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Pesquisadores brasileiros conseguiram descobrir mecanismo que permite que animais enfrentem situações extremas e, mais tarde, voltem à “vida normal”. Imagem ilustrativa.
Pesquisadores brasileiros conseguiram descobrir mecanismo que permite que animais enfrentem situações extremas e, mais tarde, voltem à “vida normal”. Imagem ilustrativa.| Foto: Unsp

O auge da crise do coronavírus acabou por ofuscar conquistas científicas significativas para o país. Entre elas, a confirmação de um trabalho pioneiro, de pelo menos 30 anos, de pesquisadores biólogos brasileiros. Eles se debruçaram sobre o que batizaram como Teoria da Preparação para o Estresse Oxidativo (Preparation for Oxidative Stress, na sigla em inglês).

Em palavras muitos simples, para quem não é da área, os pesquisadores conseguiram entender como determinados animais conseguem enfrentar situações extremas, a exemplo de temperaturas elevadas ou muito baixas e falta de alimento, e, mais tarde, "voltar à vida normal". À luz da bioquímica, encontraram a resposta: existe um mecanismo natural que prepara esses animais para superar essas circunstâncias.

Os pesquisadores estimam que o mecanismo POS tenha surgido há pelo menos 700 milhões de anos, já que é possível observar sua presença nos Cnidários. Parte considerável do estudo ocorreu nos laboratórios da Universidade de Brasília (UnB); também no departamento de Botânica e Zoologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), departamento de Fisiologia da Universidade de São Paulo (USP) e no departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade Federal de São Paulo (USP).

Em 14 de março deste ano, uma das pesquisas do grupo, que analisa anuros da Caatinga, foi publicada pela revista Science of the Total Environment, semana na qual foram editados decretos de isolamento social em decorrência do novo coronavírus. São responsáveis pelo trabalho: Daniel Moreira, Willianilson Silva, Felipe Kuzniewski, Carlos Navas, José de Carvalho, Marcelo Hermes-Lima e Juan Carvajalino-Fernández, colombiano.

"É uma grande frustração, depois de esperar 30 anos, que tenha ocorrido assim [no auge da crise do coronavírus]. Os pesquisadores querem, sim, ter reconhecimento, faz parte da natureza humana. Ninguém deu atenção nenhuma a isso, a não ser alguns amigos próximos", lamenta Marcelo Hermes-Lima, professor na Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Biologia.

Para Daniel Moreira, doutor pelo Departamento de Biologia Celular da UnB e atualmente biólogo na instituição de ensino, coautor da teoria, "é uma satisfação muito grande ver o trabalho publicado na revista Science of the Total Environment, periódico de renome internacional e alto fator de impacto". "Mais importante que a qualidade da revista, é ter aceito pela comunidade científica o estudo que fornece evidências que o Preparo para o Estresse Oxidativo, de fato, ocorre na natureza", afirma.

"Quando os animais são desafiados por condições onde há pouco oxigênio, as células dos animais produzem um excesso de radicais livres por um curto período de tempo. Tal aumento nos níveis de radicais sinaliza à célula que é necessário produzir mais antioxidantes, resultando no preparo para o estresse oxidativo", explica, de forma simplificada.

Esta capacidade, segundo Moreira, contrasta com a "extrema sensibilidade de nós, humanos, a condições análogas, por exemplo, eventos de isquemia e reperfusão". "Apesar de ser uma teoria fundamentalmente de pesquisa básica, o esclarecimento dos mecanismos moleculares do POS pode nos ajudar a entender como a própria natureza encontrou soluções para este problema", afirma.

Ainda para o pesquisador, analisar como o metabolismo conhecido como "redox" opera em condições naturais extremas poderá trazer grandes resultados e colaborar no entendimento de aspectos da saúde humana. "Além dos eventos de isquemia e reperfusão, muitas outras patologias humanas, como, por exemplo, doenças neurodegenerativas, câncer, e infecções, estão relacionadas a alterações do chamado “metabolismo redox” (a relação entre antioxidantes e espécies reativas)", explica.

Uma das maiores dificuldades de se chancelar resultados, nesse sentido, é a essencialidade de se observar o fenômeno em ambientes naturais. Em outra palavras, observar o POS na natureza. Até então, os cientistas haviam submetido os animais a ambientes artificiais, os induzindo a diferentes estresses, como congelamento, hipóxia (pouco oxigênio), exposição aérea (para animais aquáticos), desidratação severa e dormência. Para o estudo recém publicado, a observação, no entanto, se deu na natureza.

"De cada 10 espécies estudadas, digamos, mais ou menos sete fazem o POS. As que não descobrimos que fazem, não significa, necessariamente, que não façam", diz Hermes-Lima. "Na ciência, a ausência de evidência não é uma evidência por si só".

Há de se ponderar, além disso, que os resultados dependem do tecido que se está estudando. Por exemplo, pode ser que, enquanto um pesquisador analise o coração de um animal, o fenômeno se manifeste no fígado. Resultados também são relativos ao tempo em que o POS leva para se manifestar nos animais.

Revistas científicas e fator de impacto

Hermes-Lima afirma que o grupo enviou o estudo sobre anuros e outro, que analisa mexilhões, para revistas canadenses e norte-americanas, as quais tratam diretamente de Biologia e Medicina. Mas as pesquisas acabaram não sendo aceitas. "Eles [editores] queriam todas as confirmações possíveis que se possa imaginar, como se estivéssemos à procura do prêmio Nobel de Biologia. Uma coisa inacreditável", lamenta. Segundo ele, os pesquisadores fizeram revisões e devem enviar a diferentes revistas.

Questionado pelo motivo de não terem tentado a publicação em revista científica brasileira, o professor argumenta que não seria viável pelo fator de "baixo impacto". "Se eu publicar em revista que tem pouco ponto, estou enterrando meu grupo de pesquisa, em termos de financiamento", afirma. "Na ciência, a 'marca' conta muito, infelizmente. É uma burocracia científica".

Após a iniciativa dos brasileiros, sabe-se que, hoje, da Caatinga ao Tibete, ao menos outros 30 países estudam ou já pesquisaram o tema. Há uma lista de cerca de 100 espécies que cientistas descobriram realizar o POS.

"Não somos o grupo que mais colocou espécies na lista. E meu objetivo nunca foi esse, nunca fui muito desse negócio de publicar em quantidade, sou meio fora desse mainstream. Meu negócio é descobrir o caminho", afirma o professor da UnB. "O pessoal se inspirou muito em nós. Temos artigos com mais de 500 citações".

Quanto à falta de repercussão, e ao passo em que as atenções se voltam à maior crise sanitária dos últimos 100 anos, somada de uma crise política, Marcelo Hermes lamenta, mas considera: "A gente comemora depois".

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