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Impostos no Brasil pesam mais sobre classe média e pobres que sobre os mais ricos. Mas não há consenso sobre a solução mais adequada.| Foto: Fernando Jasper/Gazeta do Povo

Além de aumentar a arrecadação, as mudanças tributárias que o governo tem promovido visam, segundo o discurso oficial, tornar o sistema de impostos mais progressivo. “Nosso objetivo é trazer os pobres para o orçamento e os ricos para o sistema tributário”, declarou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em ofício ao Fundo Monetário Internacional (FMI) no ano passado, repetindo discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Haddad voltou ao tema nesta quarta-feira (28), ao discursar em um encontro do G20. "Precisamos fazer com que os bilionários do mundo paguem sua justa contribuição em impostos", afirmou. Segundo o ministro, a globalização e as crises econômicas criaram um sistema complexo que facilita a evasão tributária para os super-ricos.

Números da Receita Federal e diferentes estudos apontam que há no Brasil, de fato, uma cobrança proporcionalmente maior de impostos sobre estratos de menor poder aquisitivo, ao passo que faixas de alto rendimento tendem a ser menos tributadas.

Na tributação da renda, grupos que costumam ser classificados como classe média e média alta pagam proporcionalmente mais imposto que os mais ricos – em alguns casos, quase o dobro. E a taxação do consumo, maior fonte de arrecadação do setor público, pesa muito mais sobre as faixas de renda mais baixas que sobre as mais altas.

Grupo mais taxado pelo Imposto de Renda paga quase o dobro que os mais ricos

Dados da declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) de 2022 (ano calendário 2021) mostram que contribuintes que ganharam acima de 160 salários mínimos – R$ 176 mil mensais ou R$ 2,1 milhões no ano – pagaram uma alíquota efetiva de IRPF de menos de 5,5%.

Enquanto isso, os que declararam renda mensal entre cinco e sete salários mínimos (R$ 5,5 mil a R$ 7,7 mil à época) recolheram em média 6%. O grupo mais taxado pelo IRPF, porém, foi o que apresentou renda entre 10 e 40 salários mínimos (R$ 11 mil a R$ 44 mil), com uma alíquota efetiva acima de 10%. Os dados são de levantamento realizado pelo Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional).

A classe média também é penalizada pela falta de correção da tabela do Imposto de Renda, que a cada ano aumenta a "mordida" do Leão sobre os rendimentos. As mudanças promovidas pelo governo em 2023 e 2024 afetaram apenas a faixa isenta de IR, beneficiando principalmente quem ganha até dois salários mínimos, ao passo que as demais faixas estão sem correção há nove anos.

Países desenvolvidos ou em nível de desenvolvimento semelhante ao brasileiro em geral cobram alíquotas maiores de imposto de renda dos mais ricos. A cobrança do tributo no Brasil conta com cinco faixas de incidência, que vão de 7,5% até 27,5%. Nos Estados Unidos, as alíquotas partem de 10% e chegam a 37%, em sete diferentes faixas de incidência. Na Coreia do Sul, também com sete faixas, a mais alta chega a 42%. França e Alemanha cobram até 45%, enquanto no Japão o imposto supera os 55% para a última faixa salarial.

Além disso, o Brasil ainda trata de forma diferenciada, com menor tributação, rendimentos auferidos pelo capital, o que favorece quem mantém reservas financeiras para investir. Alienação de imóveis e ganhos com ativos financeiros, por exemplo, são comparativamente menos taxados que salários, enquanto lucros e dividendos distribuídos a acionistas são isentos de IRPF.

Nessa última questão reside uma das maiores discussões entre estudiosos da tributação. Quem concentra a análise na tributação da pessoa física diz que empresários e acionistas pagam pouco imposto por causa da isenção dos dividendos. De outro lado, há quem diga que é preciso considerar toda a cadeia de tributação, uma vez que os sócios são taxados indiretamente por meio dos impostos pagos pela empresa – mais especificamente, o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) (leia mais abaixo, no tópico "Aumento de carga sobre mais ricos pode causar fuga de investimentos").

Carga tributária do Brasil é mais concentrada no consumo – e pesa mais sobre quem ganha menos

Comparativamente a outros países, a carga tributária brasileira também é mais concentrada no consumo do que na renda e no patrimônio, o que prejudica quem dispõe de salários menores.

Enquanto o estrato populacional que compreende os 10% mais pobres gasta cerca de 90% de sua renda em consumo, esse índice cai para 24% entre o 1% mais rico, aponta estudo de 2020 do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made), da Universidade de São Paulo (USP), com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em 2022, segundo estudo da Receita Federal, 40,16% de toda arrecadação com tributos no Brasil veio de impostos sobre bens e serviços, enquanto 27,43% foram da taxação da renda e apenas 4,78%, do patrimônio.

