Bombeiros resgatam vítima do desabamento de dois prédios na comunidade da Muzema, no Rio. Foto: Carl de Souza/AFP| Foto:

Quase dez anos depois do filme “Tropa de Elite 2”, quando as milícias viraram assunto no país, muita coisa mudou. Antes grupos paramilitares, formados por policiais, bombeiros e outros profissionais ligados ao Estado, que exploravam de forma ilegal a venda de gás de cozinha e transporte alternativo no Rio de Janeiro, elas cresceram e se tornaram organizações criminosas estruturadas, com dinâmicas próprias e um único objetivo: o lucro.

Diante desse monstro, presente principalmente nas zonas Norte e Oeste da cidade do Rio e também na Baixada Fluminense, a pergunta é: como combatê-lo? Um debate, promovido pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), reuniu especialistas no início deste mês para buscar as respostas.

Mais que um poder paralelo

Debate, promovido pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), reuniu especialistas para discutir como enfrentar o problema das milícias.| Foto: Eduardo Antonio (GPBC)

“A milícia não é um Estado paralelo. Ela é o próprio Estado.” A frase, do sociólogo José Cláudio Souza Alves, resume bem como as milícias estão enraizadas nas estruturas legais de poder. Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), ele estuda o tema há 26 anos e foi um dos convidados a discutir a questão.

Para Alves, as milícias estão aprofundando seu viés econômico. Se, no passado, as fontes de renda desses grupos eram o gás de cozinha, o transporte alternativo e as ligações clandestinas de TV a cabo, hoje o lucro se ampliou e vem também da venda de cigarros contrabandeados, terrenos loteados de forma ilegal e apartamentos construídos irregularmente, para citar só alguns exemplos. Em muitas áreas, a proibição do livre-comércio acaba possibilitando lucros maiores para a milícia.

Também presente no debate, Victoria Amália Sulocki, professora da PUC-Rio, considera as regiões tomadas pelas milícias como áreas em guerra. “São áreas ocupadas. A geopolítica é de guerra. E aí o negócio é mais lucrativo”, opinou. “Se você vende ilicitamente, você vende muito mais caro. Se o botijão de gás custa R$ 25, lá [na área tomada pela milícia] sai a R$ 50, o dobro”, exemplificou.

“Só não vendem o ar porque o ar não é comercializado”, disse Alves, que lembra que todo esse lucro garante pagamento de R$ 750 por semana para um miliciano, além de percentual sobre o trabalho.

Outro exemplo da fonte dos dividendos ilegais vem da Praça Seca, outra região na Zona Oeste da cidade. Lá, os milicianos emitem boletos bancários, que podem até ser parcelados, em troca de segurança na região. “Essas organizações estão dentro do Estado. E por isso é tão difícil que elas sejam combatidas”, opinou Alcides da Fonseca Neto, desembargador que conduziu o debate.

Empresários ilegais

Já aposentado, Cláudio Ferraz trabalhou como chefe da polícia civil do Rio de Janeiro e da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco). Para ele, também presente no debate, as milícias podem ser chamadas de empresas ilegais.

“Toda organização criminosa é voltada para o lucro e se estabelece por meio da corrupção”, explicou. Ferraz comparou as milícias às organizações mafiosas da Itália e lembrou que elas já foram consideradas de maneira diferente. “Eram vistas como um mal menor”, recordou. “A milícia se confundiu com um poder ordenador”, completou a jornalista Flávia Oliveira, também participante da discussão.

Onze anos depois

Sessão plenária na Alerj: CPI das Milícias, em 2008, prendeu 266 pessoas, incluindo 7 políticos.| Foto: Octacilio Barbosa (Divulgação / Alerj)

Líder da CPI das Milícias (2008) que prendeu 266 pessoas, incluindo 7 políticos, o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) também participou do fórum: “Esse é um debate sobre democracia e concepção de cidade”.

Para ele, também pesa o lado econômico ao tratar do assunto. “Crime é grana. Milícia é grana e poder”, definiu. Ele recordou que, na época da CPI, o lucro das milícias com transporte alternativo era enorme. “Só com o domínio das vans o faturamento era de R$ 6 milhões por mês.”

Lucro a qualquer custo

O contrabando de cigarros já é a segunda atividade mais lucrativa das milícias. Apenas uma milícia, que atua na Baixada Fluminense, obtém um faturamento de cerca de R$ 1,5 milhão por mês com o produto, segundo a Polícia Civil do Rio de Janeiro. E isso tudo em um cenário preocupante.

De acordo com estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco) em parceria com o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre), a informalidade movimentou, em 2018, R$ 1,173 trilhão. Um eixo expressivo da informalidade é o mercado ilegal, que tem no contrabando e descaminho de produtos uma importante participação (o mercado ilegal gerou perdas de R$ 193 bilhões no ano passado, conforme dados apresentados pelo Fórum Nacional Contra a Pirataria – FNCP).

No caso da milícia, um mercado que atua em diferentes áreas: taxas de pesca, consultas médicas e até seguros de carro. Um exemplo disso é uma investigação recente da polícia, que busca descobrir quem está por trás de um aplicativo similar ao Uber que está sendo usado por moradores de Rio das Pedras, bairro tomado pela milícia.

Os dois prédios que desabaram em Muzema, comunidade carioca dominada pela milícia. Imagem: Reprodução/TV Globo.

Desejo de lucro a qualquer custo, impunidade e falta de fiscalização podem terminar em tragédia. Em abril, dois prédios desabaram na Muzema, comunidade da Zona Oeste do Rio, e deixaram cinco mortos. Os edifícios, irregulares, ficavam em uma área dominada pela milícia. “Já estão fazendo novos prédios”, denunciou Fonseca Neto.

Soluções

E por onde começar? Para Ferraz, não basta combater o crime, é preciso buscar a destruição de toda a estrutura. “As organizações criminosas são complexas e exigem solução interdisciplinar.”

Para Freixo, a solução também é interdisciplinar: “Só, a polícia não resolve o problema da milícia”. Ele defendeu que o foco das ações que combatem o crime, voltado para onde há conflito, está errado.

“Quanto mais é organizado o crime, menos conflito ele tem”. Mais de uma década depois, ele frisou que as propostas apresentadas no relatório da CPI para o enfrentamento das milícias não foram levadas adiante.

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