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A crise econômica afetou a saúde, e quase meio milhão de brasileiros deixou de contar com a proteção de planos de assistência médica nos primeiros sete meses deste ano. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostram que o universo de 50,69 milhões de usuários registrado em janeiro foi encolhendo mês a mês e chegou em julho a 50,19 milhões. A queda inverte a curva de crescimento do setor nos últimos anos e acompanha o aumento do desemprego, sobretudo no mercado formal. Das 492 mil pessoas que ficaram sem plano ou seguro-saúde, a grande maioria tinha plano empresarial, aquele pago pelas companhias para seus funcionários.

O movimento é percebido pelas operadoras, que consideram, porém, se tratar mais de uma desaceleração.

— O mercado de saúde suplementar tem registrado um avanço mais lento da base de beneficiários. Claro que uma das razões é o menor volume de contratação de planos empresariais, resultado da redução da atividade econômica. Mas a preocupação com a saúde faz com que as famílias mantenham os planos e seguros de saúde mesmo após episódios de desemprego ou queda de remuneração — pondera Marcio Coriolano, presidente da FenaSaúde, entidade que representa 24 seguradoras de saúde.

Gasto de planos de saúde é 55% maior do que o do governo federal

Segmento atende 25% da população e está no topo de ranking de queixas

O sistema de saúde suplementar do país, que inclui planos e seguros-saúde, está realizando a façanha de gastar uma montanha de dinheiro para produzir uma rede de insatisfeitos. Ano passado, o atendimento aos 25% da população que contam com a cobertura dos convênios — cerca de 50 milhões de pessoas — consumiu R$ 143,9 bilhões em pagamento de mensalidades e receitas próprias. É 55,4% mais que os R$ 92,6 bilhões destinados pelo governo federal ao atendimento de 100% da população, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Ministério da Saúde. A despesa total do SUS, que inclui gastos dos estados e municípios, foi de RS 359 bilhões.

Ainda assim, os segurados dos planos estão entre os consumidores que mais reclamam, os médicos, laboratórios e hospitais esperneiam por receber pouco pelos serviços, e as empresas argumentam que estão com o caixa estrangulado pela alta de custos. Das 1.390 operadoras em atividade, 56 estão sob direção fiscal da ANS por causa do desequilíbrio econômico-financeiro.

— É um volume muito grande de recursos e não resolve o problema, porque nem a saúde desse grupo é boa. Caso contrário, não teríamos tantos hipertensos e pacientes de doenças crônicas — diz Ligia Bahia, pesquisadora de saúde da UFRJ.

“Todos têm razão”

No Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), os planos e seguros lideram o ranking de insatisfação, com 20% de todas as queixas de 2014. Reajustes abusivos e negativas de atendimento são os principais motivos. A ANS recebe cerca de 20 mil reclamações por mês, e na Justiça tramitam cerca de 400 mil processos sobre o tema. São casos como o de Angela Barreiros, de 61 anos, que paga mensalidade de R$ 2 mil pelo plano da Unimed-Rio. No começo do mês, precisou marcar uma ultrassonografia de abdômen e, após ligar para várias clínicas, conseguiu vaga para 16 de fevereiro do ano que vem.

— Isso é todo ano. Fico extremamente chateada. Não devia ter de ficar implorando por um exame tão simples — diz ela, que só conseguiu agilizar a marcação após entrar em contato com a Defesa do Consumidor, do GLOBO.

A Unimed-Rio informou que o prazo legal “para marcação deste tipo de exame é de dez dias úteis, logo, o agendamento foi feito dentro do prazo, e a cliente foi atendida”.

Na outra ponta, o superintendente executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), Luiz Augusto Carneiro, argumenta que a inflação médico-hospitalar variou entre 15% e 18% nos últimos quatro anos, enquanto a inflação oficial ficou entre 5,84% e 6,5%. Já a Associação Médica Brasileira reclama da resistência das empresas a melhorar os honorários dos profissionais que, segundo a entidade, “chegam a ser vergonhosos”.

— Todos têm sua razão. As margens das operadoras de saúde estão muito próximas de zero, os beneficiários têm dificuldade para suportar os custos, e os médicos acreditam que merecem mais do que recebem, apesar de receberem reajustes de honorários acima da inflação — admite Pedro Ramos, diretor da Abramge, que reúne as empresas de planos de saúde.

Encarregada de por ordem no mercado, a ANS atribui o imbróglio ao envelhecimento da população e às novas tecnologias.