O maior peso na chamada tributação indireta também diferencia o sistema tributário brasileiro do de outros países. O total de tributos recolhidos no Brasil em 2021 correspondeu a 33,5% do Produto Interno Bruto (PIB), índice até menor do que o da média dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que foi de 34,1%.

Os impostos sobre consumo, no entanto, representaram quase metade do montante (15%), enquanto entre os membros da entidade equivaleram a menos de um terço (10,6%). A tributação sobre renda, por sua vez, foi equivalente a 8% do PIB no Brasil. Já entre os países do “clube dos ricos”, a média foi de 11,3%.

Mudanças feitas desde a redemocratização tornaram o sistema tributário mais regressivo

Desde a redemocratização, as mudanças no sistema tributário propostas por parlamentares fizeram os impostos avançarem ainda mais sobre a classe média e os mais pobres.

Um estudo publicado em 2022 mostrou que de quase 5 mil proposições legislativas relacionadas ao sistema tributário apresentadas à Câmara dos Deputados desde a promulgação da Constituição de 1988, apenas 5% visaram tornar o regime mais progressivo. O levantamento foi feito por pesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da USP, com apoio da Samambaia Filantropia.

Outro levantamento, este do Made/USP, mostrou que durante o regime militar (1964-1985) houve mais leis baseadas na distribuição de renda, especialmente a partir de 1975, do que após a redemocratização.

“Podemos afirmar que, desde a redemocratização, a diferença de alíquota efetiva de quem recebe 15 vezes a renda média em relação a quem recebe três [vezes a renda média] tem constantemente sido reduzida, indicando uma queda efetiva da progressividade do sistema tributário”, concluíram os autores Nikolas Shiozer, João Victor Sales Marcolin, Isabella Comini Bouza e João Pedro Viegas de Moraes Lemes.

Essa perda de progressividade pode ainda estar subestimada, uma vez que não foram consideradas isenções, abatimentos e deduções, apenas a alíquota efetiva dos impostos.

Medidas adotadas pelo governo visam equilibrar carga tributária

Ao longo de 2023, primeiro ano do terceiro mandato de Lula, várias das medidas arrecadatórias tomadas ou ensaiadas pela equipe econômica visaram reduzir privilégios de grupos com maior poderio econômico, porém ainda de forma limitada. Entre elas, a taxação de rendimentos de ativos no exterior (offshores) e de fundos exclusivos e o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF).

No âmbito empresarial, a limitação no uso dos Juros sobre Capital Próprio (JCP) e o fim da retirada de subvenções estaduais da base de cálculo do IRPJ e da CSLL também miraram benesses voltadas a grupos específicos. A atual empreitada de Haddad é acabar com a desoneração da folha de pagamento que beneficia setores específicos da economia.

Somam-se à lista ainda mudanças previstas na reforma tributária, apoiada pelo governo, como a previsão de alíquotas progressivas para o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e de cobrança do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) de proprietários de aeronaves e embarcações.

“Se a gente pega com uma lupa um pouco mais abrangente, percebe que o governo, nesse fatiamento da reforma tributária, está buscando tornar menos desigual a tributação de alguns setores, em especial no que diz respeito àqueles que possuem mais recursos e os que possuem menos recursos”, diz Renato Aparecido Gomes, advogado tributarista do Gomes, Almeida e Caldas Advocacia.

A segunda etapa da reforma tratará especificamente da tributação sobre renda, e membros da equipe econômica do governo têm defendido a volta da taxação de lucros e dividendos, isentos desde 1995. Outra medida estudada é a criação de uma nova faixa de incidência do IRPF, para rendas mais elevadas.

O governo defende que essa etapa da reforma aumente a tributação sobre renda para viabilizar uma redução no peso dos impostos sobre a aquisição de bens e serviços. “Do meu ponto de vista, essa reforma deve viabilizar a redução da carga sobre o consumo, o que permitiria uma alíquota de IVA [Imposto sobre Valor Agregado] menor. Tributa mais a renda, diminui o peso sobre o consumo, e o efeito fica neutro sobre a carga tributária total. Tudo com transição para que não seja de um ano para o outro, seja diluído no tempo”, disse Haddad em entrevista recente para o jornal “O Globo”.

Vale ressaltar que a nova distribuição da carga tributária citada pelo ministro dependeria de futuras alterações na legislação. Afinal, a recém-aprovada reforma tributária prometia uma "neutralidade" da carga total sobre o consumo, que idealmente não seria elevada nem reduzida. Não há na nova legislação qualquer compromisso de aliviar a tributação do consumo em caso de aumento na taxação da renda.

