Uma nação na qual todos são vigiados pelo Estado o tempo todo em nome da honra e da confiança. Poderia ser um livro de George Orwell, mas é a China.
Um país no qual todos têm uma nota, atribuída pelo Estado, para saber o quão “bom” cada cidadão é. Poderia ser um episódio de Black Mirror, mas, novamente, é a China.
Uma das principais fabricantes do país substitui 60 mil trabalhadores por robôs. Poderia ser fruto da imaginação de Isaac Asimov. Mas, adivinhe, também é realidade na China.
O que muitos ocidentais ainda chamam de ficção científica, aproximadamente 1,3 bilhão de chineses chamam de realidade. Robôs, vigilância e uma pitada de controle estatal se destacam na China e surpreendem até mesmo os mais céticos leitores de ficção científica, que achavam impossível tais projeções acontecerem tão rapidamente.
Qual sua nota
Em 2014, o governo chinês apresentava documento “Esquema de Planejamento para a Construção de um Sistema de Crédito Social”, no qual detalhava a ideia de, até 2020, concluir um esquema de avaliação digital de todos os cidadãos atribuindo notas a cada um deles. Segundo o documento (se quiser se arriscar no chinês, você pode conferi-lo aqui) a ideia é “criar um ambiente te opinião pública no qual manter a confiança é glorioso”, o que irá “fortalecer a sinceridade nas relações do governo, a honestidade comercial, a honestidade social e a construção de credibilidade jurídica”.
O sistema já está rodando em caráter voluntário na China. Até 2020, será obrigatório para qualquer pessoa, física ou jurídica, no país. Queira ou não, se estiver em solo chinês, você será avaliado. Oito empresas privadas estão desenvolvendo tecnologias para o sistema. Entre elas aparece a China Rapid Finance, da Tencent, responsável pelo WeChat, um WhatsApp turbinado que para muitos dos seus 850 milhões de usuários resolve todos os problemas do dia a dia. Outra empresa na corrida é a Sesame Credit, da Ant Financial Services, afiliada da Alibaba, a “Amazon chinesa”. Outras companhias, como a Didi Chuxing, a “Uber chinesa”, estão trabalhando em parcerias para ajudar na coleta de dados das pessoas.
Reportagem da revista Wired explicou o funcionamento do sistema. Cada cidadão chinês tem entre 350 e 950 pontos, calculado de acordo com suas ações. Embora o funcionamento do algoritmo de cálculo não seja público, sabe-se que são levados em conta fatores como inadimplência, cumprimento das responsabilidades judiciais, hábitos de consumo e até mesmo o que ele faz na internet, em redes sociais. Tudo isso ainda é cruzado com as redes de contatos do indivíduo: se você anda com pessoas com nota baixa, é possível que a sua também diminua.
Todo o sistema ainda é “gamificado”. Pessoas com notas altas ganham privilégios, descontos e mimos de empresas e do governo. Alguns dos voluntários já até comemoram suas notas no Weibo, o “Twitter chinês”, como uma espécie de status social. A tática, como nota a revista Wired, busca subverter o método enquanto controle e utilizar a diversão como ferramenta de manipulação.
O sistema lembra o epódio “Queda Livre” da série britânica Black Mirror. Nele, todos os cidadãos também têm uma nota e são avaliados digitalmente o tempo todo. A diferença é que, na ficção, uma pessoa avalia a outra — sem qualquer menção a um Estado controlador.
Em 2016, o documento do governo chinês foi atualizado com um capítulo chamado “Mecanismos de aviso e punição para pessoas que quebrarem a confiança”, prevendo sanções e exclusões de pessoas que podem ter a nota baixa.
A ficção científica não chegou tão longe.
O Grande Irmão
Em 1984, distopia do escritor inglês George Orwell, os cidadãos eram submetidos a um sistema chamado “duplipensar”. O Ministério responsável pelas guerras era chamado de Ministério da Paz. “Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força” é um dos motes do Grande Irmão, figura criada para representar a admiração que deve unir a todos.