— É um conjunto. Longevidade e complexidade têm custo cumulativo. Temos de compartilhar a gestão entre todos para que o médico e o prestador sejam melhor remunerados, dentro de uma situação econômica que a operadora possa realizar e o consumidor, pagar — diz José Carlos Abrahão, presidente da ANS.

Sistema “ao, ao, ao”

Martha de Oliveira, diretora de Desenvolvimento Setorial da ANS, acrescenta que, em saúde, bom resultado depende de variáveis como gestão, organização e qualidade do serviço:

— Não é apenas o gasto que determina o bom resultado.

Ligia discorda da tese de fragilidade econômica das empresas e diz que é preciso repensar o modelo de saúde. Defende sistema semelhante ao modelo inglês, no qual os clientes têm menos opções, mas são sempre atendidos pelos mesmos médicos:

— Precisamos é acabar com o sistema “ao, ao, ao”. O paciente vai ao clínico, que manda ao cardiologista, que manda ao neurologista, que manda a outro especialista, e ninguém resolve. Mas as empresas não querem mudar porque tem gente ganhando muito dinheiro, então, está ótimo assim.

Faltam planos individuais

Mas, mesmo quando um trabalhador que ficou desempregado ou se aposentou faz um esforço para pagar um plano por conta própria, ele encontra obstáculo: contratar um plano individual é missão quase impossível. Hoje, menos de 20% dos segurados contam com essa modalidade (veja o infográfico com os tipos de plano de saúde).

— A oferta de planos individuais é quase inexistente, e o que existe é monopolizado por poucas empresas, que cobram caro pelo serviço — avalia Joana Cruz, advogada especialista em Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Uma pesquisa realizada pelo Idec nas 27 capitais, no fim do primeiro semestre deste ano, identificou que em cinco delas (Belo Horizonte, Salvador, Macapá, São Luís e Vitória) o consumidor não tem qualquer opção de plano individual com cobertura completa (ambulatorial, hospitalar e obstetrícia). Em outras 11 capitais (Rio Branco, Maceió, Manaus, Salvador, Goiânia, Campo Grande, Cuiabá, Belém, Boa Vista, Porto Alegre e Florianópolis), somente uma operadora — a Unimed — oferecia o serviço.

— O agravante é que, quando o consumidor encontra essa opção, pesa demais no bolso. A mensalidade inicial média de um plano com abrangência nacional para um usuário na faixa dos 30 anos compromete 40% de sua renda média. Diante disso, ou a pessoa opta por pagar, ou usa particular quando precisa ou vai parar no SUS (Sistema Único de Saúde) — complementa Joana.

No Rio, a oferta também é escassa. Levantamento feito pelo GLOBO na última quinta-feira com as dez operadoras com o maior número de beneficiários da cidade — 70% dos clientes da capital — mostra que apenas três vendem planos individuais (Unimed-Rio, Assim e Grupo Cemeru). Para uma mulher de 45 anos, as mensalidades variaram entre R$ 454,29 e R$ 721,48. Amil, Bradesco Saúde, Golden Cross, Sul América Seguros, Memorial Saúde e Central Nacional Unimed não trabalham com a modalidade. As repórteres não conseguiram contato com a Notre Dame Intermédica, que está entre as dez maiores.

Foi por causa dessa dificuldade que o microempresário Ricardo Bahouth Kimaid se esforçou para manter o seguro-saúde da Sul América na categoria empresarial, que paga há cerca de dez anos. O contrato cobria três pessoas — ele, um dependente e uma funcionária. O problema é que, após a aposentadoria da empregada, ele ficou com apenas duas pessoas no plano, número insuficiente para caracterizar a modalidade empresarial. Kimaid descobriu, então, que a operadora não vendia planos individuais.

— Se, após pagar por quase dez anos o plano de saúde como empresa, ela for diluída, eu fico descoberto, pois não há plano individual. Essa é mais uma das covardias que cometem com o cidadão, refém da inoperância e indiferença de nossos governantes. Isso porque, nos planos individuais, os aumentos giram em torno da inflação do período, já nos coletivos, o reajuste, que é livre, tem ficado muito maior, em torno dos 17% — reclama.

A SulAmérica informou que, por estratégia, não vende planos individuais desde 2004.

