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Zé Carlos, técnico do Coritiba, e Roque Júnior, diretor do Paraná: dificuldades | Brunno Covello/ Jonathan Campos/Gazeta do Povo
Zé Carlos, técnico do Coritiba, e Roque Júnior, diretor do Paraná: dificuldades| Foto: Brunno Covello/ Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Treinadores

Coadjuvantes, ‘professores’ negros têm as portas dos grandes fechadas

O funil natural imposto a quem pendura as chuteiras e quer continuar no futebol é muito mais cruel para quem almeja um posto como treinador. O exemplo atual mais citado é o de Andrade. Ídolo da maior torcida do país, foi campeão brasileiro no comando do Flamengo em 2009, mas nunca mais teve uma chance em um grande clube. Ex-jogador e ex-gerente de futebol do clube carioca, Júnior revelou que Andrade sofria preconceito de outros dirigentes. "O Andrade não foi escolhido para treinar o Flamengo. Era auxiliar e foi ficando como quebra um galho", afirmou o treinador Lula Pereira. Em entrevista para à Gazeta do Povo, o pernambucano criticou a falta de oportunidades motivada pelo preconceito. "Já deixei de ser contratado por ser preto", admitiu. Técnico do time alternativo do Coritiba na largada do Paranaense de 2014, Zé Carlos confessa comemorar o fato de não ter encarado nenhuma situação desagradável como treinador. Mas confessa não saber se o seu sucesso se limitou à base por causa da cor.

A trégua que o sucesso no futebol promove no racismo é suspensa quando se ultrapassa a linha do gramado. A barreira não oficializada que impede acesso de ex-atletas negros a cargos expressivos de comando e gestão é apenas uma das facetas do preconceito enraizado do esporte. E um reflexo da cultura brasileira.

Uma ação velada tão nociva quanto os ataques recorrentes promovidos por torcedores. O último episódio envolvendo atletas brasileiros teve como alvo o volante Tinga, do Cruzeiro. Pela Libertadores, no dia 12 de fevereiro, o jogador sofreu com a torcida do peruano Real Garcilaso imitando sons de macaco todas as vezes em que pegava na bola.

Também no Peru, só que de forma isolada, o atleticano Manoel teria sido ofendido no jogo contra o Sporting Crystal, no dia 30 de janeiro, com o som característico dos símios. Situação bem mais discreta do que a polêmica em 2010, quando o zagueiro rubro-negro foi chamado de "macaco" pelo palmeirense Danilo.

Xingamentos, o barulho, imitações e até mesmo jogar bananas no campo estão no repertório dos intolerantes pelos estádios de todo o mundo. A desagradável provocação é a versão esportiva para o constrangimento recorrente do dia a dia.

"Enfrentei isso jogando [pelo Bayer Leverkusen] contra o Real Madrid [na capital espanhola]. Mas vou falar que a situação que eu vivi com um taxista me atingiu muito mais", comparou Roque Júnior. "Foi em São Paulo. Fui pegar um táxi e o motorista não quis me levar. Quando me reconheceu, tentou se desculpar, mas daí fui eu que não quis", lembrou o ex-jogador, que conta nunca ter sofrido com episódios racistas nos quatro anos atuando no futebol alemão.

Diretor de futebol do Pa­­raná, o próprio Roque Júnior se coloca na ponta mais aguda da pirâmide futebolística. "Não consigo dissociar uma coisa da outra. O fute­­bol é o reflexo da cultura no país. A história do Brasil mostra isso. É um preconceito enraizado e não se dá oportunidades para os negros terem acesso a cargos superiores em todas as áreas", analisou. "Só fomos ter uma reitora negra em uma universidade federal no ano passado", citou, se referindo a Nilma Gomes, nomeada na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), com campus no Ceará e na Bahia.

Em uma pesquisa do Sis­­te­ma Estadual de Análise de Dados (Seade) realizada em 2011, somente 9,6% dos executivos em cargos de direção e gerência na região metropolitana de São Paulo eram negros ou pardos. De acordo com o último censo do IBGE em 2010, a população brasileira era composta de 7,6% de pessoas que se declaram negras e 43,1% pardas.

Roque Júnior nasceu em uma família na qual os avós negros enfrentaram muitas dificuldades para assegurar o acesso dos filhos aos estudos. Mesmo empenho adotado pelos pais do jogador e que tanto ajudou na sua vida pessoal.

"Mas só consegui me preparar bem, fazer cursos, estágios durante quatro anos porque minha condição financeira após o parar de jogar me permitiu. A maioria não tem isso e não consegue se qualificar. Muitos mal estudaram antes mesmo de começar a jogar. É uma questão social", completou.

O ex-jogador Reginaldo Nascimento, com quase dez anos de Coritiba, também sonha com um cargo de gestão. Até recebeu convites, mas acha que a cor possa ter atrapalhado. "Você pode ser o melhor jogador, o ídolo do clube, mas dificilmente vai conseguir oportunidades fora de campo. Se eu quiser um espaço, vou ter de me preparar muito mais do que os outros", afirmou. Por sempre se impôr, disse ter enfrentado poucos episódios de racismo como jogador. Já fora dos estádios...

"Assim como o Tinga contou em várias entrevis­­tas após o episódio no Peru, também sou casado com uma mulher loira. Você sente o preconceito até no olhar: ‘Olha lá ela com um negão’. É assim quando você chega a algum lugar, entra em um restaurante", comentou.

Ele lembrou da vez em que foi comprar um presente para a mulher e a vendedora o mandou esperar na porta por mais de dez minutos sem atendê-lo. "Minha esposa foi lá depois e disse umas barbaridades na loja", falou.

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