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 | Michael Reaves/AFP
| Foto: Michael Reaves/AFP

“Vou te colocar na primeira fileira. Vai dar para ver tudo, vai ter sangue chegando na sua cara”. Foi assim que recebi o convite para cobrir uma das primeiras edições do UFC realizado no Brasil. O “privilégio” de assistir da beira do octógono e até sentir o sangue dos lutadores, confesso, não me atraiu muito, mas sei que faria inveja a muitos dos espectadores aficionados pelo MMA (sigla para Mixed Martial Arts, ou “Artes Marciais Mistas”).

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Direto ao assunto

1) O instinto de guerra

2) A força do UFC

3) Maior violência é invisível

4) Como medir a violência

DANIEL CASTELLANO

Já o que faz despertar interesse do público em testemunhar contendas em que a vitória pressupõe um espetáculo de hematomas, fraturas (expostas, por vezes) e sangue é uma pergunta que ainda gera discussões tão acaloradas quanto os combates. E as respostas, longe de serem definitivas. Há quem diga que a necessidade pelo confronto está no instinto do ser humano; há quem condene o MMA a um retrocesso na civilidade, e que a ascensão da luta torna a sociedade mais violenta.

Fato é que o MMA responde a uma característica do esporte, sobre o prazer que o ser humano tem em testemunhar a tensão de um espetáculo regrado, especialmente quando o risco físico está autorizado na regra.

Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Essa definição está em A Busca da Excitação (1985), dos sociólogos Norbert Elias e Eric Dunning. O princípio é o de que o ser humano ativa recursos naturais para alívio do estresse provocado pelo controle de pulsões que impõe a si mesmo. Esse freio teria sido necessário para que, coletivamente, a humanidade pudesse se civilizar. Tais recursos naturais são instintivos e resultariam em prazer.

O esporte está justamente na esfera desses recursos — assim como o sexo e o riso —, mas com características específicas: sem planejar, a humanidade aprendeu a mimetizar situações de combate, em espetáculos regrados em que se permite certa dose de risco físico em prol desse alívio prazeroso. Nessa esfera, o MMA teria um grande poder de excitação e alívio para contra-atacar, e talvez resolver as tensões provocadas.

O argumento bastante difundido na Sociologia do Esporte parece bastante eficiente, assim, na teoria. Mas talvez seja difícil aceitar que há algo de catártico — e não um nível excessivo de violência — numa cena tão chocante quanto a da lesão de Anderson Silva (uma fratura exposta na tíbia da perna esquerda) na sua segunda derrota para Chris Weidman, em dezembro de 2013, transmitida ao vivo pela televisão.

De fato, não é o tipo de imagem que o fã de lutas busca, conscientemente, acompanhar. Assim como não é na expectativa de testemunhar um acidente fatal o que um aficionado por de Fórmula 1 compra o ingresso para uma corrida. Porém ambos sabem que o risco de extrapolar o limite está lá.

RM/yhh/RICARDO MORAES

Money

A cada evento do UFC, são quebras de recordes em vendas em pay-per-view e ingressos; em 2015, o evento arrecadou 600 milhões de dólares de espectadores, que pagaram até mil dólares por ticket (valor médio cobrado no UFC 205, em Nova York, o mais caro da história). E não importa que o lugar na arena seja longe do octógono e sua melhor vista das lutas seja pelos telões: ser visto em um Ultimate também faz parte do show.

Instinto, guerra e espetáculo

Mas só a liberação do estresse causado pelo condicionamento civilizador explica tanto furor causado pelos confrontos no octógono? Por que justamente o MMA ganhou tanta notoriedade, quando há tantas outras modalidades de lutas sendo disputadas no meio esportivo?

O diretor do Centro de Educação Física e Desportos e coordenador do Grupo de Estudos de Esportes de Combate, Lutas e Artes Marciais (Gesheclam) da UFPR, André Mendes Capraro, lembra que, além dessa ligação com instintos primitivos, há outras razões, e cita uma espécie de memória prática do homem: “Se, por um lado, o interesse pelo combate remonta uma tendência ancestral da sobrevivência, também há uma tendência ao bélico”.

RM/TY/RICARDO MORAES

Ajuda recorrer à História para entender: não é de hoje que o ser humano mimetiza os atos de guerra em jogos. Os limites dos riscos físicos aceitos para esses jogos variam conforme o tempo e a sociedade. Em tempos antigos, foram os gladiadores, em Roma; a Grécia teve uma espécie de tataravô do MMA, o pancrácio, uma mistura entre boxe e wrestling, usada no treinamento do exército e disputada nos Jogos Olímpicos. Os confrontos só se encerravam quando um dos oponentes desistia completamente do combate – o que podia ocorrer com a sua morte.

O que levou o MMA a ganhar atenção do público frente a outras artes marciais foi quando começaram os desafios para saber qual delas seria a melhor. O intuito inicial era uma jogada de marketing e fazer com que a resposta fosse: o jiu-jitsu brasileiro, praticado e disseminado pela família Gracie, que hoje tem assinatura e sigla próprias, o Brazilian Jiu-Jitsu (BJJ).

Steve Marcus/AFP

Assim nasceu o Ultimate Fighting Championship , mais conhecido por UFC, no início dos anos 1990. Foi criado por Rorion Gracie, que teve o insight de fazer nos Estados Unidos um evento de confrontos entre lutadores de diferentes modalidades, como sua família já fazia no Brasil, mas televisionado. Assim, os Gracie chamaram para si um ar mítico de “donos da história” do jiu-jitsu e do MMA que tem a ver mais com autopromoção do que com a verdade (mas essa é outra discussão).

