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Marcão vibra após marcar diante do Ceará | Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
Marcão vibra após marcar diante do Ceará| Foto: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo

Com passe, sem passe

Ontem

Em 1976 nasceu de fato o chamado passe (Lei nº 6.354/76). O atleta passou a ser considerado um patrimônio do clube. Conforme regia a antiga norma, o jogador mantinha um vínculo com o clube, independentemente do prazo contratual. Assim, mesmo após o término do contrato, só poderia se transferir se o "passe" fosse comprado ou emprestado por outra agremiação. Como contrapartida, o jogador detinha 15% do seu próprio passe, faturando esse montante nas negociações. Apesar de ter muitos artigos revogados pela Lei Pelé e pela Constituição de 88, ainda continua em vigor. Muitos jogadores ficaram presos ao clube de origem, perdendo oportunidades.

Hoje

O atleta perdeu os 15% do passe, mas ganhou a garantia de emprego de até cinco anos, liberdade de trabalho, além dos direitos assegurados nos encargos sociais. Os clubes ficaram com a cláusula penal como garantia. O contrato de trabalho por tempo determinado pode ser rompido a qualquer momento por empregado ou empregador – mediante pagamento da multa. Tal relação passou a vigorar em partes a partir 2000 e plenamente em março de 2001 (através da Lei 9.615/98). Segundo dirigentes de clubes, como efeito colateral, não vale mais a pena investir na formação de atletas, pois, ao fim do contrato, o jogador, sem vínculo, acaba sendo levado por clubes mais poderosos financeiramente.

Entrevista

"Empresários prostituíram a relação entre atleta e clube"

Gislaine Nunes, advogada.

A Lei Pelé abriu espaço para o surgimento de uma das personagens mais temidas do futebol brasileiro. Gislaine Nunes, advogada, 41 anos, representou mais de 400 jogadores em ações contra clubes, sempre aproveitando deslizes dos cartolas para liberar atletas ou conseguir o pagamento de remunerações atrasadas. Por telefone, Gislaine comentou que será a geração atual a primeira a se beneficiar plenamente da Lei Pelé. Ainda mais enquanto os dirigentes continuarem cometendo erros antigos.

A primeira geração de aposentados que jogaram sob o regime da Lei Pelé para em condições financeiras melhores que a geração anterior?

Não muda nada, não. O dinheiro deles ainda ficou muito na mão dos empresários. Como hoje essa atuação é mais coibida, os jogadores que estão no meio da carreira terão mais chance de ganhar dinheiro. É da geração do Neymar pra frente.

Qual foi o maior impacto da Lei Pelé?

A liberação por não pagamento de salário. Antes o clube atrasava e não havia uma punição efetiva. Isso passou a ser decidido pelo Poder Judiciário, os atletas receberam mais apoio. Foi uma conquista maior até que o fim do passe. Alguns nem gostariam de ter o passe na mão. Em um primeiro momento, isso foi bom só para grandes atletas, uma minoria.

Hoje já é bom para a maioria?

Houve uma acomodação. No início, os jogadores estavam acostumados a ter um cabresto. Muitos me procuravam dizendo ‘estou inseguro porque o clube não é mais meu dono’.

Esse cabresto não passou para a mão do empresário?

Os empresários prostituíram muito essa relação entre atleta e clube. Virou um triângulo amoroso extremamente promíscuo. Os atletas e, principalmente, os clubes ficaram reféns.

Os clubes já aprenderam a respeitar a Lei Pelé ou ainda cometem erros básicos?

Cometem, sim. Por que eu tirei o Ronaldinho do Flamengo? O contrato de imagem e de trabalho eram exatamente iguais, algo que a Lei Pelé proíbe. Tirei um menino do Paulista de Jundiaí. Pagavam direitinho, mas estava encostado, treinando em separado. É assédio moral. Os erros continuam os mesmos.

E são erros premeditados?

Eles acham que ainda têm na mão o chicote que prendia os atletas. ‘Está insatisfeito? Vai na Justiça’. Têm a cara de pau de atrasar dois meses de salário e pagar um para não caracterizar a mora. Já está caracterizada.

A sensação era de que o dinheiro escorria entre os dedos. Campeão brasileiro em 2001, Cocito via os companheiros de Atlético fazerem contratos vantajosos. Enquanto isso, o volante enfrentava longas negociações de renovação que terminavam em tímidos avanços salariais.

