| Foto: Robson Vilalba/ Thapcom.

Em O Cânone Ocidental, livro de 1994 que trazia um panorama dos gigantes da literatura do Ocidente, o crítico literário norte-americano Harold Bloom revisitou Shakespeare, Dante, Borges e Fernando Pessoa para explicar o que faz a obra de um autor canônica, para além de modismos e de análises focadas na pauta política do momento. 

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Na obra, Bloom promovia uma defesa radical do valor estético da texto literário armando trincheiras contra o avanço das análises literárias dominantes à época: marxistas, historicistas, teológicas, comportamentais, de gênero e de raça. Tal crítica, argumentava, se construía sob os pilares do que ele chamava de “Escola do Ressentimento”, uma leitura de mundo que agia à direita – com o objetivo de preservar o Cânone “por seus supostos e (inexistentes) valores morais” – e, mais intensamente, à esquerda, “para derrubar o Cânone e promover seus supostos (e inexistentes) programas de transformação social”. 

A dupla patrulha, argumentava, descolava a crítica do objeto analisado, reduzindo o estético à ideologia pura e simples. Uma politização rasteira, dessa que vemos hoje em dia nas mídias sociais. 

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Na ponta mais numerosa e representativa, a da crítica multicultural, Bloom enxergava uma tentativa de submeter A Ilíada, Macbeth e A Divina Comédia a uma espécie de questionário de boas práticas, formatada, pela visão contemporânea e culturalmente hegemônica de direitos humanos, igualdade de gêneros, preocupação social, ecológica e de respeito aos direitos dos animais. 

Dito de outra maneira, seria como levar Aquiles, Lady Macbeth e Dante ao Estúdio I, imaginando que eles iriam se comportar muito bem em uma tarde agradável ao lado de figuras como Maria Beltrão e Gregório Duvivier. 

Por outro lado, afirmava Bloom, certa crítica “boba” insistia na tese que o Cânone encarnaria as “virtudes mortalmente morais que compõem nossa suposta gama de valores normativos e princípios democráticos”. A grande literatura como busca pela excelência humana, uma tese que nos dias de hoje encontra eco tanto em grupos religiosos como em estratégias empresariais de motivação, seria apenas uma “mentira palpável”, para o velho ensaísta. 

Previsão 

Além de retratar a crítica da Escola do Ressentimento e suas incongruências, Bloom ia além e fazia previsões pouco otimistas para a universidade americana. Para ele, os novos crivos multiculturais da crítica e as mudanças nos hábitos de leitura levariam os departamentos de letras a uma nova estruturação. “Não creio que os estudos literários, como tais, tenham futuro, mas isso não significa que a crítica literária vá morrer. Como um ramo da literatura, a crítica sobreviverá, mas provavelmente não em nossas instituições de ensino. 

O ensino da literatura ocidental também continuará, mas na escala muito mais modesta de nossos atuais Departamentos de Clássicos. Aquilo que hoje se chama ‘Departamento de Inglês’ será batizado de departamento de ‘Estudos Culturais’, onde histórias em quadrinhos do Batman, parques temáticos mórmons, televisão, cinema e rock substituirão Chaucer, Shakespeare, Milton, Wordsworth e Wallace Stevens. Grandes universidades, outrora elitistas, ainda oferecerão alguns cursos sobre Shakespeare, Milton e seus pares, mas serão dados por departamentos de três ou quatro estudiosos, equivalentes aos departamentos de grego e latim clássicos”, dizia Bloom, em seu Cânone. 

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A previsão do crítico para a universidade americana – parte pessimista, parte jocosa – se fez realidade no Brasil. A Unicamp incluiu o disco Sobrevivendo no Inferno, do grupo Racionais MCs, entre as obras obrigatórias para o vestibular da instituição. As letras do disco serão avaliadas na categoria poesia. Na prática, a Unicamp avisa ao jovem vestibulando, na casa dos seus 16 e 17 anos que os Racionais MCs estão ombro a ombro com Machado de Assis e Padre Vieira. 

[Aqui um parênteses necessário. Bloom é um monumento da crítica e da inteligência e os pontos que ele expõe em O Cânone Ocidental, A Angústia da Influência, e Onde Está a Sabedoria? são claros e precisos. Mas o debate, afinal, é a essência da Academia, ou do que deveria ser a Academia.] 

