Forças Armadas e policiais fazem operações na comunidade da Gardênia Azul, região de Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro| Foto:

O Exército alvejou com vários disparos e matou um cidadão inocente, sem haver qualquer indício de "injusta agressão" ou algo que fundamentasse a ação. Foi morto na frente de seus familiares pelo despreparo de quem deveria protegê-lo.

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Os jornais noticiaram o terror, mas as autoridades não se pronunciaram de prontidão. Se calaram. Ou melhor, se omitiram. Não houve passeatas populares ou qualquer tipo de mobilização pedindo por justiça, além dos próprios familiares comovidos com o choque de ver a vítima perder sua vida. Após muita pressão em diversos veículos de comunicação, uma figura pública resolveu falar:

"É possível que fatos como esse ocorram".

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Não foi o pronunciamento de Sérgio Moro, embora ele tenha dito algo semelhante sobre os resultados da ação dos militares em Guadalupe, no Rio de Janeiro, ocorrida na tarde do dia 07 e responsável por vitimar o músico Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos.

Trata-se da declaração de 2003 do ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Josias Quintal , ao se referir ao assassinato de Frederico Branco de Faria, professor de inglês de 56 anos, baleado pelas Forças Armadas no Rio de Janeiro.

Era o primeiro ano do governo Lula. À época, o presidente não se manifestou. Quem o fez foi o então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, que minimizou o episódio: "poderia ter ocorrido em qualquer barreira policial”, disse. O caso acabou sendo arquivado pelo Exército.

E nada parece ter mudado em 16 anos.

O governador do Rio de Janeiro, o ex-juiz federal Wilson Witzel, afirmou que não lhe cabe fazer "juízo de valor" sobre o episódio na Zona Norte da capital. Mas na verdade, cabe sim: caberia o espanto com tamanho absurdo, bem como manifestar tristeza, solidariedade e apoio para a família, demonstrar indignação, cobrar investigações, apurar responsabilidades, punir exemplarmente. Cabe muita coisa, mas não a omissão.

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Além de Moro, outro Ministro também se manifestou. Ocorreu em audiência na Câmara, quando Azevedo e Silva, responsável pela Defesa, categorizou o fuzilamento como “lamentável, mas aconteceu”.

A mesma preocupação não se viu no Palácio do Planalto: mesmo com bastante pressão popular para haver alguma declaração do presidente Jair Bolsonaro, Comandante em Chefe das Forças Armadas e também representante máximo dos civis, acerca da morte de Evaldo, ele demorou seis dias para fazê-lo.

Quando resolveu se pronunciar, Bolsonaro minimizou o episódio utilizando de terceirização retórica: "O Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de assassino. Houve um incidente. Houve uma morte. Lamentamos ser um cidadão trabalhador, honesto", afirmou.  

Monopólio da violência

Como definiu Max Weber, o Estado é o ente que, dentro de determinado território detém o monopólio do uso legítimo da força. Isso significa que o emprego de coerção e violência é função de exclusiva competência de certos agentes investidos de poder a partir do Estado. Contudo, qualquer indivíduo terá dificuldades em se defender em caso de uso desproporcional da força por parte do ente estatal.

Dentro desta lógica, deter o monopólio da violência não significa que o Estado deva usá-lo. A legitimidade de sua utilização se dará apenas nos casos previstos em legislação. O agente público precisa agir dentro do princípio da legalidade, tão somente naquilo que é expressamente autorizado.

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Por exemplo, quando a polícia atira contra manifestantes que não oferecem risco, ela extrapola qualquer legitimidade de sua ação. O mesmo ocorre em uma busca e apreensão quando realizada sem mandado judicial: a ação é flagrantemente ilegal. Quando são colhidas provas processuais com vícios, elas não podem ser utilizadas porque houve extrapolação da atuação por parte do Estado para obtê-las.

Ao exercer o monopólio da violência sem legitimidade, qualquer ação estatal ganha contornos de autoritarismo, não podendo ser tolerada.

Fracassos e arbitrariedades de militares no Rio de Janeiro

Desde os anos 1990, todos os presidentes acionaram as Forças Armadas para conter a violência no Rio de Janeiro. A primeira intervenção no estado data ainda de 1937, em que Vargas, após a instauração do Estado Novo, nomeou Amaral Peixoto para o cargo de interventor. Os resultados sempre foram os mesmos: frustrantes.

Ao final de 1994, por exemplo, deu-se início à Operação Rio, decretada pelo presidente Itamar Franco. Com pesquisas de opinião indicando apoio superior a 80%, dois mil homens foram às ruas, protagonizando exposições grandiosas em jornais. Contudo, nas semanas seguintes, houve diversas críticas à imposição do toque de recolher nas áreas ocupadas, queixas contra crimes de dano ao patrimônio e denúncias de tortura. A intervenção não contou com resultados significativos para o aumento da segurança pública.