A diferença estava na Lei Pelé. Sancionada em 1998, mas com vigência prática a partir de 2000, a legislação acabou com o ‘passe’, mecanismo que fazia do jogador propriedade do clube. Hoje, 13 anos depois, na mesma proporção que os primeiros boleiros desse período vão pendurando as chuteiras, histórias surgem. Retrato da dura relação patrão e empregado no furebol.

No período de carência da lei, por exemplo, Cocito, Lucas e Gustavo foram registrados como atletas do Rentistas, time de fachada do empresário Juan Figer com sede no Uruguai, onde a algema persistia. Mesmo que o vínculo com o Atlético terminasse, o trio continuava preso, alheio à revolução trabalhista que se desenrolava.

"Como os outros jogadores ficariam livres ao fim do contrato, eles eram mais valorizados na renovação. Deixei de ganhar dinheiro", conta Cocito, que só pôde usufruir da norma a partir de 2005, quando trocou o Atlético pelo Tenerife-ESP. "Aí eu já estava mais pra lá do que pra cá", brinca.

A alforria até hoje é apontada pelos clubes como causa de suas dívidas estratosféricas. E que obrigou os jogadores a cuidarem do próprio nariz. Alguns sucumbiram e correram para o colo de empresários. Outros se mantiveram no controle de suas carreiras.

"Só fui ter empresário quando negociei com o Japão. Fora isso, nunca deixei dinheiro na mão de empresário. O olho do dono que engorda o gado", diz Marcão, lateral-esquerdo vice-campeão da Libertadores pelo Atlético, que ganhou o passe em 2001, quando deixou o São Caetano, e encerrou sua carreira ano passado.

Foi uma década de independência em negociações que permitiu a ele escolher a hora de parar, sem precisar passar novamente o sufoco em parte da carreira. Reginaldo Nascimento que o diga.

"Quando eu estava no Coritiba, recebi um convite do Corinthians e fiquei por não ter um empresário para me bancar. Sofri ameaças de diretor dizendo que se eu saísse daquela forma, ele ia me jogar contra a torcida. Nessa hora, não tem como administrar sozinho", relembra o ex-capitão alviverde, que negociou seus três últimos contratos com o Coxa já como dono dos seus direitos esportivos.

Para Nascimento, a primeira grande dificuldade enfrentada pelos jogadores foi a de "se vender" na hora de negociar um contrato. Era assim mesmo no Coritiba, onde ele tinha uma grande história. Pior ainda no Atlético-MG, em 2006. E insuportável para quem não tinha um clube quando a lei entrou em vigor.

Era essa a situação de Tcheco em 2000. Pouco depois de voltar da China, ele foi dispensado pelo Paraná. Pegou o passe, mas não tinha onde jogar. Ficou um tempo treinando sozinho, pensou até em encerrar a carreira aos 24 anos, até um acordo com o Malutrom (atual J. Malucelli).

"Demorou um pouco até o jogador entender como funcionava a lei. Por isso no começo só foi bom para quem já tinha mercado", conta Tcheco, que fez dois grandes negócios na carreira: a venda de 50% dos seus direitos para o Malutrom, em 2000, e dos outros 50% para o Al-Ittihad, em 2003.

Se com a modernização foi possível para Tcheco encaminhar sua independência financeira, imagine com duas. Renaldo viveu essa situação. Um ano antes da sua chegada à Europa, em 1996, a Lei Bosman derrubou o passe no Velho Continente. Na volta ao Brasil, em 2002, beneficiou-se do ordenamento local.

"Depois do meu primeiro contrato na Europa, vi que não precisava mais de empresário. Era tête-à-tête com os dirigentes e os caras me respeitavam", diz o ex-atacante de Atlético, Paraná e Coritiba, aposentado desde 2011. Fez uma pequena fortuna, que lhe permite hoje ser dono de imobiliária, táxi aéreo e um hotel.

Tcheco e Reginaldo Nascimento também garantiram uma aposentadoria tranquila com investimento em imóveis. Marcão e Cocito atuam no ramo da construção civil. Multiplicaram o dinheiro que aprenderam a poupar.

"Não importa o quanto você ganha, mas o quanto você gasta. Hoje, com a construção civil, ganho mais até do que se estivesse jogando bola", comenta Cocito, que é sócio do atacante Lucas e de um parente em uma incorporadora.

História de sucesso em meio a muitas outras de prejuízo. Marcão lembra de ex-companheiros que perderam milhares de reais no esquema Boi Gordo, empresa de investimento em gado que, na verdade, funcionava como uma pirâmide financeira. "Alguns amigos que ganharam um bom dinheiro para se sustentar depois de jogar bola e perderam por causa de separação ou de empresário", acrescenta Tcheco.

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