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Livro de Samuel Gregg busca explicar como a cisão entre fé e razão abalou as bases da Civilização Ocidental e o que pode ser feito para restaurá-la.
Livro de Samuel Gregg busca explicar como a cisão entre fé e razão abalou as bases da Civilização Ocidental e o que pode ser feito para restaurá-la.| Foto: Pixabay

Alguma coisa está errada. Há anos, nomes importantes têm dito que a Civilização Ocidental está em decadência. Mas, se a Civilização Ocidental está afundando, o que a mantinha com a cabeça fora d’água antes? Alguns dizem que o Iluminismo está sob ataque e que estamos testemunhando o fim da racionalidade humana — por meio do ataque à fé que rejeita a modernidade e o Iluminismo — ou pelo ressurgimento de tendências insulares, tribais e violentas naturais aos seres humanos e que caracterizam boa parte da história humana.

Outros veem o Iluminismo — sua rejeição da fé religiosa ou da filosofia clássica, antiga e medieval — como o problema. A solução (ou uma parte fundamental dela) é a rejeição da modernidade. Devemos substituir Hobbes, Locke e Madison por Aristóteles, Tomás de Aquino e talvez Wendell Berry. Nos dois casos, há uma profunda dicotomia: Iluminismo ou fé religiosa.

No livro Reason, Faith, and the Struggle for Western Civilization [Razão, fé e a luta pela civilização ocidental], Samuel Gregg nos oferece uma narrativa diferente dos nossos males e do futuro. A fé e a razão são pilares-gêmeos da Civilização Ocidental, argumenta Gregg, e elas começaram a ser atacados na baixa Idade Média. A situação do Ocidente hoje é produto da patologia da fé e da razão que estão afastando esses pilares.

Gregg começa sua argumentação com o famoso discurso de Regensburg do Papa Bento XVI. Acho que é melhor começar por isso também, embora eu queria dar destaque a um raciocínio que Gregg mantém na surdina, a fim de ajudar a situar seu argumento. Bento XVI descreve os problemas de relação entre fé e razão como consequência da deselenização, que começa com a rejeição reformista da escolástica medieval.

Às vésperas da Reforma, antes da publicação de suas 'Noventa e Cinco Teses', Martinho Lutero escreveu “Disputa contra a Teologia Escolástica”, no qual ele dizia que “praticamente toda a Ética de Aristóteles é a pior inimiga da Graça”. De acordo com Lutero, o relato aristotélico da felicidade humana contradiz a doutrina cristã. Consequentemente, a única forma de alguém “se tornar um teólogo” é “sem Aristóteles”: “Aristóteles está para a teologia assim como a escuridão está para a luz”.

Respondendo ao ataque de Bento XVI à deselenização, os defensores de Lutero talvez nos dissessem que a visão de Lutero sobre a relação entre o cristianismo e filosofia grega é complexa. Afinal, em seu Disputa de Heidelberg (1518), Lutero baseia sua rejeição a Aristóteles numa afirmação sobre Platão: “Aristóteles erra ao encontrar defeitos e desprezar as ideias de Platão que (...) são melhores do que as dele”. “A ordem matemática das coisas”, acrescenta, “é inteligentemente mantida por Pitágoras, mas mais inteligente é a interação de ideias mantida por Platão”. Pode-se pensar que Lutero está defendendo o platonismo augustiniano contra o aristotelismo escolástico medieval.

Mas – eu diria – Lutero também defendia um voluntarismo metaético radical de acordo com o qual a vontade onipotente de Deus constituirá a medida do justo e do injusto, do certo e do errado. Em Sobre o Servo Arbítrio, Lutero diz “Deus é Ele cuja vontade não encontra base ou motivo contrários; porque nada está em seu nível ou acima dela, e ela é em si a medida de todas as coisas (...) O que Deus quero é certo não porque Ele pode ou é levado a querer; ao contrário, o que acontece deve ser o certo, por que assim Ele o deseja”.

Essa rejeição da síntese tomista abriu caminho para a afirmação do nominalismo a respeito de aspectos universais e do advento da filosofia mecanicista no século seguinte. Assim, certos reformistas aceitam a via moderna, que usa Ockham como fonte, servindo como base para o que alguns estudiosos chamam de reviravolta moderna – que, dizem, culminou com o Iluminismo e o triunfo da razão sobre a fé.

