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O imperador chinês Huang-ti era um estrategista. Talvez o maior de seu tempo. Por volta do ano 2.500 antes de Cristo, quando não havia diplomacia entre os povos e as guerras se davam no muque, ele utilizava bolas feitas de pele de animal recheadas de pedras para treinar os soldados, que logo usariam a técnica para chutar a cabeça do inimigo. Embora desconhecido no mundo ocidental, Huang-ti entraria para a história, mas não pelas atuações nos campos de batalha. Das inovações do imperador nasceu o embrião daquele que, 45 séculos depois, seria o mais popular dos esportes.

Foram necessários 4.500 anos para o futebol descer as montanhas da China e ganhar forma nas mãos e nos pés dos ingleses, em 1885, não sem antes ser experimentado pelo império japonês, pelos gregos da Antigüidade e pelos italianos da Idade Média. Contudo, bastou um século para o esporte ganhar fama mundial e metade desse tempo para tornar-se a segunda mais lucrativa indústria do planeta. O futebol dos tempos de Huang-ti obviamente não é igual àquele trazido por Charles Miller ao Brasil, em 1894, assim como o futebol da Era Ronaldinho não é o mesmo da Era Pelé.

Há muito o futebol deixou de ser um modismo importado dos ingleses para se incorporar ao cotidiano do brasileiro. Não há cidade do Brasil em que não haja um campinho de futebol, ou mesmo traves improvisadas na rua. Logo a diversão viraria um negócio rentável. Existem no país cerca de 800 clubes de futebol federados e mais de 13 mil times amadores, média de 2,5 por cidade. São pelo menos 30 milhões de praticantes e mais de 300 estádios, com capacidade para 5 milhões de lugares simultâneos. É como se um Paraguai inteiro coubesse nos estádios brasileiros.

Apenas uma pequena parte desses clubes tem estádio próprio ou escolinhas para formar seus jogadores. Ainda assim, são condições melhores do que há três, quatro décadas. Foi com bola de meia em campinhos de terra que surgiram alguns dos maiores craques brasileiros, entre eles o melhor de todos. Um dia os argentinos arriscaram comparar Maradona a Pelé. Hoje, são os brasileiros que fazem o mesmo com Ronaldinho Gaúcho, o craque revelado nos gramados do Olímpico. Mas, de Pelé a Ronaldinho muita coisa mudou. Praticamente tudo sofreu mudanças nesses 50 anos.

A bola ficou mais leve, a chuteira mais macia (bem macia), o gramado mais cuidado, o uniforme menos incômodo no corpo. Tudo mudou para facilitar o trabalho do craque, daí uma das dificuldades de se comparar os de antes com os de hoje. Até a ambição pelo gol (razão maior desse esporte) anda meio contida pelas táticas retranqueiras. O torcedor também parece mudado, por vezes mais intolerante. A maior transformação, porém, se deu em outra esfera. O futebol virou uma fábrica de ídolos sem igual. Eles surgem e desaparecem com uma rapidez impressionante. Alguns têm aparição menos efêmera.

Por mais que se compare, até hoje nenhum jogador rivaliza com Pelé em popularidade. As razões são muitas (talvez 1.281, o número de gols que ele marcou). Todo aspirante a craque das gerações pós-Copa de 1958 sonhava ser Pelé. O espelho da vez é Ronaldinho, eleito dois anos consecutivos melhor jogador do mundo pela Fifa. Ocupa o posto que já foi de Zinedine Zidane, de Ronaldo Fenômeno, de Luís Figo, Rivaldo... Foram 10 os melhores desde a primeira eleição, em 1991. Só três repetiram o feito: Ronaldo (3 vezes), Zidane (3) e agora Ronaldinho (2). Mas ele está só começando.

O meia-atacante do Barcelona está no topo de uma indústria milionária que vale-se do discurso midiático para criar um ídolo por temporada. De arma de guerra nos tempos de Huang-Ti, o futebol tornou-se negócio rentável nas mãos dos clubes e publicitários. Move cifras que vão muito além do imaginário do torcedor, que, na outra ponta desse negócio, sustenta esse status quo. Puxado principalmente pelo futebol, a indústria do esporte movimenta US$ 1 trilhão por ano no mundo, um quinto disso nos Estados Unidos. E meros R$ 30 bilhões no Brasil.

Nesse cálculo entra de tudo, de todos os esportes. Vai do comércio de meias, bolas e camisas de clubes à venda de ingressos, patrocínios, apoios e direitos de transmissão via tevê. A Fundação Getúlio Vargas calcula que isso tudo equivale, no Brasil, a 3% do Produto Interno Bruto (PIB). Reduzidas ao futebol, essas cifras ficam em torno de US$ 216 bilhões no mundo, conforme estimativa do economista Stefan Szymanski, do Imperial College de Londres. A participação brasileira é de US$ 7 bilhões. Muito pouco para um país que levou sete das 15 edições do "melhor do mundo" da Fifa.

O Brasil é apenas uma ponta desse iceberg recheado de dólares. Quando fizer sua estréia na Copa da Alemanha, no próximo dia 13, contra a Croácia, estará em campo a seleção brasileira mais cara de todos os tempos. Somado o valor dos reservas e dos titulares, chega-se facilmente a R$ 1 bilhão, quase a arrecadação de um ano inteiro de uma cidade como Campinas (SP), ou quase duas vezes a receita de Londrina (PR). Mas apesar do favoritismo do Brasil, esta é apenas a terceira seleção mais valiosa entre as 32 que disputarão a Copa, avaliada em R$ 642,6 milhões, atrás da Inglaterra e da Itália.

Antes restrito aos clubes sofisticados da alta burguesia paulista e carioca, o futebol passou a ser, antes de tudo, uma forma de ascensão social a partir dos anos 1920, sobretudo para os negros. Hoje, tornou-se um álibi para o novo comportamento dos jogadores. "Não existe mais amor ao clube, existe amor ao dinheiro", critica Pelé (leia entrevista exclusiva com ele na edição de amanhã). Acabou a fidelidade do jogador ao time. Hoje, a maioria veste a camisa de quem paga mais. E atualmente os que pagam mais são os clubes da Inglaterra, da Espanha, da Itália, da Alemanha.

A migração de jogadores brasileiros para a Europa não é fenômeno recente, mas acentuou-se muito de duas décadas para cá. A explosão das receitas dos clubes europeus (principalmente ingleses) nos anos1990 criou um impasse para países como o Brasil, que tem o maior celeiro de craques do mundo mas não tem dinheiro para segurá-los. O termômetro dessa mudança é a própria seleção brasileira. Na Copa de 1970, por exemplo, nenhum dos convocados jogava em outro país. Hoje, só dois dos 23 convocados para a Copa da Alemanha atuam em clubes do Brasil. E ambos são reservas.

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