Ingerência política em estatais como a Petrobras significaria um retrocesso, na visão do ex-presidente Michel Temer.| Foto: Antonio Lacerda/EFE
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A alta no preço dos combustíveis, que passou de 27% no acumulado de 12 meses até junho e é motivada pela elevação dos preços do petróleo no mercado internacional, está ameaçando uma das legislações criadas no contexto do combate à corrupção: a Lei das Estatais, aprovada e sancionada em 2016, no governo Michel Temer.

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Entidades e especialistas afirmam que, além de representar um retrocesso na governança dessas empresas, eventual mudança na legislação ameaça a ambição do governo de ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), "clube" de boas práticas que reúne as nações mais desenvolvidas do mundo.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), cobrou do Ministério da Economia a apresentação de uma medida provisória com objetivo de alterar a Lei das Estatais, e o líder do governo na Casa, Ricardo Barros (PP-PR), confirmou que uma medida provisória nesse sentido estava em estudo.

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O objetivo declarado é assegurar uma maior "sinergia" entre as empresas e o governo no momento. Na prática, a ideia é fazer com que a diretoria da Petrobras obedeça às ordens do presidente Jair Bolsonaro (PL) de não reajustar os combustíveis.

Embora tenha surgido de aliados do governo, a proposta encontrou eco na oposição. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, defendeu que a Lei das Estatais deve ser revista para permitir a indicação de políticos para cargos de diretoria e conselhos de administração. Ela diz que a lei teria criminalizado a política.

Em meio à tentativa de restabelecer a ingerência de políticos sobre as estatais, o Ministério da Economia informou que as companhias controladas pela União faturaram quase R$ 1 trilhão no ano passado, alcançando o maior lucro em 13 anos. A equipe econômica – contrária a mudanças na Lei das Estatais – atribui esses resultados justamente à profissionalização das estatais.

“A Lei das Estatais fechou portas para o uso político das estatais, ao estabelecer impedimentos e requisitos para a nomeação em cargos de gestão e no conselho de administração”, destaca o gerente de relações institucionais e governamentais do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Danilo Gregório.

Em meio à discussão sobre a revisão da legislação, o ex-presidente Temer disse que iniciativas que promovam alterações na Lei das Estatais nem sequer deveriam ser cogitadas. “O que se espera do mundo político é que aperfeiçoe continuamente a legislação e as instituições brasileiras, que não promova retrocessos. A lei que se pretende amputar significou a moralização das atividades públicas pelas empresas estatais e um grande avanço nos costumes políticos do país”, disse, em nota.

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Estratégia equivocada para mudar política de preços da Petrobras

Outra crítica à postura dos políticos vem do vice-presidente da Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal do Brasil (Unafisco), Kleber Cabral. Ele reconhece que os preços dos combustíveis estão exorbitantes, mas aponta que o caminho para mudar esse cenário não passa por promover mudanças na Lei das Estatais. “Mexer na lei significaria tirar a blindagem à má gestão e à corrupção e abrir espaço para a ineficiência e o aparelhamento.”

Segundo ele, os principais ganhos obtidos com a Lei das Estatais, e que atenderam ao clamor popular, foram a direção não política das empresas públicas e sociedades de economia mista, a melhoria no compliance (o cumprimento das leis e normas de conduta) delas e a maior transparência nas auditorias. “Os mesmos atores que há seis, sete anos estavam ‘pendurados’ nas estatais e que foram denunciados e condenados querem voltar à tona”, diz Cabral.

Marcus Dantas, auditor da Receita Federal que trabalhou na Operação Lava Jato, diz também que a forma de resolver os problemas com a política de preços da Petrobras não passa por mexer no arcabouço legal de combate à corrupção. “Uma modificação na Lei das Estatais favoreceria o retorno à corrupção.”

