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O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, terá de enfrentar mais “fogo amigo” do PT em 2024 por causa da meta fiscal e do provável bloqueio de recursos do Orçamento.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, terá de enfrentar mais “fogo amigo” do PT em 2024 por causa da meta fiscal e do provável bloqueio de recursos do Orçamento.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Entre as inúmeras dificuldades que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem enfrentado para cumprir a missão de zerar o déficit fiscal, uma promete ganhar proeminência daqui para frente: a tumultuada relação com o PT – partido dele mesmo e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – e o recorrente "fogo amigo" contra as políticas da pasta.

O pano de fundo dos atritos é conhecido. Desde que assumiu o ministério, Haddad tenta se equilibrar entre promessas de responsabilidade fiscal, para atrair boa vontade do mercado financeiro, e as expectativas das alas mais à esquerda do PT, que não veem necessidade de controle de gastos – ainda que um controle tão frouxo quanto o do arcabouço fiscal, que prevê um aumento real de no mínimo 0,6% nas despesas a cada ano ano.

Nesta sexta-feira (27), Lula lançou uma "bomba amiga" na pretensão ministro Haddad de manter a credibilidade do arcabouço fiscal junto ao mercado. "[A meta de resultado primário] não precisa ser zero", disse Lula em café da manhã com jornalistas no Palácio do Planalto. "Muitas vezes o mercado é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que eles sabem que não vai ser cumprida."

A declaração reflete o tamanho do desafio do ministro Haddad. Sem garantias de aprovar no Congresso projetos para aumentar a arrecadação e equilibrar as contas, o ministro vê há tempos seu descrédito transbordar junto ao mercado, que projeta um déficit de 0,8% do PIB para 2024. Neste cenário, seria necessário um bloqueio de recursos já no primeiro relatório fiscal, em março, para tentar cumprir a regra fiscal.

Este contingenciamento, que o governo não quer fazer, foi o argumento para a revisão da meta pelo presidente Lula. "Nós dificilmente chegaremos à meta zero, até porque eu não quero fazer cortes em investimentos e obras", disse Lula. "A gente não precisa disso [meta fiscal zero].... Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a começar o ano fazendo um corte de bilhões nas obras. Se o Brasil tiver o déficit de 0,5% o que é? 0,25% o que é? Nada. Vamos tomar a decisão correta e nós vamos fazer aquilo que vai ser melhor para o Brasil", acrescentou o presidente.

Partido não aceitará bloqueio de verbas em ano eleitoral

Na avaliação dos especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, as pressões só tendem a aumentar daqui em diante para Haddad, sobretudo no próximo ano eleitoral.

"As tensões diante das necessidades dos gastos da eleição vão aumentar em todos os partidos. Mais ainda no PT, que vai querer extrair dividendos do desempenho do governo federal e não aceitará lidar com o contingenciamento", prevê Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria.

Ciente da perspectiva de frustração da arrecadação prevista pelas medidas em tramitação no Congresso e da necessidade de algum represamento de verbas, a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, foi a primeira a questionar a necessidade de déficit zero para as contas públicas de 2024.

A preocupação é de que a falta de dinheiro afete diretamente programas sociais do governo. "Não há necessidade de fazermos isso em um quadro que precisamos estimular o crescimento econômico”, declarou Gleisi em agosto.

Desde então, aumentaram os rumores sobre a pressão dos auxiliares do presidente para a revisão da meta fiscal, para que ela permita um déficit primário entre 0,5% e 0,75% do Produto Interno Bruto (PIB). Na avaliação dos defensores da revisão, isso evitaria a necessidade de contingenciamento.

Haddad havia descartado a hipótese. Mesmo diante do descrédito do mercado e dos entraves junto ao Legislativo, o ministro reafirmou a convicção de que o jogo continua aberto. "Perseguir meta fiscal, como diz o comunicado [do Banco Central], é uma coisa importante, porque demonstra a seriedade do país com as contas públicas”, disse o ministro em setembro.

Cenário do embate se deve à visão estatista da economia

Na avaliação de Cortez, o embate dentro do governo já estava previsto desde a transição. "Há uma divisão importante sobre a forma de como conduzir as políticas estruturais. Enquanto a equipe econômica tem a responsabilidade de organizar e administrar as despesas, o partido parte da premissa que é preciso gastar e estimular o crescimento com dinheiro público. É um choque de visões", explica.

Para contemplar a expectativa do partido, a estratégia do governo foi promover o aumento de base de arrecadação, tributando setores até então isentos. Algumas iniciativas tiveram claro apelo populista, como a possibilidade de taxar grandes fortunas. Outras medidas ainda estão na fila de votação da Câmara, entre elas o projeto de taxação de fundos fechados e offshores.

"O corte de gastos não foi cogitado, já que não tem apoio nenhum na base governista. Por outro lado, a ampliação da tributação enfrenta resistência do congresso conservador. Este é o dilema de Haddad", sintetiza o sócio da Tendências.

"Fogo amigo" é disparado desde o início da gestão Haddad

Foram inúmeras as vezes, desde o inicio da gestão, em que o "fogo amigo" a Haddad foi mais intenso. A maioria das críticas foi vocalizada pela presidente Gleisi Hoffmann, mas refletem o pensamento da Executiva do partido e de parlamentares como os deputados José Guimarães (CE), Lindbergh Farias (RJ) e Jilmar Tatto (PT-SP).

Em fevereiro, quando Haddad estava na Índia, a presidente do PT postou nas redes sociais uma manifestação enfática em favor do adiamento da volta dos impostos sobre os combustíveis, pretendido pelo ministro.