Sim, é daí que vem o nome do reality show TV, o Big Brother. Acontece que para conseguir controlar não só a vida de todos os cidadãos, como também o pensamento deles, o Estado de 1984 utiliza câmeras de vigilância, espalhadas por todos os lugares. Todos podem estar sendo vigiados o tempo todo — tal como no programa de TV. Ou como na China.
Reportagem do jornal Wall Street Journal revela como o governo chinês investe e controla bases de dados gigantescas, alimentadas por inteligência artificial, para conseguir reconhecer os rostos de cidadãos o tempo todo. Distância entre os olhos, tamanho da testa, da ponte do nariz, cor da pele... tudo isso é utilizado pelo sistema, que busca reconhecer indivíduos. Nas ruas, chineses já são identificados pelo aparato de vigilância tal qual o personagem de Tom Cruise no filme Minority Report.
A tecnologia não é exclusiva de lá. No próprio Facebook há o recurso de ser reconhecido automaticamente pela rede social quando alguém posta uma foto sua. O FBI, do governo estadunidense, também utiliza o sistema para reconhecer quem circula por aeroportos.
Na China, no entanto, a intenção é que o controle seja feito o tempo todo e em todo o país — o que ainda não é realidade completa por lá. Segundo a empresa de pesquisa IHS Markt, o país tem 176 milhões câmeras de vigilância e pretende instalar mais 450 milhões até 2020. Para efeito de comparação, atualmente os EUA têm 50 milhões.
Eu, Robô
Uma década atrás, a China tinha diversas montadoras com trabalhadores fazendo atividades repetitivas e intensas, ganhando menos de US$ 1 por hora. Hoje esse mesmo trabalho é feito por máquinas. Na Ford da cidade Hangzhou, por exemplo, quase todo o processo antes feito por humanos agora é realizado por uma equipe de 650 robôs, de acordo com o The New York Times.
A Foxconn, montadora de produtos eletrônicos, entre eles smartphones da Samsung e da Apple, ficou conhecida pelos numerosos casos de suicídio de funcionários, agora investe muito mais em robôs. A fábrica da região de Kunshan, por exemplo, diminuiu o número de trabalhadores humanos de 110 mil para 50 mil. Os 60 mil demitidos foram substituídos por máquinas.
Os robôs, no entanto, são importante parte da estratégia de empresas chinesas para se manterem na vanguarda econômica. Na medida em que máquinas se tornam mais eficientes e baratas que humanos, quem tem as propriedades intelectuais dos trabalhadores robóticos sai na frente nessa corrida.
É por isso que, só em 2016, segundo a Bloomberg, a China colocou em serviço 90 mil robôs — um terço dos criados no mundo no mesmo ano. É um mercado estimado em US$ 11 bilhões, de acordo com a publicação.
Enquanto especialistas sentam para discutir se os trabalhadores realmente serão todos substituídos por robôs, autores de ficção científica, como Philip K. Dick e Isaac Asimov, em livros como Androides sonham com ovelhas elétricas? e Eu, Robô, já imaginavam realidades em que androides eram confundidos e caçados por humanos.
Ficção científica e os futuros possíveis
Mas como algo que só é realidade agora na China era imaginado há décadas por autores de ficção científica? “A ficção científica não é um alerta, mas uma forma de se pensar criativamente os sinais e tendências reconhecidos hoje e como eles poderiam se desdobrar no amanhã”, explica Lídia Zuin, futuróloga na empresa Envisioning e doutoranda em Artes Visuais na Unicamp.
Ela explica que a ficção científica, assim como os exercícios de futurologia, não têm a preocupação de prever o futuro, mas sim de imaginá-lo. Se o que Orwell, Asimov, Clarke, Huxley e tantos outros escreveram aconteceu, não é porque eles previram. Mas é apenas porque a vida imita a arte.
“A ficção científica tem a vantagem de não estar tão presa a dados e pesquisas científicas, estatísticas e metodologias, para ser algo mais próximo da arte, por isso ela tem uma licença poética muito maior. Por isso acaba por ser um gênero artístico que entra em nossa cultura. Daí apenas tiramos algumas das narrativas que nos inspiram e que fazem com que possamos construir nosso futuro”, comenta Zuin. Ou seja, a ficção científica funciona mais como inspiração do que previsão e a China é a prova viva e mais avançada dessa premissa.