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 | Roberto Custódio/ Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Roberto Custódio/ Arquivo Gazeta do Povo

A antecipação da alfabetização dos 8 para os 7 anos, ou seja, do 3º para o 2º ano do ensino fundamental, é um dos pontos polêmicos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), divulgada pelo Ministério da Educação (MEC) na semana passada, e que espera o parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) para ser aplicada. Não há unanimidade entre pesquisadores, neurocientistas e educadores. Muitos elogiam a medida enquanto outros a consideram precoce e descolada do desenvolvimento infantil e das realidades da sala de aula brasileira.

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O que diz a neurociência

Confira a íntegra da Base Nacional Comum Curricular

A primeira fonte de divergência é o que se exige ao final do 2º ano do ensino fundamental. A Base prevê que as crianças sejam capazes de escrever bilhetes e cartas, produzir pequenos relatos pessoais, grafar as palavras de acordo com o som dos fonemas, com letra cursiva e de imprensa, usar a pontuação básica, entre outras metas. Como no Brasil há jovens que chegam ao 5º, 6º ou nos anos seguintes do ensino fundamental sem fazer essas operações, esse conteúdo seria exagerado.

Para muitos pesquisadores, porém, o fato de que as falhas na aprendizagem existam não justifica ter baixas expectativas. “Não podemos pensar, ‘afinal, estamos no Brasil’ e se contentar com menos; se seguimos essa linha, se eterniza a pobreza e dizemos nas entrelinhas que há pessoas vocacionadas a ter sucesso na escola e outras que são vulneráveis”, afirma Claudia Costin, ex-diretora de Educação do Banco Mundial e atualmente professora da FGV e de Harvard. “Pelo contrário, o que se deve fazer é ter ações afirmativas para aquelas pessoas em situação vulnerável”, defende.

É claro que se uma escola obrigar uma criança aos 5, 6 , 7 anos a fazer algo de forma agressiva, em qualquer área do conhecimento, ela vai ficar traumatizada, mas não é essa a proposta. Se se coloca a criança em contato com a escrita de uma forma prazerosa (...) as crianças desenvolvem naturalmente essa habilidade”.

Sérgio LeiteProfessor da Faculdade de Educação na Unicamp

Outros educadores lembram ainda que, se é bem feita, a alfabetização não traz traumas ou desperta ansiedade nas crianças. “É claro que se uma escola obrigar uma criança aos 5, 6 , 7 anos a fazer algo de forma agressiva, em qualquer área do conhecimento, ela vai ficar traumatizada, mas não é essa a proposta”, explica Sérgio Leite, professor da Faculdade de Educação na Unicamp, há 20 anos pesquisador na área de alfabetização. “Mas se se coloca a criança em contato com a escrita de uma forma prazerosa, desde a educação infantil, com leitura, brinquedos, aproximação às letras, sem obrigatoriedade, as crianças desenvolvem naturalmente essa habilidade”, continua.

Outro grupo de pesquisadores, por outro lado, recorda que é preciso ver como serão avaliadas as crianças e alertam para a possibilidade de discriminação e exclusão das que não atinjam o conhecimento dos conteúdos estipulados. “A grande questão que se coloca é a seguinte: antecipando a alfabetização, o que se fará com as crianças que não conseguirem dominar os códigos da cultura escrita nesse período encurtado? Serão já reprovadas? Serão tratadas como fracassadas na escola? É preciso pensar nisso”, avalia Carlota Boto, professora do departamento de Filosofia da Educação da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista por e-mail.

Monica Ribeiro da Silva, professora da Faculdade de Educação da UFPR, concorda com Carlota Boto e lembra que a imensa bibliografia sobre o tema do desenvolvimento humano já superou a visão que “encaixa” as crianças em um comportamento “esperado”. “Se pegarmos, por exemplo, no espaço restrito de uma sala de aula, todas as crianças da faixa etária incluída no critério estabelecido pela BNCC, veremos que elas não responderão de maneira uniforme ao objetivo esperado, e isso poderá ser interpretado como uma dificuldade pessoal. Essa criança poderá não corresponder ao esperado, sendo mal avaliada por isso. Porém, o problema não está nela, mas sim, na formulação presente na BNCC. O documento traz uma visão restrita de currículo”, analisa.

“Se colocamos uma xícara com a alça para a direita e para a esquerda, os neurônios da visão vão reconhecer que é uma xícara, porque é irrelevante se a alça está voltada para a direita ou para a esquerda. Na escrita, ‘dela’ e ‘bela’ são palavras diferentes e é preciso ensinar os neurônios a ‘assimetrizar’, o que deve ser trabalhado sistematicamente”

Leonor Scliar-CabralPesquisadora e doutora em Educação

Neurociência

Para uma terceira linha de pesquisadores, a idade não importa tanto na discussão e sim os métodos utilizados para conseguir os mesmos objetivos. “Não existe idade certa para alfabetizar, há momentos diferentes de desenvolvimento cognitivo, não iguais para todos. Porém, como a escola não pode privilegiar cada grupo de acordo com o seu desenvolvimento, tem de estabelecer uma idade”, considera a pesquisadora e doutora em Linguística, Leonor Scliar-Cabral, da UFSC, que traduziu o livro Os neurônios da leitura, do neurocientista francês Stanilas Dehaene.

Para ela, há um problema na interpretação do construtivismo que considera que a criança vai descobrir sozinha os princípios do sistema de escrita alfabético. Os recentes estudos da neurociência mostram como é complexo aprender a ler e a escrever para o cérebro humano, por serem os sistemas de escrita uma invenção tardia da humanidade e que, por isso, a criança precisa de um mediador bem preparado, de sistematização na aprendizagem e de material pedagógico adequado.

Os neurônios da visão, por exemplo, necessitam ser ensinados a reconhecer a diferença entre um ‘d’ e um ‘b’. “Se colocamos uma xícara com a alça para a direita, ou para a esquerda, os neurônios da visão vão reconhecer que é uma xícara, porque é irrelevante se a alça está voltada para a direita ou para a esquerda. Na escrita, ‘dela’ e ‘bela’ são palavras diferentes e é preciso ensinar os neurônios a ‘assimetrizar’ os traços que diferenciam as letras entre si, o que deve ser trabalhado sistematicamente”, exemplifica.

Como essa, a professora recorda que há outras descobertas da neurociência que precisam ser incorporadas na alfabetização. “É preciso mudar as bases teóricas que sustentam a alfabetização no Brasil. Os resultados preocupantes da Ana [Avaliação Nacional da Alfabetização] de 2014 mostram isso”, reitera.

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