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Na semana passada publiquei coluna intitulada “Conhecimento da lebre versus A obra do Jabuti: Qual a ciência do Direito?” que, inesperadamente, alcançou grande repercussão. 

Nessa coluna, procurei denunciar que livros de elevada importância para a comunidade científica jurídica, para o ensino jurídico e para os operadores cotidianos do direito tinham sido qualificados, na mais recente avaliação da Capes, como se fossem uma literatura não científica, como obras de piso, não obstante esses mesmos escritos ostentarem uma relevância indiscutível para a pesquisa, para o ensino e para a prática do direito. 

Citei dois exemplos que dão conta do absurdo: o Tratado de Direito Privado, de Pontes de Miranda, recentemente atualizado, e os Comentários ao Código de Processo Civil, coordenados pelos professores Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Arenhart e Daniel Mitidiero. Ambos qualificados como literatura jurídica de piso, nada ou pouco científica, a despeito de que os “Comentários” foram recentemente laureados com o prêmio Jabuti, a mais importante comenda literária nacional. 

O indicativo dessa ressonância pública, ao contrário do que se pode imaginar, não foi mensurado apenas pelas manifestações de apoio que chegaram por mais de 700 compartilhamentos no Facebook, por dezenas de e-mails, de mensagens, de ligações de inúmeros docentes, pesquisadores, estudantes e operadores do direito, originados de rincões no Brasil e também do exterior, e por todos os demais meios de comunicação contemporâneos, que acabaram por aposentar os pombos-bilhetes e os sinais de fumaça. 

A medida da relevância do debate público, entre lebres e jabutis, sobreveio quando o professor da Unicap, Gustavo Santos, que atualmente figura como coordenador da área de Direito na Capes (sendo, portanto, o capo da burocracia que avalia a área do direito) resolveu me responder por meio da publicação de artigo nominado “Há muito mais do que lebres e jabutis na pós-graduação e na universidade”. 

Exerço, agora, o meu direito de réplica ao Gustavo Santos, a quem trato assim diretamente em homenagem à intimidade como que se referiu a mim em seu texto. 

Parto duma pequena e quase única concordância com Gustavo Santos: de fato, há muito mais do que lebres e jabutis, seja na pós-graduação, seja na universidade. Nessa fauna, para além da pluralidade de espécies, há muitos sofismas. 

Pretendo hoje tratar apenas de alguns dos sofismas encontrados na coluna por meio da qual o atual coordenador da área do Direito na Capes me honrou ao responder a minha coluna. 

Sofismas (com perdão ao leitor pelo cacoete professoral) são argumentos que, apesar de ostentar laivos de racionalidade, ao fim e ao cabo, seja pela falsidade de suas premissas, seja por uma estrutura interna inconsequente, servem para conduzir o debatedor (ou o leitor) ao erro, ao engodo.  

O primeiro sofisma do professor da Unicap encontra-se na seguinte afirmação: “Acredito que há, na crítica, um superdimensionamento do papel da avaliação feita pela Capes”. 

A assertiva é sofismática, em primeiro lugar, porque esconde do leitor o que, ao final, resulta das avaliações da Capes que integram o objeto de nosso debate: trata-se do principal critério para a distribuição das verbas públicas, ou seja, do dinheiro público, para os programas de pós-graduação públicos e privados. 

Ao fim e ao cabo, portanto, quando se classifica uma obra teórica como científica e outra como não científica está por se decidir para onde vai (e para onde não deve ir) o seu valioso dinheiro, caro leitor e contribuinte. Nunca é demais discutir os critérios para a repartição dos recursos públicos. Não há, portanto, superdimensionamento. 

A classificação da Capes, ademais, é indutora de comportamentos e, se incoerente ou falha, acaba por incentivar justamente o produtivismo tão fértil quanto estéril denunciado no artigo da Folha de S.Paulo que citei. Critérios classificatórios mal pensados e mal aplicados premiam as lebres, louvam o conhecimento lépido, que passa, que quase não é visto e nada transforma, em detrimento dos jabutis, de elaboração lenta e marcante. 

Mais do que isso: essa avaliação causa impacto na vida de milhares de professores, especialmente de instituições privadas. Falo aqui sem qualquer interesse pessoal: sou docente de uma universidade pública. Para os colegas das universidades privadas, uma produção mal avaliada (por critérios tão erráticos e mutantes) pode ensejar uma demissão. Gustavo Santos, que é professor da Unicap, uma respeitável escola privada, há de ter consciência desse efeito. 

