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Histórias de ficção oferecem uma simulação simplificada do mundo que nos ajuda a entender e lidar com o nosso mundo real complexo. | Cpl. Thomas Bricker
Histórias de ficção oferecem uma simulação simplificada do mundo que nos ajuda a entender e lidar com o nosso mundo real complexo.| Foto: Cpl. Thomas Bricker

Se você procurar no Google “ler para crianças”, encontrará uma infinidade de sites dizendo por que você deveria fazer isso. Um site que aparece quase no topo dos resultados tem o título severo (e, por isso, um pouco incômodo) “Sete motivos pelos quais você deve ler para os seus filhos”. E outro site lista quinze benefícios da leitura para as crianças.

A maioria dos benefícios descritos nesses sites tem a ver com o aconchego e a aproximação que a leitura cria entre os pais e os filhos, as oportunidades para conversa e a compreensão mútua que são abertas pelas histórias, e as habilidades linguísticas e de pré-leitura e atitudes positivas em relação à leitura que as crianças desenvolvem quando adultos leem para elas. Tudo isso são bons motivos.

Mas eu quero focar em um motivo que raramente é citado em artigos sobre por que devemos ler para as nossas crianças. Esse talvez seja o motivo mais importante de todos. Aliás, esse motivo toca no cerne de por que os seres humanos em todo o mundo são atraídos pela ficção e por que essa atração começa a aparecer tão cedo na infância. O motivo é esse: 

Histórias de ficção oferecem uma simulação simplificada do mundo que nos ajuda a entender e lidar com o nosso mundo real complexo. Os aspectos do nosso mundo real que são geralmente mais desafiadores, e mais importantes para nós entendermos, são aspectos sociais.

Saber lidar com o mal e com o bem, reconhecer os desejos e necessidades dos outros, saber se comportar em relação aos outros para manter a sua amizade, e saber como ganhar o respeito da sociedade como um todo são algumas das habilidades mais importantes que devemos desenvolver para termos uma vida contente. As histórias que nós gostamos, e que as nossas crianças gostam, são sobre isso.

Elas não são explicitamente sobre como lidar com o mundo social, como um sermão. Em vez disso, elas são implicitamente sobre isso, então os ouvintes e leitores tem que construir as lições para si mesmos, cada um do seu próprio jeito. Lições construídas são muito mais poderosas do que aquelas que são transmitidas explicitamente. 

Atração a histórias de ficção são algo básico na natureza humana. Historicamente, a contação de histórias precede o desenvolvimento da escrita. Todas as culturas humanas, exceto aquelas destruídas por conquistadores e colonizadores, têm histórias de ficção. As histórias são orientações para viver. Antes de existir a escrita, as histórias eram transmitidas oralmente de geração para geração. As crianças que escutavam as histórias aprendiam sobre as crenças e valores da sua cultura.

Podemos dizer que uma cultura sem histórias de ficção é uma cultura sem direção moral. As histórias descrevem os conflitos básicos e dilemas da vida humana e nos estimula a pensar sobre modos de resolvê-los. Hoje, nas culturas letradas, as histórias são escritas e há muito mais delas do que havia em culturas pré-letradas, e as reproduzimos com maior frequência por meio da leitura do que por recitação oral pela memória. 

Histórias são simulações dos desafios e dilemas da vida real 

Robert Lewis Stevenson escreveu há muito tempo sobre arte: “A vida é monstruosa, infinita, ilógica, abrupta e pungente; uma obra de arte, em comparação, é organizada, finita, autônoma, racional, fluida e emasculada. A vida impõe por meio de energia bruta, como um trovão inarticulado; a arte prende a atenção no meio de estímulos de experiência muito mais altos, como uma atmosfera artificial criada por um músico discreto”.

O seu ponto principal é que apreciamos arte – incluindo histórias de ficção – porque elas focam a nossa atenção em ideias e experiências abstraídas da confusão da vida real, então podemos experimentá-las e pensar sobre elas com mais clareza. 