Segundo a advogada especialista na área de saúde Renata Vilhena, para as operadoras não é vantajoso trabalhar com planos individuais porque, ao contrário do que acontece nas modalidades coletivas, o reajuste é regulado pela ANS, que determina o percentual máximo de aumento. Este ano, foi de 13,55%, o maior da última década. Além disso, por ser um produto caro, em geral, quem paga os planos individuais são idosos ou pessoas com doenças crônicas, que usam muito os serviços, ou seja, custam caro para as operadoras.

— O mercado suspendeu a venda de planos individuais para driblar a proteção legal e poder cobrar uma mensalidade maior. Além disso, manter a venda dessa modalidade de plano leva as operadoras a incorporarem em sua carteira grupos de risco, como pessoas idosas, que estão amparadas pelo rigor do limite dos reajustes e que usariam mais os serviços — diz a advogada.

Operadoras contra o teto

O setor de saúde suplementar não esconde o descontentamento com a regulação. Para Coriolano, o controle de preços é um entrave que desestimula a venda de planos individuais.

— A política de reajustes desconsidera a evolução dos custos médicos, que crescem a índices superiores aos aumentos autorizados pelo regulador. A atuação da regulação deveria estimular a livre concorrência e o bom funcionamento dos livres mercados — disse Coriolano, ressaltando que os recursos dos planos de saúde são finitos e obtidos unicamente por meio do pagamento de mensalidades por cidadãos e empresas.

Pedro Ramos, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), reforça a crítica da FenaSaúde e acrescenta que o controle dos reajustes provoca desequilíbrio econômico-financeiro insustentável às empresas.

A extinção da Unimed Paulistana e a crise na Unimed-Rio, empresas fortes no mercado de planos individuais, reforçam o ponto de vista de Ramos. A cooperativa médica carioca, que está sob direção fiscal da ANS, encerrou 2014 com um prejuízo de R$ 198 milhões. Uma parte, R$ 108 milhões, foi coberta pelo Fundo de Reserva. Os R$ 90 milhões restantes devem ser pagos pelos médicos cooperados, mas a decisão precisa ser aprovada em assembleia marcada para o próximo dia 26. Segundo a cooperativa, os resultados deste ano estão dentro da previsão e orçamento traçados, que estimavam um ano ainda de dificuldades. O plano previa várias medidas de redução de custos, cujos efeitos demorariam um certo período para aparecer. A Unimed Brasil, que representa as cooperativas do sistema, afirma não haver qualquer evidência “de que os desafios enfrentados por operadoras de grande porte estejam relacionados à oferta de planos individuais”. Hoje, 40% dos clientes Unimed têm essa modalidade de plano.

Palavra dos especialistas

Na visão de Ligia Bahia, professora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da UFRJ, é um escândalo não ter plano individual:

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— As empresas não fazem saúde. Dizem que têm margem de ganho pequeno, de 2%, mas são 2% de R$ 150 bilhões. Tanto que elas não querem mudar o sistema, qualquer proposta que a gente faz não é aceita. A maioria desses milhares de brasileiros que saíram dos planos de saúde este ano é terceirizado das empreiteiras. Não tinham plano de saúde, passaram a ter, perderam de novo junto com o emprego e agora não têm dinheiro para pagar por conta própria. E mesmo os que têm dinheiro não encontram planos individuais para comprar. Terão que optar por um plano por adesão, que é um falso coletivo. São mais caros e têm menos garantias. Isso é um escândalo. As empresas deveriam ser obrigadas a oferecer planos individuais e a preços razoáveis. Quanto à ANS, tenho cada vez mais clareza de que nossa reguladora é muito fraca.

Já a advogada Renata Vilhena observa que as famílias costumam cortar o plano de saúde por último de seus orçamentos:

— Apesar dos altos índices de demissões de trabalhadores com carteira assinada, o que indica a perda de benefícios como o plano de saúde, eu acredito que, por parte das famílias, é a última despesa a ser cortada no orçamento familiar. O consumidor pode ser demitido, ter o plano da empresa cortado, mas fará o possível e o impossível para contratar outro plano. A possibilidade de só ter o SUS para ser atendido assusta. Principalmente a classe média. Mas, justamente para poder cobrar uma mensalidade maior, fugindo da rigidez dos planos individuais, poucas empresas ofertam essa modalidade. Só é possível melhorar o acesso do cidadão à saúde suplementar mediante atuação transparente da Agência Nacional de Saúde, que deve ser administrada por pessoas isentas e não que tenham participado da diretoria de operadoras do setor.

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