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Regras do governo para aplicativos de transporte podem reduzir ganhos dos motoristas e encarecer o serviço, dizem especialistas.
Regras do governo para aplicativos de transporte podem reduzir ganhos dos motoristas e encarecer o serviço, dizem especialistas.| Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

A regulamentação do trabalho por aplicativos, apresentada em projeto de lei complementar pelo governo, contém "paradoxos" e "incongruências", além de restringir a autonomia dos motoristas, segundo avaliação de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo.

O projeto em tramitação na Câmara cria a categoria do "trabalhador por plataforma de veículos de quatro rodas" e contou com a participação de representantes dos motoristas e de empresas, como Uber e 99. Foi festejado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por aliar "autonomia com garantias previdenciárias".

O advogado e consultor Eduardo Pastore vê um "grande paradoxo" no texto, que começa definindo o trabalhador como autônomo, mas, a partir do terceiro artigo, passa a regular a relação como se fosse baseada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

São estabelecidos critérios como jornada mínima, valor fixo da hora com base no salário mínimo, além de contribuição previdenciária – deduzida na fonte e recolhida pelas empresas – e criação de sindicato da categoria. O texto também define parâmetros para o desligamento ou suspensão do motorista da plataforma.

"A conclusão é que tem tanta amarra, tanta regra, que o trabalhador não é um autônomo coisa nenhuma. É uma relação ultrarregulada, com carga horária, remuneração e Previdência. No final das contas, eles meio que criaram uma figura estranha", diz Pastore.

Bruna Pereira Longhi, do Rocha Pombo & Andrade Advogados, avalia que o projeto tem "cara de CLT e restrições de CLT, mas tenta camuflar uma relação com as mesmas consequências trabalhistas, sem trazer todos os benefícios da modalidade".

Regras do governo não resguardam autonomia dos motoristas

A autonomia, aspecto inerente ao trabalho por aplicativos, não está preservada, segundo Longhi. O projeto explicita que não deve existir uma relação de exclusividade do motorista com a plataforma. Mas, ao estabelecer jornada mínima de oito horas e máxima de 12 horas, o texto não deixa claro como a carga horária pode ser dividida entre duas ou mais plataformas.

"Há muitos pontos que geram dúvida. A aplicação da não exclusividade é frágil, traz contradições. Autonomia seria os motoristas terem a possibilidade de trabalhar quantas horas quiserem e para qual aplicativo desejarem", afirma.

Pastore também levanta pontos obscuros. "Se o motorista quiser fazer oito horas numa plataforma e quatro em outra, pode? Se quiser fazer oito em cada uma, como você faz? Como você consegue, inclusive, computar? Porque tem todo um mecanismo de controle de jornada para poder adquirir esses direitos", afirma.

Para o consultor, o trabalhador pode acabar trabalhando 12 horas para uma só plataforma, o que vai abrir brechas para a judicialização. "O motorista pode sentir que, na prática, está sendo exclusivo e reivindicar o vínculo empregatício", afirma. "Exatamente o ponto que o projeto deveria pacificar."

Acordos coletivos restringem independência de motoristas por aplicativo

Outro ponto que restringe a independência dos motoristas, segundo Longhi, é a criação das entidades sindicais de trabalhadores e patrões, que deverão celebrar os acordos coletivos e representar as partes em ações na Justiça.

"A lei estabelece que as cláusulas negociadas em convenções e aprovadas em assembleia não poderão ser revogadas em caráter individual. Ou seja, o trabalhador vai ficar submetido ao que for estabelecido nas negociações, refém de regras firmadas em acordo coletivo. A autonomia aí já fica comprometida", explica.

Pastore lembra que sindicatos representam trabalhadores celetistas, não autônomos. "É outro paradoxo, outra contradição. O governo está tentando aproximar esse trabalhador dos sindicatos, que vão fazer negociação coletiva, buscar mais direitos. E vão cobrar a parte deles, com contribuições. Os próprios motoristas da Uber dizem não querer isso. Para eles está bom do jeito que está, ganhando bem. Não querem pagar sindicato", diz.

Contribuições à Previdência podem reduzir salários e encarecer as corridas

As alíquotas previdenciárias também são ponto de questionamento. O trabalhador pagará 7,5% sobre o “salário de contribuição” (25% da renda bruta) e empresa pagará 20%.