Os psicólogos canadenses Kieth Oatley e Raymond Mar ampliaram as ideias de Stevenson – de modo menos poético e mais científico – na sua teoria da simulação de ficção. Ficção, segundo eles escrevem, não é a vida, mas “é um modelo, uma simulação útil, de nós mesmos no mundo social”. E, eles escrevem em outro trabalho, “Assim como outras simulações (por exemplo, modelos computacionais), histórias de ficção são informativas porque permitem uma previsão e explicação enquanto revelam os processos subjacentes do que está sendo modelado (nesse caso, relações sociais)”.

Eles sugerem que nós somos pré-adaptados, por evolução biológica, a prestar atenção a histórias, principalmente histórias sobre relações sociais, porque elas oferecem um espaço seguro e eficiente para aprendermos e pensarmos sobre essas relações. 

Eu explicaria assim: histórias de ficção são uma forma de brincadeira, e, assim como em todas as brincadeiras, o nosso envolvimento com as histórias são uma forma de adquirir habilidades e ideias que são valiosas para negociações no mundo real.

Quando entramos em uma história, nós entramos em um mundo em que, justamente porque é de faz de conta e não tem consequências imediatas no mundo real, e porque os eventos são simplificados e os mais importantes são destacados, podemos perceber os desafios e dificuldades com mais clareza, pensar sobre eles de modo mais racional, e desenvolver mais reflexões sobre eles, do que faríamos em uma experiência no mundo real.

Nós podemos lidar com eventos como os Três Porquinhos sendo mandados para longe da casa da sua mãe e tentando evitar serem devorados pelo lobo; ou o equívoco de Chicken Little de que o céu está caindo; ou as dificuldades de Harry Potter nas mãos de Lord Voldemort; ou dilemas morais de Huck Finn quando ele flutua pelo rio com o escravo fugido, Jim; ou a paixão e irracionalidade do primeiro amor; ou a traição de alguém que pensávamos que nos amava. 

As histórias que mais nos atraem são sobre interações sociais. Isso aparentemente é real tanto para crianças pequenas quanto para adultos. Em uma série recente de experimentos, crianças a partir de quatro anos de idade mostraram uma preferência clara por histórias sobre pessoas ou animais que se parecem com pessoas do que histórias sobre animais realistas ou objetos.

Elas também preferiram histórias nas quais os protagonistas têm certos desejos ou objetivos pelos quais eles lutam, ou problemas que precisam superar; e elas preferiram histórias sobre duas ou mais pessoas interagindo do que histórias sobre atividades individuais de uma única pessoa.

Nós estamos sedentos para aprender sobre os diversos modos nocivos e prestativos com que as pessoas interagem umas com as outras, talvez porque é isso que devemos aprender para termos uma vida contente. 

As histórias de ficção podem ter um efeito ainda maior sobre nós do que documentários que contém a mesma informação. Em um experimento, por exemplo, alguns estudantes universitários leram “A Dama do Cachorrinho”, conto de Anton Chekhov sobre um caso de amor adúltero, e outros leram um texto de comparação que continha a mesma informação, mas era escrito de forma documentativa (por exemplo, o adultério foi apresentado como registros de tribunais).

O resultado foi que aqueles que leram o conto sentiram mais emoções e maiores mudanças de atitudes do que aqueles que leram o relato factual. 

Histórias de ficção incentivam o desenvolvimento da empatia 

Empatia é considerada por muitos psicólogos como a base biológica da moralidade. Ter empatia é enxergar o mundo, de certo modo, pelo ponto de vista de outra pessoa e sentir, pelo menos parcialmente, o que aquela pessoa está sentindo.

Perceber e em alguns casos sentir a tristeza ou o medo de outra pessoa é o primeiro passo para ajudar aquela pessoa, e sentir a alegria do outro é uma recompensa por ajudar a trazer essa alegria. Até mesmo bebês demonstram uma forma primitiva de empatia, por exemplo, quando choram em resposta ao choro de outro bebê.

