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Tem um sentido profundamente simbólico a proibição, por parte da Fifa, da entrada de instrumentos musicais nos estádios do Brasil nos jogos da Copa do Mundo. O motivo oficial alegado é o de que os batuques e charangas poderiam entrar em choque com o hino nacional. O motivo real: atrair toda a atenção para os telões e alto-falantes pelos quais a Sony – um dos patrocinadores do evento – buscará entreter os espectadores.

Seria apenas mais uma restrição do "padrão Fifa" a uma tradição cultural brasileira – como a ameaça, depois revogada, da proibição da venda de acarajés em Salvador –, se não tocasse numa questão nevrálgica: a identificação secular entre o futebol e a música popular, em particular o samba.

Não por acaso, o futebol e a música popular são os dois campos em que a excelência brasileira é indiscutível. Nossa "tecnologia de ponta do ócio", na feliz expressão do músico, ensaísta e professor de literatura José Miguel Wisnik.

Faz parte da construção imaginária da identidade cultural da nação a ideia de que o brasileiro deu ao mundo um jeito gingado, musical, malemolente, de jogar futebol. Gilberto Freyre foi um dos primeiros a afirmar que o estilo brasileiro adoçou e sensualizou o caráter predominantemente bélico do futebol europeu, que transparece no próprio vocabulário do esporte, em termos como "artilheiro", "ponta de lança", "cidadela", "comando do ataque" etc.

"O brasileiro joga futebol como quem samba", reza o lugar-comum que ajudou a construir nossa imagem para o mundo e para nós mesmos. "É bom no samba, é bom no couro", diz a marchinha A Taça do Mundo É Nossa, composta por Wagner Mugeri, Lauro Müller e Victor Dagô para comemorar nosso primeiro título mundial, na Copa de 1958, na Suécia.

Junto com esse clichê de um futebol alegre, gingado e sensual – que seria fruto da miscigenação afro-brasileira, a exemplo do samba e da capoeira – vinha a contrapartida: o jogador brasileiro era visto como indolente, malandro, irresponsável. Faltavam-lhe a disciplina e o compromisso necessários para vencer num esporte cada vez mais milionário e competitivo. No meio futebolístico italiano havia, nos anos 80 e 90, uma frase popular sobre a contratação de jogadores: "Um italiano para defender, um brasileiro para encantar, um argentino para vencer".

Essa imagem ambivalente do futebolista brasileiro – uma espécie de espetacular, mas pouco confiável artista de circo – mudou substancialmente a partir dos anos 1990, sobretudo depois da conquista da Copa de 94 pela pragmática e disciplinada seleção de Carlos Alberto Parreira.

Num artigo sobre "os idiomas do futebol" publicado na revista Time em 2004, sob o sugestivo título Sprachen Zie Futbol?, o jornalista Tony Karon resumiu assim essa evolução do "idioma" brasileiro: "Foi-se o tempo da filosofia da 'melhor defesa é o ataque' dos jogadores do passado, que sempre pareciam estar se divertindo em campo como um punhado de sujeitos jogando bola na praia. As equipes brasileiras de 2002 (campeã), 1998 (derrotada na final) e 1994 (campeã) mostraram-se muito mais pertinazes e eficientes que as dos seus antepassados. Como os fabulosos jogadores de 1982, que talvez tenham sido os mais empolgantes de se ver desde Pelé e seus companheiros de 1970, mas que foram batidos por causa dos erros básicos que você esperaria... bem, de um punhado de sujeitos jogando bola na praia".

Hoje ainda persiste em alguma medida a associação entre o futebolista brasileiro e a fantasia, a capacidade de encantar. Um pouco por inércia e um pouco pela emergência, de quando em quando, de um artista fabuloso como Ronaldinho Gaúcho ou Neymar. Mas cada vez menos essa construção imaginária corresponde à realidade.

Hoje o Brasil exporta mais zagueiros e meio-campistas do que atacantes, e nossa seleção tem contado com treinadores (Parreira, Dunga, Felipão) mais preocupados em defender do que em criar situações de ataque.

A própria mentalidade do jogador brasileiro mudou radicalmente. Hoje, de um modo geral, ele é muito mais "profissional", entendendo-se essa ambígua palavra como alguém mais preocupado com os ganhos salariais e os contratos publicitários do que com qualquer tipo de lealdade clubística ou mesmo nacional.

Não vai aqui nenhum juízo de valor, nenhum lamento nostálgico pelo "tempo em que os atletas jogavam por amor à camisa", mas apenas uma constatação. Se no passado a seleção brasileira era vista como o ápice da carreira de um futebolista, de preferência coroando a passagem por um clube de grande tradição popular, hoje o escrete canarinho é pouco mais que uma vitrine ou trampolim para transferências milionárias e gordos contratos publicitários.

Se antigamente se dizia que um craque vaidoso como Heleno de Freitas levava no calção um pente para ajeitar os cabelos durante uma partida, ou que Garrincha fugia da concentração para namorar alguma mulher ou caçar passarinhos, hoje um Neymar levanta a camisa e abaixa o calção em pleno jogo para mostrar às câmeras a marca de cueca que o patrocina.

O poder do capital no mundo globalizado sobrepõe-se a tudo – clubes, nações, entidades, paixões pessoais – e a tudo absorve. Com o preço proibitivo dos ingressos, não são só os instrumentos musicais que estão banidos das arenas "padrão Fifa": é o próprio torcedor popular, que sempre foi a seiva do futebol brasileiro e modelador de sua identidade.

É, num certo sentido, o próprio Brasil que está sendo banido para longe – mantido à distância pelas barreiras e tropas de choque – de modo a garantir a segurança e a assepsia do espetáculo. No limite, para a maioria dos brasileiros – sobretudo para os que amam o futebol e cresceram frequentando os estádios –, não faz diferença que a Copa seja realizada no país, e não na China ou nas ilhas Maldivas. Eles vão estar longe, vendo pela televisão, entre um comercial e outro.

José Geraldo Couto é jornalista e crítico de cinema. Trabalhou durante mais de vinte anos para a Folha de S.Paulo. É tradutor do inglês e do espanhol. Do inglês traduziu, entre outros autores, Henry James, Saul Bellow, Norman Mailer, Truman Capote, Michael Cunningham e Martin Scorsese. Do espanhol, Adolfo Bioy Casares e Enrique Vila-Matas.

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