Os limites à atuação política nas estatais, estabelecidos pela legislação aprovada em 2016, são rígidos. A legislação estabelece que é vedada a indicação para o conselho de administração e para a diretoria de empresa de:

  • Representante do órgão regulador ao qual a empresa pública ou a sociedade de economia mista está sujeita;
  • Ministro de Estado, secretário de Estado, secretário municipal;
  • Titular de cargo, sem vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na administração pública;
  • Dirigente estatutário de partido político;
  • Titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciado do cargo;
  • Pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;
  • Pessoa que exerça cargo em organização sindical;
  • Pessoa que tenha firmado contrato ou parceria, como fornecedor ou comprador, demandante ou ofertante, de bens ou serviços de qualquer natureza, com a pessoa político-administrativa controladora da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa ou sociedade em período inferior a três anos antes da data de nomeação; e
  • Pessoa que tenha ou possa ter qualquer forma de conflito de interesse com a pessoa político-administrativa controladora da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa ou sociedade.
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Segundo Dantas, a lei é clara: “os administradores têm de ser pessoas com capacidade técnica e experiência e ter escolaridade compatível com o cargo”.

Como entidades do mercado financeiro reagiram à ideia de mudar a Lei das Estatais

Entidades ligadas ao mercado financeiro também se manifestaram contra as mudanças na Lei das Estatais. A Associação dos Investidores no Mercado de Capitais (Amec), a Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais do Brasil (Apimec), o IBGC, o Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (IBRI) e o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social encaminharam, em 24 de junho, um ofício a parlamentares e ao Executivo Federal alertando sobre o risco de retrocesso caso alterações sejam promovidas na Lei das Estatais.

Segundo as entidades, a proposta de mudança vai contra conquistas relevantes recentes e põe em xeque a ambição brasileira de entrar na OCDE. O documento destaca que as investidas contra a legislação visam a desidratação dos requisitos e vedações para a ocupação de cargos de membros do conselho de administração e de diretoria.

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“Esses dispositivos formam a principal blindagem da legislação contra o risco de captura das empresas estatais por interesses político-partidários, que foram responsáveis por casos notórios de corrupção, de ineficiência de alocação de recursos públicos e de atendimento a objetivos eleitorais e pessoais, em detrimento dos objetivos sociais para os quais as companhias foram criadas”, diz o texto.

As entidades apontam que os danos de interferências político-partidárias não se limitam aos cofres públicos e à qualidade dos serviços prestados à população: “no caso de sociedades de economia mista, listada em bolsa de valores, os impactos atingem investidores privados, prejudicando a atratividade do mercado brasileiro de capitais como fonte de financiamento das atividades econômicas”.

Segundo os signatários do ofício, as normas contidas na lei servem para garantir que a gestão das companhias seja profissional, por meio da aplicação de critérios técnicos para a escolha dos administradores e atendem a recomendações de referências nacionais e internacionais, incluindo diretrizes de governança para empresas estatais da OCDE. O alinhamento a esses padrões é um dos passos previstos no processo brasileiro de adesão ao organismo internacional.

A entidade reconheceu, em relatório publicado no final de 2020, que os conselhos das estatais se tornaram mais independentes de interferências político-partidárias em função dos impedimentos estabelecidos pela Lei das Estatais.

E recomendou que o Brasil fosse além, buscando aprimoramentos como a extensão dos requisitos e vedações para todos os comitês dos conselhos de administração e fiscal, a concessão efetiva ao conselho de administração do poder de indicar e demitir o diretor-presidente da empresa e o aperfeiçoamento das regras e procedimentos de indicação e nomeação dos administradores.

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Pesquisas mostram melhoria da governança das estatais

Relaxamentos na Lei das Estatais também acabariam com o ciclo virtuoso de amadurecimento dos sistemas de governança e de integridade das estatais, destacam as entidades. Segundo a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais Federais do Ministério da Economia, o indicador para avaliação do cumprimento de normas e boas práticas de governança por parte das estatais federais quase dobrou entre 2017 e 2021, atingindo 8,07 em uma escala que vai até dez.

Outra pesquisa, feita pelo IBGC, aponta que entre 2018 e 2020, o crescimento da proporção de crescimento de conselheiros independentes nas estatais independentes (de 21% para 30%) e na adoção de processos formais de avaliação de desempenho dos conselheiros de administração (de 51% para 83%).