De acordo com Gregg, contudo, o problema com certas correntes modernas (aqueles que reduzem o que podemos saber à produção da ciência quantitativa ou empirismo ou às opiniões de John Stuart Mill) não é a ênfase na razão ou racionalidade, e sim na divisão do cristianismo. Na verdade, enquanto a reviravolta moderna rejeitou a síntese cristã (Gregg defende que isso não aconteceu na sua totalidade), a racionalidade foi substituída por fideísmos seculares que rejeitam qualquer relato coerente sobre o Cosmos e a vida humana.

Como o Ocidente surgiu

De acordo com Gregg, a Civilização Ocidental foi concebida como o casamento entre Jerusalém e Atenas. À famosa questão retórica tertuliana “o que Atenas tem a ver com Jerusalém”, Gregg responde: “tudo”. Sua resposta via contra o argumento tertuliano da fé contra a filosofia clássica, contra aqueles que hoje se veem como defensores da ciência contra a religião e contra a afirmação esotérica de Leo Strauss, que vê uma tensão mutuamente frutífera, mas irredutível e permanente entre Atenas e Jerusalém. O cristianismo significava a adoração simultânea da fé e da razão.

Contra os que veem a como algo que veio de Jerusalém e a razão como algo que veio apenas de Atenas, Gregg defende que a síntese entre fé e razão ocorreu primeiro no judaísmo antigo. De acordo com a argumentação de Gregg, o judaísmo desdivinizou a natureza, rejeitando a ideia de que reis e governantes eram divinos. Ao contrário das religiões que cercavam Israel, o judaísmo também via o Cosmos como uma ordem criada e inteligível, e não como caos, e ensinava que o mundo material que Deus criou para a Humanidade é bom, não mau. Inspirado por Claude Tresmontant, Gregg escreve: “a liberação da razão humana em relação à mitologia e ao culto da natureza promovida pelos judeus promoveu uma das eras de esclarecimento mais poderosas da Humanidade”. Por fim, o judaísmo reafirmou o livre-arbítrio humano, que defende que os seres humanos são moralmente responsáveis por suas ações.

As contribuições de Atenas para o pensamento humano não podem ser desprezadas. Mas, como observa Gregg, certos obstáculos impediram o desenvolvimento completo do racionalismo grego, entre eles a falta de um conceito de livre-arbítrio, a influência dos céticos gregos que achavam que a mente humana não podia (em geral) alcançar a verdade real das coisas e a religião grega. A religião grega propunha um Universo cheio de divindades irracionais, o que contrastava com a racionalidade do Cosmos que filósofos como Pitágoras e Aristóteles ensinavam. A filosofia grega contrariava os deuses do Monte Olimpo retratados por Hesíodo e Homero.

Concordando com Bento XVI, Gregg ressalta que o encontro da religião judaica com o pensamento grego é anterior ao cristianismo. Judeus educados da diáspora, como Paulo de Tarso, “eram fluentes no pensamento grego”. O filósofo judeu Filo “transitava à vontade entre os mundos helênico e judeu”. Ainda assim, o mundo romano helenizado e o judaísmo continuaram separados. Os romanos e gregos viam os judeus como bárbaros, somente “porque eles não eram romanos nem gregos”. O cristianismo disponibilizou o Deus de Abraão a todos (sem relação com a conversão ao judaísmo e a realização de ritos judaicos), ao mesmo tempo em que se apropriou, adaptou e transformou as principais ideias da filosofia grega. A revolução cristã foi uma síntese da razão e Revelação – impulsiona pela Revelação em si.

A revolução cristã, de acordo com Gregg, “enfatizou três ideias (...) influentes no desenvolvimento da cultura Ocidental”. Primeiro, o cristianismo enfatizou que a razão divina – encarnada em Cristo – criou o mundo. Depois, o cristianismo enfatizou que todos os seres humanos são capazes de conhecer a Verdade, incluindo a verdade moral. A narrativa cristã do conhecimento moral universal que São Paulo descreve em Romanos 2:13–15 expressava “uma afirmação radical da igualdade de todos (...). Todos são completamente humanos e têm responsabilidades [morais] concretas”. Em terceiro lugar, a revolução cristã enfatizava a liberdade. A diferenciação cristã entre o que pertence a Deus e o que pertence a César se traduzia numa limitação do governo civil oriunda da lei divina. A defesa que Cristo faz do livre-arbítrio – contida na afirmação de que “as pessoas eram livres para segui-lo ou não” – denota um limite sobre a autoridade de qualquer pessoa de dizer às outras o que fazer. O cristianismo via a liberdade como um bem que os humanos têm para escolherem a verdade.