No mês seguinte, criticou a área econômica pela defesa da proposta de emenda à Constituição (PEC) para mudar a correção dos pisos de gastos com educação e saúde. "São bandeiras históricas do partido. O ministro [Haddad] nunca falou sobre isso conosco", afirmou ela à época.

Contrária desde o início ao desenho do arcabouço fiscal, Gleisi classificou a proposta como "liberal", em maio, em reunião conjunta de comissões da Câmara.

As reservas ao arcabouço também partiram de figuras palacianas. O ministro Rui Costa, da Casa Civil, precisou desmentir os rumores de pessoas próximas à cúpula do Palácio do Planalto que narraram embates entre ele e Haddad. No episódio, a crítica teria sido agravada pelo fato de o arcabouço ter sido apresentado diretamente a Lula e não à Casa Civil.

Haddad tem mais problemas com o PT que com o Centrão

No entendimento do cientista político Carlos Melo, professor do Insper, a relação de Haddad com o PT é mais complicada do que com o próprio Centrão, personificado pelos partidos de centro que formam a maioria da Câmara dos Deputados.

O grupo, considera o professor, estabelece com o ministro e o governo uma lógica essencialmente fisiológica. Para conseguir governar, o presidente Lula precisa liberar recursos e lotear cargos e ministérios.

Foi o que se deu com minirreforma ministerial, que acomodou membros do Centrão nos ministérios de Esportes e de Portos e Aeroportos.

"Se o governo pagar, ele leva, se não pagar, não leva", resume Melo. Sem cerimônia, a cada votação, o Centrão tem cobrado um novo preço. "O governo, pragmático, sabe que tem que pagar. Resiste, endurece daqui e dali, mas vai pagando. É um jogo lamentável, mas previsível", diz.

A relação com o PT, contudo, é mais intricada. Não para Lula, que é "quem comanda e dá as cartas", mas para Haddad, na linha de frente das pautas econômicas e no centro de discussões internas do partido. "O nome dentro do PT hoje é disputa. Disputa para ver quem tem mais poder no partido, quem tem mais influência sobre o Lula e por aí vai", diz o cientista político.

Com a as eleições se aproximando, assim como o prazo para a definição dos candidatos, o cenário ficará mais turbulento. "A eleição municipal é importante como termômetro do poderio das diversas alas dentro dos partidos. Ao final da eleição haverá uma nova coloração de forças não só Brasil, mas em especial dentro do PT", acredita Melo.

Disputa de poder mira herança de Lula

Também está sempre no radar, ressalta Carlos Melo, a sucessão de Lula, que "em algum momento vai acontecer". Vários postulantes estão no páreo para a sucessão. Haddad, neste cenário, é um adversário político para eles. "A briga hoje é para ver quem se coloca em posições mais vantajosas para uma futura candidatura", diz.

Para acalmar os ânimos e especulações, uma resolução do PT, de agosto, defendeu claramente que as eleições municipais do próximo ano devem considerar a recondução de Lula ao governo em 2026.

A percepção geral é de que Lula não vai sacramentar um herdeiro. "Vai deixar o confronto rolar até quando interessar e decidir arbitrar", avalia.

Lula sabe, destaca o professor, que não há ninguém do seu tamanho no PT. Nem mesmo para trocar ideias: "Faltam lideranças expressivas no PT, que teve uma geração inteira varrida pelos processos de corrupção. Os 'companheiros' que chamavam Lula pelo nome e podiam influenciar em uma decisão estão fora do jogo".

É o caso de Zé Dirceu, José Genoíno e Antônio Pallocci. Ou mesmo de figuras do entorno do presidente que desempenhavam papel estratégico relevante, como Luiz Gushiken e Márcio Thomaz Bastos, que faleceram. "Hoje, todos no partido ou no Palácio do Alvorada chamam Lula de 'presidente'. Inclusive Haddad", diz Melo.

Embates enfraquecem Haddad e encarecem apoio do Centrão

Apesar das diferentes visões, das disputas constantes e do "fogo amigo" contra Haddad, a cientista política Lara Mesquita, da FGV-EESP, não vê comprometimento da pauta do governo. "Na hora H, quando Lula arbitra, eles sempre seguem a orientação partidária e votam juntos", afirma.

Carlos Melo, no entanto, ressalta o desgaste gerado pelos embates, com o enfraquecimento de Haddad e, por consequência, do governo.

"Os ruídos afetam a lógica do mercado financeiro. Começa a haver especulação na imprensa. O mercado acha que Haddad, enfraquecido, não vai cumprir meta. Acontece a saída de dólar do país, voltam as perspectivas de inflação. No limite, Lula sempre intervém, mas o custo acaba sendo alto", diz.

O presidente Lula, em meio a viagens, demandas externas e cirurgias, vinha reafirmado apoio à linha de trabalho da equipe econômica, mas aparentemente, está mais interessado em conciliar os interesses eleitorais do partido. As próximas votações no Congresso serão determinantes para a arrecadação e o cumprimento da meta fiscal.

A reforma tributária sobre o consumo, que tramita no Senado, é tratada como prioridade pelo governo, embora não vá ter vigência imediata. E depois Haddad deve apresentar a reforma tributária sobre a renda, esta sim capaz de produzir efeitos sobre a arrecadação em prazo mais curto.

"Se tiverem que rever a meta no ano eleitoral, haverá desgaste junto ao mercado e um preço maior a ser pago ao Centrão, que sabe explorar a fragilidade do governo", finaliza Melo.

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