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Humano Fon Switta veio de Moçambique para o Brasil em 1976 | Jocelaine Josmeri dos Santos
Humano Fon Switta veio de Moçambique para o Brasil em 1976| Foto: Jocelaine Josmeri dos Santos

Impressões

De tudo e mais um pouco

Da fantasia de gala ao planeta Terra ainda sem cor, tudo se acha nos corredores de labirinto que fazem os armarinhos. Há solados de borracha, cabeças de boneca, massa de modelar. Caixas e caixinhas, lantejoulas, fitas e galões. Para quem quiser se aventurar nas telas clássicas, impressionistas, cubistas ou pós-modernistas, basta escolher as tintas, pois há de todos os tipos, texturas e, claro, cores.

Quem perder o botão branco da camisa de seda ou do macacão do bebê, basta correr ao armarinho. Há botões em forma de flor, bichinhos, dados de apostas e corações apaixonados. E também botões que parecem simplesmente botões. Há agulhas de tricô, crochê, bordado e costura, tesoura, cola, papel machê.

Mas que não se pense que se acha facilmente o que se quer. Sim, há armarinhos informatizados, com site e compra virtual, mas todos são labirintos que precisam de guia. Não tente se aventurar sozinho, pois acabará vagando perdido. É melhor chamar uma das vendedoras. Na verdade, em algumas lojas até há vendedores, pois eles também podem entender de artesanato, costura e afins, mas são raros. Elas dominam soberanas no reino das vendas dos aviamentos.

As mais tradicionais, senhoras de óculos grossos, já sabem exatamente onde está a caixa de dedais dourados ou a das agulhas de bordar. São certeiras, rápidas e ágeis. Não perdem tempo. Ouvem o pedido dos clientes e voam atrás do procurado. E sem mapas ou placas de indicação, simplesmente pegam aquilo que procuram. Porque nos armarinhos as coisas nunca estão em prateleiras demarcadas, etiquetadas. Há sempre um pouco de caos. É a vida.

Em alguns armarinhos os produtos se colocam em montes disformes e algo lascivos que desafiam a lógica. Por que será que a cola branca está ao lado da tesoura de costura ou por que os zíperes de calça jeans se escondem numa gaveta enquanto seus primos, zíperes de metro, estão expostos em rolo ao lado dos enchimentos de sutiã? Nem toda filosofia do mundo poderia responder. E, alguém me esclareça, por que as mexas de cabelo falso estão embaixo do papel carbono azul?

Mas elas, as vendedoras, não se abalam. Enfiam a mão entre caixas de papelão sem nome e lá do fundo, surpresa, retiram um carretel de linha PS-129, também conhecida como azul celeste. O cliente não pode deixar de sorrir diante daquela vitória improvável.

Já as mocinhas, coitadas, essas penam para achar os pedidos. Ao ouvir a lista das bordadeiras e costureiras, suspiram prevendo o cansaço da busca. As mais espertas simplesmente perguntam às senhoras de óculos onde achar tal e tal coisa. "Dona Lurdes, cadê o papel mata borrão?".

Em todo armarinho também se encontram artigos exóticos que questionam a imaginação dos clientes. Apenas os já iniciados nas sagradas tradições do artesanato os reconhecem de pronto. Para os outros são objetos estranhos sem manual de instrução. O que dizer do pedaço de madeira plana com quatro pinos cilíndricos que lembram vagamente um pente ancestral? "É um tear", esclarece prestativa uma senhorinha sorridente ao me ver interrogando com olhar de espanto aquele objeto surreal. Não tenho ideia de como aquilo pode tecer alguma coisa, mas acredito nela.

Mesmo para quem não costura, nem borda ou tece, essas lojas são prestativas. É lá que mães encontram para os filhos aqueles apetrechos indispensáveis para o sucesso escolar. Onde mais encontrar por preços módicos as bolas de isopor que se transformam, à custa de muita tinta guache, em planetas, luas e estrelas, formando um universo borrado a dedo? Ou o barbante em metros que se enche de bandeirinhas nas festas juninas? E aquelas miçangas coloridas, que postas em uma espiral de arame se transformam na cadeia de DNA? Tudo isso se encontra nos armarinhos da vida.

