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O homem que formou sozinho 693 árbitros no estado (o equivalente, desde junho de 1989, a 100% dos profissionais) sofre com a falta de estrutura – mas não reclama. Ele diz amar a escola que dirige, atualmente com 140 alunos em fase de preparação para comandar jogos oficiais de futebol. Apenas uma coisa o deixa visivelmente incomodado: imaginar a crise do apito batendo à porta da sua instituição.

Nélson Orlando Lehmkuhl, 64 anos, relojoeiro em Curitiba, assume o papel de mestre nas noites de segunda e terça-feira. Isso sem falar nos finais de semana, quando pega a estrada para lecionar nas regiões norte, oeste, sudoeste e sul do estado. O profissional leva consigo uma experiência de 20 anos de atuação dentro do gramado – entre 1968 e 88 teve uma carreira discreta, exercendo a função de bandeirinha durante praticamente todo esse período. Tempo suficiente para conquistar mais admiradores que adversários.

Durante duas semanas, a Gazeta do Povo tentou agendar com o "professor do apito" uma entrevista para falar das aulas e preparação dos futuros juízes. Em meio às denúncias de corrupção na categoria, esse senhor de estatura média e cabelos brancos fez o possível para não entrar na pauta. Quando aceitou, após muita insistência, justificou o temor: "Não queria trazer essa lama para dentro da sala de aula". Três dias após falar, lembrou voluntariamente ao jornal que possui certificado de instrutor e observador, com aval da Conmebol e CBF.

Lehmkuhl leciona, além da capital, em Londrina, Iraty, Cascavel e Francisco Beltrão. "Às sextas-feiras, alugo um carro e viajo para o município-sede. Abracei essa vida. Os custos vêm apenas da mensalidade. Ganho quase nada, mas eu gosto desse desafio", diz.

Há 14 meses, nas instalações da Faculdade Assis Gurgacz (FAG), grupo de ensino particular de Cascavel, deu à Federação Paranaense de Futebol (FPF) o último suspiro de renovação na classe. Entregou o diploma para 21 jovens. Em Curitiba, não ocorre a colação de grau desde julho de 2001. A próxima, segundo sua própria estimativa, será em março – quando se formam 38 árbitros. Prato cheio para os críticos da "escolinha", como a chamam de forma pejorativa.

A admiração de Lehmkuhl por Onaireves Moura, presidente da FPF, encabeça a lista de queixas dos inimigos. O grupo de opositores também não perdoa um furo de contabilidade deixado por ele à frente da Associação de Árbitros. As polêmicas estão longe de afastá-lo do tablado, assim como também não diminuem a admiração pública de muitos pupilos – como Evandro Rogério Roman, do quadro da CBF, principal testemunha de acusação no esquema de manipulação de resultados no futebol local.

"Em termos de ensinamento das regras do jogo, estamos bem servidos. O seu Nélson é um apaixonado. Trata-se ainda de alguém firme na postura. Um senhor cheio de energia. Certa vez, ele nos ensinou algo muito importante: ‘Um homem pode se tornar árbitro. Nem sempre um árbitro consegue se tornar um homem’. Nunca esqueci isso", exalta o discípulo.

O instrutor de arbitragem, em tempos de imoralidade, confirma a existência do discurso ético na apostila. "Bato muito na tecla da conduta. Costumo dizer que o árbitro bebendo água mineral à beira do campo é sempre um cachaceiro aos olhos da torcida. Não basta apenas ser honesto, precisa parecer honesto. Além disso, explico que sempre haverá assédio de dirigentes. Não podemos dar brechas. Ninguém pode se dar ao luxo de pôr fim a uma carreira brilhante por dinheiro sujo", garante.

E reforça, aumentando gradativamente o tom de voz. "Veja bem: dei aula para o Sandro da Rocha e o Marcos Tadeu Mafra (eliminados do esporte por suposta corrupção). Não foi comigo que aprenderam isso. São dois ‘baita caras’, mas se houve isso será uma pena", pondera. "Também lecionei para o filho do José Francisco de Oliveira (outro banido pelo Tribunal Desportivo). Era um ótimo aluno, um dos melhores, no entanto saiu daqui desiludido com a carreira. Isto me entristece... Cheguei a fazer um apelo para esse guri: ‘Não quero te perder’. Foi em vão."

As frases prontas em favor da moral e a correta aplicação das normas saem por 12 parcelas de R$ 150, além da matrícula de R$ 100. Com essa quantia, o aspirante a juiz leva 200 horas de aprendizado, divididos em teoria, prática e física. São aproximadamente 10 provas ao longo de um período de 15 meses. Para pegar o canudo é preciso também percorrer 2.900 metros em 12 minutos – além de dar piques de 30 segundos em 200 metros. Durante essa fase, os aprendizes atuam em confrontos amadores e de várzea.

Mas essa busca por profissionais de qualidade só parece esbarrar no pouco caso administrativo (leia-se falta de política financeira por parte da FPF). A sede curitibana do estabelecimento é uma sala alugada no 10.º andar do Edíficio Asa. Sem condições de abrigar os encontros semanais, a escola conta com a ajuda da Associação dos Professores do Paraná (APP). O órgão sindical fornece gratuitamente um auditório, no 14.º andar do mesmo prédio, para receber a turma de quase 40 aspirantes. "A Federação não tem recurso suficiente para nos ajudar. Por isso, só assina o diploma dos meninos", explica Nélson Orlando Lehmkuhl.

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