Já as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) criadas em 2008 sequer tinham objetivos claramente definidos, e tampouco indicadores para monitoramento. 60,8% dos moradores de comunidades entrevistados em pesquisa relataram não perceber diferença no tocante à sensação de segurança ou se sentiam mais seguros antes da entrada da UPP.

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Por haver apelo político em ter uma guarnição do Exército andando pelas ruas e portando seus fuzis, continua-se o ciclo de pouca efetividade e muito abuso de autoridade. Mesmo com o fracasso da intervenção federal no Rio de Janeiro, segundo o Datafolha sete em cada dez moradores defendiam a prorrogação da medida.

Contrariamente ao que afirmam as figuras públicas, execuções como a de Evaldo não se tratam de casos isolados. Apenas algumas horas antes, Christian Felipe Santana, de 19 anos, foi morto com um tiro nas costas por agentes do Exército. O crime ocorreu na madrugada de sábado (06), na Baixada Fluminense.

Ao que tudo indica, a violência estatal é tolerada principalmente quando direcionada contra gente pobre e com menos recursos. A quantidade de negros mortos em operações policiais é o triplo da de brancos: levantamento do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que houve 963 mortes de brancos contra 3.240 mortes de negros, por policiais de folga ou em serviço em 2016.

Não significa que não existam criminosos em condomínios de luxo, onde as operações não ocorrem da mesma forma. O suspeito pela morte de Marielle Franco, Ronnie Lessa, apontado como traficante de armas, era morador de um condomínio de luxo na Barra.

Há casos nos quais, em vez de militares fazerem seu trabalho, prender indivíduos suspeitos e encaminhá-los às autoridades para que eles tenham resguardados o devido processo legal, se aliaram à facções para retaliarem os indivíduos. Foi o caso de Davi Wilson da Silva de 24, Wellington Gonzaga Ferreira, 19 anos, e Marcos Paulo de Campos, de 17. Em 2008 eles foram entregues por militares a traficantes de um bairro vizinho, dominado por uma facção rival a da localidade em que eles viviam. Em outras palavras, os próprios agentes do Estado desprezaram a lei que deveriam seguir. A versão dos militares é que eles os desacataram, mas testemunhas afirmam que a iniciação das agressões partiu dos militares.

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Nove dos 11 envolvidos na morte dos três jovens foram absolvidos até o momento, com os outros dois respondendo em liberdade. Os responsáveis pela morte de Frederico Branco de Faria, citado no início do texto, também nunca foram responsabilizados, pois o caso foi arquivado.

Outra face do desrespeito aos direitos humanos por parte do Estado brasileiro é a situação dos presídios. Apenas 24 das 2.771 prisões brasileiras estão em excelentes condições de infraestrutura, segundo dados do sistema Geopresídios. São 726 mil indivíduos que integram a população carcerária nacional e que estão sob tutela e responsabilidade do Estado. mas 75% dos brasileiros acreditam que os direitos humanos protegem indivíduos que não o merecem. Dentro do Estado Democrático de Direito os presos precisam responder por seus atos e infrações, mas seus direitos humanos precisam ser, igualmente, respeitados.

Diante do caos das prisões, não entanto, as autoridades costumam se omitir ou terceirizar responsabilidades. Em 2015 José Eduardo Cardozo comparou os presídios do país a masmorras medievais. O detalhe é que ele era o Ministro da Justiça do Governo Dilma à época, e afirmou como se não tivesse qualquer responsabilidade a respeito, “exigindo sensibilidade dos governantes”.

Ciclo completo de violência estatal

O ciclo completo de violência do poder público ocorreu com o catador de materiais recicláveis Luciano Macedo. Ele tentou ajudar Evaldo e sua família, em meio aos disparos, mas também foi atingido, sendo baleado no pulmão esquerdo.

Ele foi internado no Hospital Estadual Carlos Chagas e passou 11 dias internado.  Mesmo após duas decisões judiciais determinando a transferência de Luciano para instituição médica com melhor estrutura, ele acabou morrendo após cirurgia no hospital estadual.

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A advogada da família, Maria Isabel Tancredo, acusou o hospital de ignorar a decisão judicial. Seu relato mostra a violência estatal pela qual ele foi submetido, desde o início:

“Foi baleado pelo Exército, foi levado para hospital estadual sem condições de realizar todos os procedimentos necessários e foi impedido de ser atendido em hospital municipal por falta de vagas”.

A Secretaria de Saúde, por outro lado, afirma que “todos os esforços foram feitos para reverter o quadro“, porém não foi possível transferir o paciente devido a seu estado gravíssimo.

Seja governo de esquerda ou de direita, nada parece ter mudado em 16 anos.

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