O UFC 1 foi disputado em 12 de novembro de 1993, com oito concorrentes, das modalidades de sumô, savate, kickboxing, karatê, boxe, jiu-jitsu e taekwondo. Sem divisão por peso e proibindo apenas mordidas, dedo no olho e golpes na região genital, teve como vencedor Royce Gracie, com o prêmio de 50 mil dólares.

À época, a modalidade atendia pelo seu primeiro nome de batismo, “vale-tudo”, alcunha que não colaborava muito para sua popularidade e que o MMA penou para enterrar. O fato de ter confinado os lutadores entre grades – detratores da nova modalidade associaram a uma jaula – e da luta continuar mesmo quando os lutadores escorriam sangue pelo octógono também não ajudava a baixar a guarda de quem torcia o nariz para o UFC.

Ainda assim, a popularidade do vale-tudo crescia na mesma proporção das críticas. Quase foi banido nos Estados Unidos em campanha liderada pelo então senador John McCain — chegou a ser proibido em 36 estados (no Brasil, o deputado federal José Mentor já tentou proibir a transmissão das lutas via televisão). Ainda assim, outros eventos além do UFC começaram a pulular mundo afora.

Show

A popularidade do MMA explodiu quando começou a ser gerenciado não mais como esporte, mas como espetáculo. Visão de mercado e tino para os negócios fizeram com que paixão que as artes marciais orientais causavam no público no ocidente fosse aproveitada para consumir uma nova modalidade que se consolidava. O sucesso dos filmes de Bruce Lee — e outras franquias de filmes de lutas — já haviam criado uma geração de fãs e praticantes de artes marciais ávidos por ver essas lutas postas à prova. Nesse contexto, o vale-tudo do UFC caiu como uma luva.

Fábrica de milhões e de espetáculo

Transformar o esporte em espetáculo foi passo seguinte quando o ex-pugilista Dana White e pelos irmãos Frank e Lorenzo Fertitta, vindos do mundo dos cassinos, compraram o UFC, em 2001. Depois de quatro anos de prejuízos, o transformaram no maior evento de lutas da atualidade. No ano passado, venderam a marca para um grupo chinês por 4 bilhões de dólares (o dobro do que pagaram no início do século).

O crescimento veio investindo em duas frentes: para conquistar novos públicos, não titubearam em transformar as lutas em shows e ampliaram a regulação da modalidade, dando cara de “novo esporte” ao que era associado a uma briga desordenada. Um dos trunfos foi o reality show The Ultimate Fighter , em que os telespectadores viam não só a preparação dos lutadores, mas também se envolviam com suas rotinas pessoais.

Ao mesmo tempo, regulamentaram o MMA com regras unificadas a partir de regras de lutas que são disputadas nos jogos olímpicos: wrestling , boxe, judô, taekwondo e greco-romana. Era o fim da noção de “vale-tudo”, o nível de violência diminuiu e aumentou a sensação de organização da modalidade.

A postura agressiva nos negócios fez a marca ter praticamente o monopólio do MMA: as ofertas para contar com os melhores lutadores concentraram a atenção do público e, mesmo no período que coexistiu com eventos concorrentes como o japonês Pride, o UFC conseguiu se fixar como referência e hoje é praticamente sinônimo de Mixed Martial Arts .

Hugo Harada/Gazeta do Povo

Maior violência é invisível

O sociólogo britânico Eric Dunning afirma que todos os desportos são, por natureza, competitivos e levam à agressão e à violência.

O problema da violência no esporte, diz Dunning, é quando algum tipo de pressão externa suspende as convenções que limitam a violência — como a obrigação da vitória para receber uma recompensa financeira, comum nos esportes profissionais.

Entram nesse quesito a perda de peso e o doping, comuns à cultura do MMA. Para estarem na categoria de peso mais leve possível, os atletas criam rotinas cruéis de perda de peso às vésperas da luta, com jejum total, uso de laxantes, alternância brusca de temperatura do corpo para desidratação, em verdadeiras autoagressões. Práticas já resultaram em mortes. Sem contar que a debilitação a longo prazo pode gerar consequências que as pesquisas ainda não conseguiram mensurar.

Lesões

Outras formas de medir a violência.

É relativa

Comparar a gravidade das lesões em diferentes esportes é uma forma possível de entender a relatividade do tema. Retomando a lesão de Anderson Silva, foi visualmente terrível, mas não o coloca em risco de morte. Talvez os estudos sobre o impacto dos nocautes sofridos por golpes de chutes aéreos ou diretos no MMA ainda não sejam conclusivos, mas certamente, estes ocorrem com menos frequência que no pugilismo.

Perigoso

Nesse quesito, futebol americano e boxe sofrem menos com a rejeição vinda das arquibancadas, mas estão, comprovadamente, nas listas dos mais perigosos, pelo risco das concussões (movimentação do cérebro, que se choca com a caixa craniana).

Doenças

O impacto tanto de diretos e jabs recebidos nos ringues anos a fio quanto das batidas da cabeça contra o solo nos tackles recebidos pela defesa adversária têm grande incidência de doenças neurológicas degenerativas seríssimas para pugilistas e jogadores. Como são agressões que atacam o atleta lenta e silenciosamente e provavelmente só se manifestarão depois de sua aposentadoria, também pouco comove a torcida ávida por mais um nocaute ou um touchdown

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