Na avaliação de Pastore, trata-se de um custo alto para as plataformas, especialmente porque motoristas, ao contrário de entregadores de motocicletas, se acidentam pouco e requerem menos o uso do Sistema Único de Saúde (SUS) e de auxílios pagos pelo INSS. "Pagar 20% de Previdência Social para esse povo todo pode inviabilizar o negócio. É uma pancada forte", afirma.

Bruna Longhi acredita que é muito improvável que as empresas arquem com este custo previdenciário, o que deve reduzir o valor da corrida para os motoristas e, em último caso, aumentar o valor do serviço ao consumidor. O projeto prevê R$ 32,09 por hora de trabalho, sendo R$ 8,02 relativos às corridas e R$ 24,07 referentes aos custos do motorista. Assim, a remuneração mensal será de, ao menos, um salário mínimo (R$ 1.412).

"O valor estabelecido é por hora trabalhada, e não por hora que ele fica disponível no aplicativo. O motorista vai sair de cobrança de viagens para receber o valor de hora rodada, com limitação de tempo. O valor pode variar no final dependendo da quantidade de horas que ele vai trabalhar. A empresa, justamente, pode pensar, 'eu vou diminuir o valor de viagem, e garantir que apenas o mínimo seja pago'. Assim vai repassar esses 20%. Estas disposições ficaram muito imprecisas no projeto", diz Longhi.

Projeto atende a interesses do governo e das empresas, diz Fembrapp

Denis Moura, diretor da Federação dos Motoristas por Aplicativos (Fembrapp), que congrega 30 associações e representa cerca de 100 mil motoristas no país, diz que o projeto limita os ganhos do motorista e tira a autonomia, "que já era pouca". "A empresa vai dividir as corridas entre os motoristas de forma que todos vão receber só a hora mínima", afirma.

Para ele, o projeto é "extremamente" ruim para o trabalhador e o usuário, que vão acabar arcando com as contribuições.

"Que fique claro que essa história de que a empresa vai pagar 20% do INSS é 'conversa fiada', pura, porque as empresas não declaram quanto que é a tarifa. Você, como passageiro, não sabe o quanto paga de tarifa pela corrida. O motorista também não sabe", diz Moura.

"A taxa descontada em cada corrida varia de 20% a 40%, às vezes até 50% do valor pago pelo usuário. Se a empresa manipula o preço da viagem, porque ninguém sabe qual é a tarifa dos aplicativos, obviamente ele vai manipular os 20% e quem vai pagar isso é o motorista e também o passageiro", acrescenta.

Além disso, Moura alega que a alíquota total de 27,5% dá ao motorista direito à mesma seguridade que ele teria sendo Microempreendedor Individual (MEI). Mas este recolhe muito menos: nas atividades de comércio, serviços e indústria, a contribuição previdenciária do MEI é de 5%; para o MEI caminhoneiro, 12%.

"O projeto torna o governo o "sócio majoritário" dos aplicativos [por conta das contribuições previdenciárias]", diz o diretor da Fembrapp.

Protestos de motoristas devem se intensificar pelo país

Para o diretor da Fembrapp, os termos do projeto foram estabelecidos com anuência das empresas e de sindicatos que não têm representatividade efetiva dos trabalhadores.

"Quando criou o grupo de trabalho, o governo visava conversar só com os sindicatos estabelecidos, a maioria esmagadora sem motorista de aplicativo no seu corpo. Mas era com quem o governo gostaria de falar. Eles se transformaram artificialmente em sindicatos da categoria. Nós [da Fembrapp] tivemos que forçar nossa entrada no grupo do Ministério [do Trabalho]", afirma.

Protestos de motoristas contra o projeto tem acontecido em cidades do país, como Goiânia, Belo Horizonte, Manaus e Brasília. No Rio de Janeiro, há mobilização marcada para 26 de março e em São Paulo, para 2 de abril. "Ninguém está aceitando isso", afirma Moura.

O diretor da Fembrapp informa que um grupo de motoristas vai visitar os gabinetes de parlamentares em Brasília para tratar do tema. O projeto tramita em regime de urgência constitucional, o que significa que Câmara e Senado terão 45 dias cada para votar a matéria.

A prioridade do grupo é tentar retirar o pedido de urgência, que, para Moura, é uma forma de atropelar as discussões. "Demoraram um ano para fazer e agora querem votar com urgência? É para não dar tempo de reagir. Mas a gente vai tentar derrubar o projeto", diz. "Não compensa nem fazer emendas", afirma o diretor da Fembrapp.

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