Diz Gustavo Santos que a universidade não se limita à pós-graduação, vez que há outros espaços e meios para a produção e a divulgação do conhecimento. Nada de novo. Tal como se pode encontrar em qualquer panfleto de centro acadêmico, a universidade envolve o ensino, a pesquisa e a extensão. 

A premissa é verdadeira, mas a condução do raciocínio subsequente é falsa. Os espaços do ensino, da pesquisa e da extensão não são corpos estanques. São vasos comunicantes! Há inúmeras obras científicas, porque elaboradas com a consistência e o método que a ciência exige que, ao mesmo tempo, alimentam o debate dos pesquisadores, influenciam na operabilidade cotidiana e geram efeitos positivos para uma vida em sociedade. 

Voltemos aos dois exemplos citados na semana passada. Ambos são solventes do sofisma ora denunciado. O Tratado de Direito Privado, com seus 60 volumes escritos por Pontes de Miranda, é considerado por este escriba, e por muitas outras pessoas, como a maior contribuição científica brasileira ao Direito Privado. 

Trata-se de literatura que permeia o debate entre pesquisadores, de uso cotidiano pelos operadores do Direito e, também, que influencia a vida em sociedade. Por qual razão volumes da reedição do Tratado de Direito Privado, atualizados por professores de todo o Brasil, foram considerados como uma literatura de piso, digna dos extratos mais baixos da ciência? 

Acerca do Tratado, permitam-me contar uma daquelas histórias que orgulham a terra das Araucárias. O volume 10 do Tratado de Direito Privado – considerado por muitos o volume mais valioso e que versa sobre o complexo tema da “posse” –, foi atualizado pelo professor titular de Direito Civil da UFPR, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin. Essa atualização ocorreu durante a realização do pós-doutoramento daquele pesquisador no Max-Planck, em Hamburgo. 

Essa obra não seria científica para o Direito? Se não, por qual o critério? Pela capa do livro? Os Comentários ao Código de Processo Civil, organizados pelos pesquisadores Marinoni-Arenhart-Mitidiero, e escritos por professores de programas de pós-graduação de diversas escolas do Brasil, não seriam científicos? 

Por qual razão? O problema está no título? Se os autores porventura modificassem a chamada de capa para “O inovador produto de pesquisa na pós-graduação acerca do CPC”... Voilà! 

Haveria a transformação de uma obra de reles prática em uma obra científica? Can you judge a book by its cover? A sabedoria popular diz que não. 

Outro interessante sofisma está no raciocínio que partiu da assombrosa premissa, esclarecida pelo chefe da área do Direito na Capes, de que todos os livros produzidos nos programas de pós-graduação em Direito nos últimos quatro anos, aproximadamente 9.000 livros, foram avaliados por apenas dez pessoas em duas semanas (!). 

Atendendo a pedidos, vamos à Matemática, a “rainha das ciências”. Se cada semana tem sete dias, e cada dia tem 24 horas, considerando uma média elevada de dez horas de trabalho ininterruptos (sem descanso, nem mesmo aos sábados e domingos!), a avaliação de nove mil livros foi feita em 140 horas. 

Como foram dez os avaliadores, se pressupormos que, em média, cada livro contou com 300 páginas, chegamos ao impressionante resultado de mais de 1.928 páginas avaliadas por hora, por cada uma daquelas dez pessoas, em dez horas ininterruptas por 14 dias. 

Haja leitura dinâmica! Permitam-me mais um exemplo do resultado dessa estranha matemática. Dentre as obras avaliadas estava o meu livro Associação sem fins econômicos, que teve início com a minha tese de doutorado, aprovada summa cum laude, na USP. Uma vez concluída a tese, mantive a pesquisa por mais seis anos, em disciplinas que ofertei no curso de mestrado, em atividades de meu núcleo de pesquisa e durante estágio pós-doutoral na Itália. 

Uma vez amadurecida a pesquisa (e lá se foram mais de dez anos de investigação), publiquei o livro pela Thomson-Reuters, que se esgotou em pouco mais de um ano. Qual a avaliação da Capes? Advinhem... Literatura de piso! Sem valor científico, L1. 

Deu-se o mesmo com a minha contribuição ao volume de contratos empresariais inserto no Tratado de Direito Empresarial, obra de fôlego coordenada por Modesto Carvalhosa. Literatura de piso! Sem caráter científico! Ao menos pude me regozijar, nessa avaliação, de estar em boa companhia. 

