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Dois livros clássicos de literatura norte-americana foram temporariamente retirados das bibliotecas das escolas do distrito de Accomack, no estado de Virgínia, nos Estados Unidos (EUA), por serem considerados racistas. A decisão, fortemente criticada por educadores, foi tomada pelas autoridades após pais de alguns estudantes considerarem “O Sol É para Todos”, de Harper Lee, e “As Aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain, ofensivos para alunos negros. Accomack tem 5 mil estudantes, dos quais 37% são afrodescendentes.

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A polêmica cresceu quando Marie Rothstein-Williams, mãe de um aluno afrodescendente de ensino médio da Nandua High School, fez uma reclamação formal dizendo que o seu filho estava sofrendo ao ler a obra de Mark Twain, publicada em 1884. Suas palavras foram gravadas na reunião do conselho da escola do último dia 15 de novembro.

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“Eu ouvia me dizerem, ‘Este livro é um clássico. Este livro é um clássico’. Eu entendo que seja um clássico da literatura. Mas em algum ponto eu sinto que as crianças não irão entender a parte literária, que eu não estou contestando”, afirmou. “É um livro de grande literatura. Mas há tantos termos raciais e frases ofensivas que não dá para ignorar”. E acrescentou: “então, o que é que estamos ensinando às nossas crianças? Estamos validando que essas palavras são aceitáveis, e elas não são, de modo algum”.

Em resposta, o distrito de Accomack criou uma comissão para definir se os dois livros devem permanecer nos currículos e bibliotecas. Ao mesmo tempo, retirou as cópias das publicações das escolas, o que levantou forte reação nas mídias sociais e de entidades, como a Coalizão Nacional Contra a Censura (NCAC, pela sigla em inglês). “Ao evitar a discussão de questões controversas, como o racismo, as escolas fazem um grande desserviço aos seus alunos”, escreveu a NCAC em seu site.

Essa não é a primeira vez que ocorre uma reclamação formal contra as duas obras, de acordo com a American Library Association, entidade que promove bibliotecas e espaços literários nos EUA. Apesar de reconhecer o desconforto com os livros em algumas escolas, um dos diretores da associação James LaRue, em entrevista ao jornal The Washington Post, defendeu que as escolas deveriam abordar essas obras com cuidado ao invés de simplesmente jogá-las fora.

“A América continua profundamente desconfortável com sua história racial”, disse LaRue. Mas esconder os livros equivaleria a “esquecer a história”.

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Análise

Será que o ensino desses livros ou de outros exemplos de literatura difícil ou racialmente carregada ao ponto do desconforto significa que os professores aprovam esse uso de linguagem? Claro que não, diriam muitos especialistas em literatura – na verdade, para muitos professores, evitar essas histórias seria o mesmo que apagar a realidade do racismo. O verdadeiro desafio, eles dizem, é que o resultado de qualquer lição depende principalmente dos próprios professores envolvidos.

Estudos recentes publicados no School Library Journal mostram que os bibliotecários andam praticando a autocensura com uma frequência cada vez maior: escolhendo, sem qualquer diretriz dos superiores, não exibir certos livros ou materiais que possam ser polêmicos

“Eu acho que o ponto crucial aqui é que o fardo da liberdade de expressão não recai sobre todos de forma igualitária. Os alunos afrodescendentes ouvem essas palavras com outros ouvidos – o argumento a favor da proibição desses livros é que as crianças brancas não sofrem com o fardo da liberdade de expressão do mesmo modo”, diz Philip Nel, professor de língua e literatura inglesa da Kansas State University, especializado em literatura infantil.

Em todo caso, o fato de que esses livros deixam os alunos e professores desconfortáveis não é motivo para não ensiná-los, diz Nel. Na verdade, o próprio desconforto que eles provocam pode ser incrivelmente útil nas mãos de um professor sensível capaz de orientar os alunos por essa experiência e criar um diálogo maior.

“O único modo de ensinar esses livros direito é pelo desconforto”, diz Nel ao The Monitor. “É por isso que esses livros não devem ser proibidos”.

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“Precisamos fornecer os recursos e o apoio aos professores para que eles saibam como mediar esses diálogos difíceis”, diz professora de literatura Jody Green, da University of California, em Santa Cruz. “Não podemos esperar que os professores de nível médio e universitário irão fazer um bom trabalho com esse material sensível a não ser que eles tenham o apoio necessário para lidar com esses diálogos”.

Proibições de livros, como a proposta na Virgínia, muitas vezes encontraram opositores pelo mero fato de que o ato de proibir livros remete às restrições à liberdade de expressão que muitos norte-americanos se orgulham em combater.

Outros pais de alunos no mesmo distrito escolar em Virginia expressaram preocupações sobre isso abrir um precedente perigoso, temendo que até mesmo uma proibição bem intencionada possa vir a dar lugar a uma censura generalizada.

Amy Pattee, professora de biblioteconomia e literatura infantil da Simmons College em Boston, diz que evitar os diálogos sobre literatura e assuntos culturais polêmicos pode criar correntes desconcertantes de censura na sociedade.

Segundo a Dra. Pattee, estudos recentes publicados no School Library Journal mostram que os bibliotecários andam praticando a autocensura com uma frequência cada vez maior: escolhendo, sem qualquer diretriz dos superiores, não exibir certos livros ou materiais que possam ser polêmicos. Essas escolhas, diz ela, têm como base o medo de uma reação jurídica por parte do público, mas são indicativos de preocupações entre bibliotecários.

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Em vez de restringirem a literatura de posições de autoridade, diz Pattee, os oficiais devem confiar que os professores avaliarão e ensinarão o material escolar de forma construtiva, criando uma conversa em vez de censura.

Qualquer que seja o caminho pelo qual as instituições optarão para chegarem a essas conversas, muitos especialistas concordam que vale a pena lutar pela abertura do diálogo.

“Eu sinto pelas instituições que estão sob esse tipo de pressão. Não acho que seja um ato racista o de ensinar livros que contêm racismo – se os professores forem cuidadosos, isso pode ser incorporado ao trabalho de combate ao racismo. Se tivermos tanto medo da polêmica a ponto de nos recusarmos a manter diálogos públicos abertos sobre questões raciais, estaremos nos encaminhando para um futuro racial pior até mesmo do que o nosso passado”, acredita Greene.

Ataque a Monteiro Lobato

O caso norte-americano lembra a polêmica criada ao redor da obra Caçadas de Pedrinho , de Monteiro Lobato. Em dezembro de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou um mandado de segurança que tentava impedir o uso do livro nas escolas públicas. Com a decisão, encerrava-se quatro anos de discussões sobre a distribuição da obra e o seu teor racista.

A requisição havia sido feita pelo Instituto de Advocacia Racial (Iara) e pelo técnico em gestão educacional Antonio Gomes da Costa Neto, após o Ministério da Educação (MEC) ter pedido ao Conselho Nacional de Educação (CNE) que voltasse atrás da determinação de um parecer de 2010 que recomendava banir a obra. De acordo com o documento, o texto de Monteiro Lobato fazia “estereotipia ao negro e ao universo africano”, comparando-o a animais como “urubu, macaco e feras africanas”. Na época da discussão, educadores criticaram fortemente o que chamaram de censura ao livro e anacronismo, o que seria prejudicial para o ensino da literatura brasileira e também para a aprendizagem da história nacional.

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