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– Pai, devolve a vuvuzela do Mateus.

– Eu já disse para ele que a corneta fica aqui agora. Para sempre.

– Pai, preciso sair logo, não tenho tempo para discutir. Devolve a vuvuzela.

– Para começar, é uma corneta. Que mania de inventar nome novo. Para terminar, está lá, no mesmo lugar daquele disco voador colorido e barulhento que você tinha na idade dele.

– O meu gênius? Pai, meu gênius ainda está aí? Devolve os dois, por favor!

– Aquele brinquedo louco irritou todo mundo aqui em casa e foi para uma caixa. A corneta do meu neto foi para a mesma caixa. É assim que funciona aqui em casa: fez mais barulho do que devia, vai para a caixa e não tem recurso.

– Pai, justo agora, na Copa? A criançada toda do condomínio brinca de vuvuzela, quer que seu neto seja o único diferente? Já não chega o trauma que me causou tomando o meu gênius?

– Trauma nada. Olha aí você, formada e casada. Não é bom esse guri continuar assistindo aos jogos. Muita roubalheira, juízes incompetentes, isso é mau exemplo. Hoje ele saiu comigo de carro e me falou que eu podia correr porque o radar aqui perto de casa está enguiçado. Estamos num país de malandros e cafajestes. Chega de mau exemplo. Daqui a uns dias ele está roubando. Bota o menino para jogar xadrez que é melhor.

– Pai, devolve as nossas coisas.

– Não.

Nesta Copa, a expressão "futebol arte" é um grande guarda-chuva que abriga diferentes formas de jogar: há os dribles dignos de mil repetições em câmera lenta; também há goleiros que fazem incríveis mergulhos no ar para salvar a honra de seus times; há jogadas na forma de enganadinha, de vai-não-vai, de bolas que são mandadas com incrível efeito para os confins da área inimiga (e nisto a fatídica Jabulani colabora, e muito). Contudo, há também doses cavalares de malandragem: camisas puxadas sem cerimônia, rasteiras maldosas, cotoveladas pirotécnicas, homenzarrões atirando-se ao chão, com lamúrias por faltas inexistentes. No campo, jogadores comportam-se como gigantescos bebês clamando pela atenção da mãe. A mãe, no caso, chama-se árbitro. É como nas brigas entre irmãos: uma choradinha a mais garante que a bronca seja dada justamente ao menos culpado.

Como amante do tênis, não posso deixar de lembrar que a história recente deste esporte incorporou o desafio eletrônico do jogador. Uma revisão eletrônica é pedida quando ocorre uma suposta marcação injusta do juiz. Um telão instalado na quadra mostra uma espécie de animação com replay da jogada, com precisão eletrônica. Há um número limitado de desafios por partida. O tira-teima do tênis se chama olho de águia (do inglês "hawk-eye"), e liquida as malandragens ainda na casca.

E malandragem é algo que cresce como erva daninha. Até Joseph Blatter, presidente da poderosa Fifa, reconheceu que injustiças como as desta Copa podem afastar a bilionária freguesia do futebol, e ameaça controlar eletronicamente pelo menos a linha do gol. Já vai tarde. Chega de mãos, ombros, linhas santas e risadinhas cúmplices de árbitros.

Relativizar a moral é criar um exército de Gérsons, no mau sentido que a expressão oferece. O juiz pode até não ver algumas jogadas ilegais. Mas o jogador envolvido percebe o que acontece. E cala-se diante da força de um placar, porque gosta de levar vantagem em tudo, certo? Autoacusação? Ja­­mais! Uma miopia global coloca o fair play no buraco, e jo­­ga uma pá de cal em cima. "A regra é clara": a injustiça é justa, desde que o injustiçado seja o time contrário.

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