Sinceramente, eu gostaria de poder citar aos leitores outros exemplos. Não pensem que eu cito apenas livros com participação da UFPR por bairrismo. Isso se justifica porque a própria área do Direito da Capes, que resolveu dizer quais livros seriam científicos e quais não o seriam, não tornou pública, até o presente momento, a sua própria avaliação! 

Por isso somente consegui citar apenas exemplos da UFPR, pois tive acesso, pela coordenação do meu programa de pós-graduação, à tabela de avaliação quadrienal da Capes. Tenho o direito de supor que livros como o curso de Direito Civil, de Paulo Lôbo, da UFPE, uma das obras de referência, de elevado caráter científico, e o produto de maturidade haurido de décadas de ensino de um docente, haja sido avaliado como L1. Qual o efeito disso para o PPGD-UFPE? Cito aqui a UFPE porque é a universidade da terra de Gustavo Santos, uma instituição pública, cujo curso de Direito tem 190 anos. 

Ainda sofismando, Gustavo Santos escreveu que o meu artigo confundia “a amplitude de sua divulgação, com impacto científico” e, para justificar a sua premissa, citou o seguinte exemplo: “Um livro vender muito, ter grande público, pouco tem a ver com o que se quer verificar na avaliação de um programa de pós-graduação. Livros como 1808 e 1822 são, sem sobra de dúvidas, grandes sucessos editoriais, mas seriam indicadores adequados para aquilatar o que se está produzindo de pesquisa histórica em programas de pós-graduação daquela área?” 

Evidentemente a amplitude de uma divulgação não se confunde com impacto científico. Mas não se permita, dessa premissa correta, que se compre gato por lebre! Razões insondáveis devem ter conduzido Gustavo Santos a citar os livros 1808 e 1822 como exemplos de sucessos de venda que não são considerados científicos. 

Citei como exemplos de sucessos editoriais que foram tratados pela Capes como não científicos o Tratado de Direito Privado e os Comentários ao Código de Processo Civil! Estaria o coordenador da área do Direito da Capes comparando obras jurídicas dessa envergadura com os livros 1808 e 1822? 

Olhando bem de perto, o raciocínio de Gustavo Santos reverbera uma polêmica que já está vencida nos centros de pesquisa mais sérios: o embate entre o valor científico das pesquisas de propedêutica frente às pesquisas da dogmática jurídica. Há um menoscabo pela dogmática que é lida como mera prática, como se a produção de pós-graduação, em Direito, não pudesse pisar no fórum, no Tribunal de Justiça, no Ministério Público ou nos gabinetes de advocacia, sob pena de ser maculada. 

A ciência, como algo superior, não poderia frequentar qualquer lugar. Seria uma releitura da cultura antiga que advertia o despropósito de se presentear os porcos com pérolas? 

Como no tempo contemporâneo o misticismo foi substituído pela ciência, nada mais justo do que reescrever a sabedoria antiga por intermédio de códigos da burocracia científica. A ciência do Direito não poderia habitar o espaço no qual chafurdam os operadores do Direito. 

O erro que esse sofisma provoca é grave. Não se pode admitir que o dinheiro público sirva predominantemente para pesquisas que não se projetem na realidade social, na vida das pessoas. Por exemplo. É uma escolha perigosa incentivar, com avaliações e recursos públicos, a investigação acerca do sexo dos anjos em detrimento de uma literatura que tenha condições de pautar os debates de elevado nível entre pesquisadores e, ao mesmo tempo, atender os operadores do direito e contribuir para um melhor desenvolvimento da vida em sociedade. 

Juristas do Brasil inteiro estão indignados com o menosprezo que foi conferido a seus livros, não obstante gestados em ambientes de pós-graduação, sob elevados critérios científicos, ainda que preocupados (ou maculados, com talvez queiram alguns) em interagir com a realidade social brasileira. 

As teses de doutorado em Direito não são ciência? Deixam de ser ciência, por um golpe de mágica, quando revestidas pela capa de editora comercial? 

Gustavo Santos diz que usualmente a elaboração teórica de um artigo publicado em um periódico é maior do que o verificado em um capítulo de livro ou, até mesmo, em um livro. 

Isto é completamente aleatório e destituído de razão. Qual o critério científico dessa premissa? Os cientistas sociais procuram ser lidos e ter repercussão social. Se na área do Direito a repercussão social se encaminha predominantemente por intermédio de livros, não é certo que a avaliação dessas obras seja tratada com tanto descaso (9.000 livros por 10 pessoas em 14 dias). 