Conforme as crianças se desenvolvem, a sua capacidade de empatia pode crescer ou atrofiar dependendo das condições, e podem se desenvolver de diversos modos, também dependendo das condições. Um conjunto de condições que podem desempenhar papel crucial no crescimento da empatia consiste de histórias que as crianças escutam ou, mais tarde, leem. 

Fritz Breithaupt, especialista em literatura alemã, propôs que a ficção é um veículo poderoso para o desenvolvimento da empatia porque os ouvintes (ou leitores) se identificam automaticamente com um ou mais personagens da história. Ao se identificar, o ouvinte sente indiretamente os pesares, alegrias, triunfos, derrotas e conflitos éticos do protagonista – e talvez também os do antagonista.

Então, a imersão na história pode ser um exercício contínuo de empatia. Nós não apenas descobrimos o que Harry Potter ou cada um dos Porquinhos faz, mas também sentimos as emoções e refletimos sobre essas emoções. 

Como ouvir e ler são atividades mentalmente ativas, mas fisicamente passivas, elas incentivam um pensamento e reflexão que pode não acontecer muito na vida real. Na vida real, o impulso de agir, ou o estresse causado, ou as defesas do ego que surgem podem impedir a reflexão.

Mas na ficção, não podemos alterar o que acontece, tudo o que podemos fazer é sentir, refletir e pensar. No processo, podemos aprender a nos importar com pessoas que normalmente não nos importaríamos muito, incluindo pessoas que são muito diferentes de nós. 

Diversas pesquisas, tanto com crianças quanto com adultos, sustentam o ponto de vista de que as histórias incentivam o desenvolvimento da empatia. Uma série de estudos mostra que as pessoas que leem muita ficção – principalmente ficção do tipo que lida com relacionamentos interpessoais – têm pontuações mais altas em várias mensurações de empatia do que pessoas similares cujas leituras são mais voltadas para não ficção.

Em um experimento conduzido em uma região de baixa renda em Toronto, a capacidade de crianças de quatro anos adotarem a perspectiva de outra pessoa e refletir a partir dessa perspectiva aumentou significativamente como resultado de uma intervenção em que elas ouviram muitas histórias lidas a elas pelos seus pais, professores e assistentes de pesquisa. 

Em outro experimento, conduzido nos Estados Unidos na década de 1970, as atitudes de crianças brancas em relação a crianças negras melhoraram significativamente como resultado de ouvir uma história em que o protagonista era uma criança negra.

E em mais um experimento, conduzido nos Estados Unidos os anos 1960, estudantes brancos da segunda série que escutaram histórias lidas por um leitor multirracial tiveram atitudes mais positivas em relação a afroamericanos, incluindo maior tendência de se identificar com eles e incluí-los nos seus grupos, do que aqueles que ouviram histórias de um leitor tradicional em que todas as crianças eram brancas. 

Então, quando você lê histórias para os seus filhos, você pode estar oferecendo oportunidades incríveis para crescimento moral. E conforme escutam as histórias, as crianças imaginam modos de se comportarem quando enfrentarem problemas reais no mundo real, e elas aprendem a ver as coisas a partir do ponto de vista de outras pessoas. As histórias de ficção podem ajudar as crianças a superar o narcisismo, expandir o seu mundo social e aprender a se identificar com uma gama maior de pessoas. 

*Peter Gay é professor pesquisador na Boston College e autor dos livros “Free to Learrn” (“Livre para Aprender”, em tradução livre) e “Psicologia”. Conduziu e publicou pesquisas em psicologia comparada, evolutiva, educacional e do desenvolvimento. Tem graduação pela Columbia University e doutorado em ciências biológicas pela Rockefeller University. A sua pesquisa e produção atual foca principalmente nos meios de aprendizagem natural das crianças e na importância da diversão para a vida. A sua própria diversão inclui, não apenas a sua pesquisa e produção, mas também ciclismo de longa distância, caiaque, ski e jardinagem.

Publicado originalmente na FEE. Tradução: Andressa Muniz

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