior de que o texto, quando começar a ser debatido no Congresso, seja maturado, reexaminado e aperfeiçoado pelos congressistas nas comissões pertinentes ou com grupo de trabalho, se porventura o presidente da Câmara entender que seja essa a melhor forma de tramitação, ou através de análise por um relator que, nesse caso, com certeza vai ouvir todas as lideranças partidárias", avalia.

Presidente da Comissão Mista do Orçamento (CMO) em 2022, Sabino destaca que um provável aperfeiçoamento é natural do processo legislativo. "Temos inúmeros casos e exemplo de propostas que foram enviadas pelo governo e sofreram alterações aos olhos do Congresso para aperfeiçoar a proposta", destaca.

O deputado José Nelto reforça que a tramitação da proposta no Congresso poderia ser encurtada se Haddad promovesse uma abertura do diálogo junto aos líderes. "Sem nenhum debate e consulta prévia ao Parlamento, teremos que nos debruçar e trabalhar dobrado", diz. "Vamos examinar ponto a ponto e chamar os setores da sociedade para um debate amplo, com a abertura de audiências públicas para fazer o melhor para o Brasil em uma matéria que vai receber centenas de emendas", complementa.

Senadores demonstram ceticismo em relação à hipótese de uma tramitação rápida do novo arcabouço fiscal. A maioria dos consultados pela Gazeta do Povo preferiu nem emitir opinião neste momento sobre o tema. Além de a proposta começar a ser avaliada pelos deputados, que poderão fazer alterações, também pesa sobre o ânimo o desconhecimento sobre as linhas gerais. Assim, dizem alguns senadores, fica difícil prever quais desdobramentos a proposta terá.

"Trata-se de um assunto complexo que precisa ser discutido de forma exaustiva pelo Congresso, sem nenhum açodamento. O ministro da Fazenda ventilou a possibilidade de aprovação do arcabouço fiscal em abril, mas não tem nenhum sentido", observa o senador Plínio Valério (PSDB-AM). Ele estranha o fato existirem apostas de aprovação rápida antes mesmo de o projeto ter sido enviado ao Congresso. "Além disso, quando o texto estiver tramitando no Legislativo, nós, deputados e senadores, poderemos fazer mudanças e revisões no texto", pondera.

Há ainda senadores que entendem, desde agora, que a definição final de uma nova âncora fiscal consumirá um período prolongado de debates no Parlamento até mesmo em razão de possíveis polêmicas que trouxer junto. "O atual governo dificilmente irá enviar uma regra melhor que o teto de gastos. Apesar de ter sido desrespeitado em momentos de crise grave, o teto sempre foi confiável. Penso que o PT buscará um arcabouço sem parâmetros rígidos e que permita todo tipo de gastos acima do Orçamento sem riscos legais para o governo", avalia Carlos Viana (Podemos-MG).

Centralização do debate da nova âncora fiscal reflete falta de maioria

Lideranças no Congresso atribuem a decisão do governo de controlar o processo de formulação da nova âncora fiscal à ausência de uma maioria consolidada nas duas Casas. "Acho que estão esperando ter uma maioria negociada, comprada e convencida para, depois, apresentar uma coisa interessante", analisa o deputado Gilson Marques. "Eles não querem arriscar divulgar algo para não 'apanhar' à toa. Vão segurar tudo como estão segurando para, quando tiver segurança, apresentar as ideias idiotas deles", acrescenta.

Descrente da hipótese de que o governo apresentará uma âncora fiscal superior ao atual teto de gastos e crítico da relação entre governo e os partidos políticos do Congresso, Marques entende que o atual período é "previsível" em meio ao início de um governo e uma nova legislatura. "Essa fase de extorsão legal ou ilegal, moral ou imoral, deve estar acontecendo e não se sabe a qual preço, demora um pouco mesmo", avalia.

O deputado José Nelto discorda das críticas de Marques sobre a relação entre o governo e Congresso, mas admite que o Executivo não tem maioria na Câmara e concorda com a análise de que, sem uma base consolidada, a tendência é de o Planalto afastar os líderes do debate da nova âncora fiscal.

"Eu acho que o governo poderá e irá construir [uma maioria], mas ainda não tem, e ele sabe disso", afirma. "Pelo que eu tenho contato na Câmara, a indicação dos ministros não representa os deputados. O governo vai ter que construir a maioria de grão em grão. Os deputados não estão dando a menor bola para os atuais ministros", complementa.

A Gazeta do Povo informou em janeiro que existe um sentimento de desprestígio na Câmara após a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em priorizar indicações do Senado na composição ministerial de seu governo.

"O governo está atrasado na construção da base, mas teve o carnaval e os atos da 'intentona golpista' de 8 de janeiro, que tomou muito fôlego e atenção [do Planalto e Congresso]. Mas acredito que, a partir de desta semana, já vamos nos debruçar na formação das comissões e aí o ano começa de vez", diz Nelto.

O sentimento de que o fim do carnaval possibilita o avanço de negociações entre a Câmara e o governo é destacado pelo cientista político Enrico Ribeiro ao ponderar sobre as chances de tramitação e aprovação da nova âncora fiscal. "O governo deixou o componente político [de discussão da matéria] para o Congresso. É uma forma de negociar e tentar a aprovação, claro que com mais custos e com maior incerteza sobre aquilo que vai ser aprovado", comenta.

O analista político discorda, porém, da visão de que o governo não tenha maioria para aprovar a nova âncora fiscal, uma vez que, por ser um projeto de lei complementar, é necessária maioria absoluta nas duas Casas, ou seja, de 257 deputados e 41 senadores. Ribeiro entende que o governo tem isso na Câmara e no Senado.

"É muito cedo para falar que não tem apoio, voto, ou que só vai mandar [o texto] quando tiver maioria", avalia. Nos cálculos da Consillium Soluções Institucionais e Governamentais, o governo tem uma base potencial de 364 deputados e 51 senadores.

O cálculo leva em consideração a soma do que a consultoria classifica como a base de apoio consistente, dos parlamentares que votam com o governo independentemente de qualquer coisa, e da base de apoio condicionado, que reúne congressistas que votam de acordo com a pauta ou por acordos e negociações.

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