Gregg discute a síntese de Justin Martyr do “monoteísmo bíblico” e da “filosofia grega” como “a busca pelas bases últimas da realidade” e a afirmação de Clemente de Alexandria do cristianismo como “a verdadeira filosofia”, antes de recorrer a Alberto Magno, Tomás de Aquino e a alta Idade Média. “Em nenhuma outra cultura”, escreve ele, “essa integração entre fé e razão foi alcançada por tanto tempo”. O período medieval criou a universidade não apenas para a educação do clérigo, mas também, diz Gregg — inspirado por Bento XVI — para a busca da verdade em si — na Revelação e por meio da razão. Essa busca se baseava na convicção de que Deus não é irracional, e sim “Razão criativa”. A “busca pela razão” cristã promovia o estudo “não apenas da teologia, mas também de várias outras disciplinas”. A revolução cristã não deu origem a uma era que valorizava a fé no lugar da razão. Ela deu origem a uma era que via o mundo como “um lugar caracterizado pela ordem que a mente humana é capaz de compreender” e um mundo que “merece estudo” simplesmente “porque é obra de Deus”.

Como tudo se revelou

Certas correntes medievais ameaçaram essa síntese. Os franciscanos tendiam a rejeitar o pensamento grego. E o voluntarismo prejudicava a união entre fé e razão ao tornar o bem e o mal arbitrários. Aqui Gregg menciona John Duns Scotus. Ele também poderia ter mencionado Guilherme de Ockham, que radicalizou o poder absoluto de Deus e defendia que Deus pode fazer qualquer coisa, exceto burlar a lei da não-contradição e sua própria não-existência.

Algumas pessoas veem o Iluminismo como algo em contradição com o cristianismo clássico. Gregg, contudo, rejeita acertadamente a ideia de um Iluminismo monolítico que só defendia a primazia da razão e relegava a fé ao reino da superstição. Isaac Newton talvez seja o mais importante pensador do Iluminismo. E ainda assim ele escreveu seu Principia Mathematica para “refutar o que ele considerava suposições materialistas que embasavam a teoria dos movimentos planetários propostas por (...) René Descartes”. Apesar de ser heterodoxo em suas convicções religiosas, Newton achava que o movimento dos planetas e, na verdade, o Cosmos como um todo era governado pela providência divina e causalidade. Alguns pensadores iluministas consideravam mesmo a religião mera superstição. (Voltaire, Frederico, o Grande, da Prússia) ou defendiam o ceticismo (David Hume), mas outros defendiam a união entre fé religiosa e razão (Johannes Kepler, Robert Boyle, Thomas Reid). Gregg conclui que os defensores dos pilares-gêmeos da Civilização Ocidental deveriam adotar o pensamento iluminista em vez de rejeitá-lo a priori.

Sendo claro, alguns teóricos modernos concordavam com alguns reformistas que reafirmaram a metafísica nominalista e a metaética voluntarista que subordinavam o bem e o mal à vontade divina onipotente e arbitrária. Thomas Hobbes e Samuel von Pufendorf são herdeiros da narrativa voluntarista de Lutero (e Ockham) do bem e do mal. Outros personagens iluministas, contudo, enfatizavam a primazia da bondade divina. Assim, observa Gregg, Moses Mendelssohn “considerava a ênfase na bondade divina como sua característica fundamental como a recuperação de ‘uma ideia fundamental do judaísmo bíblico e rabínico contra o paganismo’”. Neste sentido, acrescentaria que os fundadores norte-americanos “modernos” baseavam expressamente a virtude e as obrigações morais humanas na bondade divina, rejeitando, assim, a subordinação de Lutero e Ockham da bondade à vontade onipotente.