Questões como “a música pop pode ser vista como poesia?” ou “um rap e uma tragédia grega podem ser colocados lado a lado como arte?” soariam como blasfêmias para Bloom, mas são pertinentes para o debate. E há bons pontos a serem explorados. O crítico Adam Bradley, professor da Universidade do Colorado e autor de Poetry of Pop e Book of Rhymes: The Poetics of Hip Hop, ambos sem tradução para o português, tem uma tese interessante. Para ele, letras de canções pop não são poesia por si só, mas as canções são. Bradley argumenta que a arte da música pop está na justaposição da letra à melodia e no resultado sonoro obtido. 

Howard Rambsy, professor de literatura da Universidade de Southern Illinois, vai além e, em seus cursos, utiliza letras de rappers como Jay-Z e Tupac para ensinar conceitos como alusão e aliteração. Bradley e Rambsy são dois representantes de uma certa “escola popista” de literatura, que vibrou com o Prêmio Nobel de Bob Dylan, e trabalha para diminuir a distância entre a literatura canônica e o pop. 

Não é preciso ir longe para rebater o argumento, inclusive, no lado pop da discussão. Para Jarvis Cocker, cantor e compositor britânico e líder da banda Pulp, sua própria produção e a de outros compositores não é poesia. “São apenas palavras para uma canção... Uma obrigação contratual, um mal necessário, uma reflexão tardia”, diz Cocker, um dos letristas mais aplaudidos pela crítica musical, com certo tom de ironia. 

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Na academia, a resposta mais tradicional à escola popista costuma usar o argumento de Simon Armitage, poeta e professor da Universidade de Oxford: “Tire a música e o que sobra é uma peça estranha de escrita ‘criativa’, cheia de sílabas irregulares, rimas extravagantes, clichês exaustivos e metáforas misturadas”. 

Outro problema 

A discussão sobre o valor estético da obra dos Racionais MCs não é, no entanto, o grande problema colocado. O tema obviamente valeria bons seminários no Departamento de Letras. Valeria debates e discussões teóricas. O ponto é que o embate precisa ser feito por quem, em tese, já leu os clássicos e pode arriscar colocá-los ombro a ombro com Diário de um Detento. 

Não parece ser o caso de vestibulandos de 17 anos. Não parece sequer ser o caso de estudantes de Letras da maioria das universidades brasileiras. Nesse sentido, a escolha é errada e quase preguiçosa e a própria descrição da Unicamp deixa isso claro: “A nova lista de obras inclui romance, poesia, peça teatral, conto, diário e letras de música, entre outros gêneros, a fim de levar o vestibulando a ampliar o seu campo de estudos, sem sobrecarregá-lo no volume de leituras”, diz a nota da comissão de vestibular da universidade. 

Na prática, a Unicamp está dizendo que ler os clássicos dá trabalho e é um pouco enfadonho. Tem seu sentido. A comissão de vestibular sabe que o jovem de 17 anos está muito mais familiarizado a um disco do rap do que a qualquer clássico da literatura brasileira e universal e trata de fazer uma espécie de pequena concessão, para diminuir a aridez no caminho do seu futuro calouro. 

A escolha da Unicamp encontra eco no diagnóstico da educação norte-americana traçado pelo historiador Donald Kagan, professor, assim como Bloom, da Universidade de Yale. Para ele, os estudantes americanos vivem “um vazio cultural, uma ignorância do passado, um senso de desenraizamento e falta de objetivo que os fazem acreditar que o mundo inteiro nasceu ontem”. Kagan, um dos principais estudiosos da Grécia Antiga e autor de uma série de livros sobre a Guerra do Peloponeso, afirma que mesmo as universidades de elite americanas estão fazendo pouco ou nada para corrigir o problema, cedendo aos caprichos dos alunos e fazendo com que eles “aprendam mais sobre assuntos considerados interessantes em seus próprios círculos”. 

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Ao incluir os Racionais em seu vestibular para “facilitar” a vida do estudante, a Unicamp está dando razão aos argumento de Bloom e de Kagan, trazendo um disco de rap para a universidade não por seus supostos méritos poéticos e literários mas pelo seu mais puro apelo pop e sua proximidade com a realidade dos estudantes. Nessa comparação, portanto, a educação clássica já perdeu. Se com algum esforço retórico é possível aproximar Mano Brown de Shakespeare em suas respectivas produções literárias, o poeta inglês nunca vai conseguir fazer rap como o líder do Racionais.