Jocelaine Josmeri dos Santos

Quem nuca perdeu o botão de uma camisa ou estrebuchou um zíper de calça? Quando isso acontece, lá fica a roupa abandonada, escondida no fundo do armário, esperando a hora da reparação. E isso é bem simples de ser feito: um botão ou um zíper novo, agulha e linha. Os mais básicos dos produtos de um armarinho.

Confira algumas fotos dos armarinhos de Curitiba

O nome já indica uma certa afetividade. É no diminutivo, tal qual se chamam os amigos íntimos e namorados. É um "pequeno armário", onde se guardam as coisas que não podem classificar, mas que sempre são necessários. Exatamente aquelas coisas que só se buscam quando se perdem; que só se sente a falta quando não se tem. Como um botão, um zíper, agulha e linha.

Em Curitiba quem perder um botão de camisa pode achar outro idêntico ao perdido em um giro pelas lojinhas de armarinhos das ruas do Centro. Além de devolver a vida à roupa desfigurada, poderá conhecer mais um pouco sobre esses pequenos microcosmos feitos de aviamentos.

Território

Os armarinhos estão espalhados pela cidade. Bem espalhados. Cobrem quase todos os bairros. Mas no Centro, especialmente colocados em volta da Praça Generoso Marques ou nas ruas entre as praças Osório e Rui Barbosa, fazem maior volume. Há para todos os gostos. Uns mais modernos, iluminados, com corredores espaçosos em que os clientes podem até compram via internet; outros mais reservados, um pouco escuros, redutos da tradição caótica dos armarinhos das décadas passadas.

Um deles está plantado a poucos metros da Boca Maldita. Basta atravessar a Praça Osório e seguir pela Rua Voluntários da Pátria para se achar a loja. Mas é preciso prestar atenção para não passar direto por ela. Não há letreiros pomposos, nem vitrines. É a loja de Victor e Bela Hertz.

Victor conta a história da loja com poucas palavras, enquanto continua a cuidar do caixa. Os clientes são poucos no horário do almoço, mas se multiplicam às dezenas em certos dias, tornando impossível caminhar entre os corredores estreitos. Para facilitar o atendimento e evitar mal entendidos a loja só atende por senha. Cada cliente ao chegar retira um número rabiscado com caneta num pedaço de papel cartão e espera ser chamado por alguma das vendedoras que se espremem nos balcões e corredores. Nem o próprio dono, que cuida do negócio há 33 anos, sabe o número de mercadorias que tem. "Ah, deve ter uns dez mil itens", diz, meio por acaso.

A clientela básica são costureiras, alfaiates, tricoteiras, todos que vivem das agulhas e linhas. Além das miudezas comuns aos demais armarinhos, na loja de Victor há máquinas que facilitam o trabalho, fazendo coisas que antes só podiam ser feitas à mão, como encapar botões com tecido colorido.

A Rua Emiliano Perneta é outro reduto das artes artesanais. Outro casal e sua loja -Humano e Len Hao Fon Switta tocam o negócio. Vindos de Moçambique, ainda falam um português carregado, apesar dos 36 anos de Brasil. "A gente não tinha conhecimento sobre armarinhos. Em Moçambique não tem muitos e são bem menores", explica Len Hao.

Não foi esse o primeiro negócio do casal. Ao chegar ao país eles abriram uma lanchonete na Praça Carlos Gomes. Depois de 16 anos resolveram mudar. Não que o negócio não estivesse prosperando. Era apenas a idade chegando. O trabalho exigia muito do corpo. Quando alguém pergunta de quem foi a ideia de trocar a chapa e as panelas pelas linhas e fios, Humano, hoje com 76 anos, indica a mulher. "Isso saiu daquela cabeça ai", conta rindo. Ela, mais séria, explica que o mais difícil do negócio é controlar o estoque e as vendas. Tudo chega em pacotes com dúzias e centenas e é preciso dividir os produtos em porções menores. Ela também não tem ideia de quantos itens tem na loja. "Uns 20 mil", arrisca.

É ela quem compra os produtos, buscando os lançamentos do mercado. Toda semana há coisa nova disponível. É preciso estar sempre atualizado. Mas Len Hao não usa os produtos que vende. Ela confessa que até gostaria de costurar "só por diversão", mas não consegue. Não há tempo para isso. É preciso continuar a vender botões e zíperes para os outros.

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