Outras ideias iluministas estavam completamente em contradição com a fé cristã, entre elas a ideia de que os seres humanos podem reconstruir a natureza humana ou a ideia reducionista de que a única forma de saber algo é por meio do método científico. Aliás, como diz Gregg, as duas ideias são irracionais. A primeira – a de que não existe uma natureza humana perene – abre “caminho para a tirania”. A segunda — a de que o único conhecimento que podemos obter é o adquirido por meio do método científico – e em si uma ideia que não está sujeita à prova científica. É uma proposição filosófica. Na verdade, como argumenta Gregg, o método científico depende de afirmações filosóficas anteriores necessárias para que o método científico seja justificado. O cientificismo, em última análise, subverte a razão em si.

Além disso, com Henri de Lubac, Gregg diz que certas ideologias seculares influentes que se apresentam como produtos da racionalidade e da ciência nublam o escopo da razão e levam ao fideísmo. Apesar de ser considerado científico, Karl Marx ainda assim “considerava a capacidade da mente humana de alcançar a verdade extremamente limitada”. Seu colaborador Friedrich Engels defendia que “verdades finais” são raras nas ciências naturais e que as “verdades finais” morais são “as mais esparsas” de todas. Inspirado em Eric Voegelin, Gregg escreve que “depois que Marx concluiu que questões sobre a origem humana e a natureza do bem e do mal eram fúteis, adotamos rapidamente a ideia prometiana do homem como seu próprio criador”. O impedimento da razão levou Marx e Engels a criarem uma ideologia secular com características de fé religiosa (e uma religião fideística).

Marx, Engels, Auguste Comte (em sua religião da Humanidade) e Mill (que defendia privadamente a religião de Comte, mas se esquivava de defendê-la em público) buscavam substituir as crenças religiosas tradicionais por ideias que eles consideravam racionais e científicas, como a capacidade do homem de remodelar a natureza humana. Mas a fratura da síntese entre fé e razão levou à rejeição nietzscheniana em nome da autocriação. Em A Gaia Ciência, Nietzsche escreveu “nossa fé na ciência se apoia ainda numa fé metafísica – mesmo nós, os sabedores do hoje, os antimetafísicos sem Deus, também nos inspiramos no fogo aceso pela fé milenar que também foi a fé de Platão, de que Deus é a Verdade e de que a Verdade é divina”. Nietzsche entendia que a verdade, Deus, o cristianismo, a razão e a ciência se mantêm ou caem juntos. Defender a morte de Deus, sendo coerente, significa abdicar da objetividade da verdade e da possibilidade da ciência. Além disso, a rejeição a isso vai ao encontro da defesa da vontade de dar poder aos super-homens que se libertaram das amarras da moralidade cristã e judaica e eram capazes de viver para além do bem e do mal. A rejeição da fé, pois, culmina com a rejeição da razão e da ciência.

Há uma saída?

Gregg defende que não há como voltar à era dourada. Além disso, acompanhando Bento XVI, ele se recusa a rejeitar totalmente o Iluminismo. Ao contrário, nosso tempo pede que rejeitemos a ideia de que fé e razão são incompatíveis e mutuamente excludentes. Temos de recuperar a importância da Revelação judaica e cristã. Nietzsche está certo ao dizer que a ciência e ideia cristã (e judaica) de Deus se mantêm ou caem juntas. Mas apesar de Nietzsche rejeitar ambas, a restauração da Civilização Ocidental exige a defesa de ambas. Ela também exige que se defenda um Cosmos ordeiro e inteligível criado por um Deus bom que tornou a mente humana capaz de compreender o mundo. Ao reafirmar a união entre fé e razão, quem busca restaurar a Civilização Ocidental deve se inspirar não só nas fontes clássicas, mas também nas ideias da ciência moderna e do Iluminismo que se adequam à síntese ocidental.

A restauração da Civilização Ocidental de seu rumo atual exige que se conte a história corretamente. Aqui busquei situar a argumentação de Gregg e enfatizar alguns raciocínios que reforçam seu caso excepcionalmente interessante. Uma boa análise também critica a obra. Mas realmente não tenho críticas a fazer. Concordo completamente (ou quase). Na verdade, Reason, Faith, and the Struggle for Western Civilization talvez seja a obra recente mais importante na área por corrigir outras narrativas à disposição.

Paul R. DeHart é professor de ciência política na Universidade do Texas.

© 2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês
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