Gomes acredita que, passada a segunda etapa da reforma, o país deva discutir a taxação de grandes fortunas. Essa é uma demanda histórica da esquerda, cercada de contestações, inclusive sobre sua eficácia – vários países desenvolvidos que testaram tal tributo desistiram dele na sequência.

A Constituição de 1988 prevê a criação de um imposto sobre grandes fortunas (IGF), mas até hoje o trecho não foi regulamentado. Em 2019, o Psol chegou a protocolar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) no Supremo Tribunal Federal (STF) em razão da falta de instituição do tributo. Com um voto favorável do ex-ministro Marco Aurélio Mello, o julgamento foi suspenso em 2021 após pedido de destaque de Gilmar Mendes.

Aumento de carga sobre mais ricos pode causar fuga de investimentos

Não há, no entanto, um consenso em torno do modelo tributário mais adequado para a alta renda em razão dos efeitos que o aumento da carga de impostos pode acarretar.

Há quem defenda a necessidade de se cobrar alíquotas mais elevadas dos mais ricos, aumentando o peso da tributação sobre renda e patrimônio de modo a cobrar mais de quem ganha mais. De outro lado, há os que consideram que taxar quem detém grandes quantias de capital para alocar na economia pode acabar por afastar investimentos no país, prejudicando toda a população.

No ano passado, após o governo publicar a medida provisória (MP) que estabeleceu a taxação de fundos exclusivos, houve reação de alguns setores. Em artigo intitulado “Ser rico não é pecado”, o empresário João Camargo, presidente do conselho do think tank Esfera Brasil, criticou a iniciativa. Citando exemplos de países europeus e da Argentina, ele argumentou que, além de causar a evasão de capital e investimentos do país, impostos sobre a riqueza líquida diminuiriam a arrecadação do governo.

“A taxação dos ‘super-ricos’, defendida como ferramenta de justiça social, acaba resultando, paradoxalmente, em queda de arrecadação e em piora dos indicadores sociais, haja vista que é o investimento do empresariado que gera riqueza, inovação e emprego”, escreveu.

Países como Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Itália, Holanda e Japão chegaram a tributar grandes fortunas mas acabaram recuando da medida depois que milionários residentes buscaram cidadania em outros países a fim de pagar menos impostos.

A tributação de lucros e dividendos também é controversa. O rendimento é isento desde 1995, por força da Lei 9.249. A justificativa para a decisão, à época, foi de que tributar o lucro exclusivamente na empresa, isentando o recebimento pelos beneficiários, tornaria o controle mais simples e inibiria a evasão. Além disso, a isenção estimularia a alocação de recursos por parte das pessoas físicas em atividades produtivas.

Apesar de não haver taxação do valor distribuído a acionistas, o lucro da empresa é tributado em até 34% com IRPJ e CSLL. “Todo o ônus tributário recaindo sobre o lucro corporativo já tributa indiretamente o investidor à razão de 34%”, argumenta Elidie Palma Bifano, advogada e professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV), em artigo publicado recentemente na “Folha de S.Paulo”.

Para ela, modificar o quadro atual, aumentando o imposto para a pessoa física, seria “absolutamente destituído de razoabilidade” por abalar-se “o equilíbrio trazido pela lei 9.249/95”.

A mudança, no entanto, foi defendida pelo ex-ministro da Economia do governo de Jair Bolsonaro (PL), Paulo Guedes, que chegou a encaminhar um projeto de lei que reformava a tributação sobre renda e previa a taxação de dividendos. Mas o texto, aprovado após diversas modificações na Câmara, não avançou no Senado.

Um estudo elaborado por pesquisadores do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da mesma FGV, e do Made/USP, mostra que, apesar da previsão legal de 34% de tributação sobre o lucro corporativo, empresas brasileiras de capital aberto pagam em média 18,1% de alíquota efetiva, pouco mais da metade da taxa nominal e abaixo da média global, de 23,5%.

Segundo a pesquisa, intitulada “A tributação da renda corporativa no Brasil: estimativas da carga tributária efetiva a partir das demonstrações de resultado no período 2012–2022”, a diferença é explicada pela existência de benefícios fiscais e práticas de planejamento tributário, além de evasão fiscal e de decisões judiciais que afetam o recolhimento desses impostos.

Os autores destacam que a diferença entre a alíquota nominal e efetiva cresceu ao longo do período analisado e que há setores que conseguem descontos maiores do que outros, o que cria um grupo de empresas privilegiadas.

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