É dever de cada área da pós-graduação dialogar com as ordens superiores de pesquisa no Brasil para defender as especificidades dos ramos de conhecimento, sob pena de se fomentar um desequilíbrio entre os segmentos de pesquisa. Pelo que se pôde até o presente momento compreender da avaliação dos livros pela Capes, com a incrível conta, explicitada por Gustavo Santos, de 9.000 livros por 10 pessoas em 14 dias, a área jurídica não vai bem nesse diálogo. 

A falta de estratégia de gestores públicos em um jogo por recursos públicos escassos pode ser perigosa. Por vezes, fatal. 

Por fim, o líder da área do Direito na Capes fez uma afirmação muito grave e que atinge a seriedade dos autores e das editoras brasileira ao escrever: “Hoje, no Brasil, a maior parte da publicação de livros monográficos é feita mediante pagamento pelos autores”. 

Qual a base científica dessa afirmação, caro coordenador da área do Direito na Capes? Posso lhe garantir que com o Tratado de Direito Privado, com os Comentários ao Código de Processo Civil, com o Tratado de Direito Empresarial e com o Associações sem fins econômicos, obras aqui citadas, nenhum real foi pago, pelos autores, para que houvesse a publicação. 

Nunca paguei um centavo para publicar os meus livros. Muito pelo contrário. Preciso me preocupar, e sempre me preocupo, para sopesar os pedidos editoriais com a manutenção do tempo para os critérios científicos de elaboração doutrinária que professo. Reconheço o mesmo esforço, em geral, com os meus pares. 

É provável que chegue ao Brasil, em curto ou médio prazo, o modelo alemão, italiano e francês de pagamento para a publicação das teses. Nesses países, os jovens doutores pagam às editoras comerciais para editar seus livros, dada o pequeno potencial de vendas de obras científicas. Apesar de tudo, ainda não chegamos nesse nível. Não estamos tão decadentes quanto a Alemanha, a França e a Itália. 

Gustavo Santos reconhece, em seu texto, que há erros na avaliação que a área do Direito, sob sua coordenação, empreendeu sobre a literatura jurídica na pós-graduação. O professor da Unicap assim escreveu: “Houve algum erro no processo de classificação? É evidente que sim”. 

A essa altura do campeonato já não penso se houve erros. Pergunto se houve acertos mínimos que sejam aptos a justificar um tratamento tão pouco adequado para os pesquisadores que, na área do Direito, se esforçam diariamente para contribuir com o Brasil. Parece que não. 

Mais que isto. Se o coordenador da área de Direito admite tais erros, e se esses erros são tão graves e gritantes como denunciado na metáfora da lebre e do jabuti, nada seria mais certo senão invalidar, por ele mesmo, o ato administrativo composto pela avaliação. A administração pública tem o dever de rever os seus próprios atos diante de equívocos, não é mesmo? 

Gustavo Santos, que, além de professor universitário é também um reconhecido procurador do município do Recife, sabe muito bem disso. Enquanto isso, inúmeras pessoas e dezenas de programas estão sendo prejudicados pelo fato de seus livros terem sido considerados não científicos por uma avaliação que adotou por método (científico?) classificar e qualificar 9.000 livros por 10 pessoas em 14 dias. 

Talvez já seja a hora da alta burocracia capesiana na área do Direito abrir as janelas dos seus gabinetes para ouvir o que os seus pares (não da Capes, mas da pesquisa em direito) têm a dizer. 

Os comentários à coluna de Gustavo Santos já dizem muito. Vox populis. Vox Dei. 

O texto do professor da Unicap foi permeado de tantos sofismas que o espaço de uma coluna acabou pequeno para explorá-lo. De qualquer sorte, lembro aos leitores que as singelas perguntas que eu lancei ao público em lebres e jabuti não foram, nem de longe, substancialmente respondidas pelo chefe da área de Direito na Capes. 

Por fim, Gustavo Santos, dirijo-lhe um pedido: não me queira mal. Mesmo sem lhe conhecer pessoalmente, encaminho sinceros votos de felicidade e sucesso. Precisamos acabar com essa mania brasileira, constantemente verificada nos administradores públicos (e tenho esperança que não seja o seu caso), de entender e qualificar toda e qualquer crítica e debate público sobre os atos administrativos como uma demonstração de desafeição pessoal. Respeito o seu trabalho e sei de sua seriedade pessoal. Mas não posso silenciar ante o que li em seu texto. Seria incoerente e pouco respeitoso consigo e com os leitores. 

Publicado originalmente no Conjur.

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