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A sempre atual obra de George Orwell e a revolta do indivíduo contra o totalitarismo
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“The ‘democratic vistas’ have ended in barbed wire”

(As ‘visões democráticas’ resultaram no arame farpado)

Como um hábil estrategista, George Orwell deixou pistas das suas charadas cristalinas e máscaras transparentes. Suas armas sempre ficaram às escondidas; porém, o seu ataque surpresa tomou-nos de tal forma que, com certeza, todos os que sobreviveram ao nosso “apocalipse político” foram contaminados pela paranoia cômica que ele nos deu de presente.

As guerras tiveram uma importância crucial para qualquer pessoa da geração de Eric Arthur Blair – o verdadeiro nome de George Orwell, nascido em 1903, na Índia, mas oriundo de tradicional família inglesa. Ele passou a infância e adolescência sob a sombra da Primeira Guerra Mundial, amadureceu o seu pensamento sobre a realidade durante a Guerra Civil Espanhola e morreu logo após a Segunda Guerra Mundial.

Ainda que tenha observado e participado ativamente dos três eventos mais importantes da primeira metade do século XX, Orwell seguiu sua rota de escritor como um destemido solitário. Apesar de ter sido vendedor de livros, lavador de pratos e professor, ele mesmo confessou que seu único fim seria dedicado ao ato de escrever. Ele queria ser o Jonathan Swift do seu tempo e tornar “a escrita política uma espécie de arte”. Por isso, após uma década literalmente mendigando em Londres e Paris (época retratada em seu livro de estreia, intitulado justamente Down and out in Paris and London [À míngua em Paris e Londres], de 1933), Orwell escolheu o jornalismo para iniciar o seu projeto literário.

Colunista no jornal de esquerda “The Tribune”, ele esboçou em seus ensaios e artigos ideias políticas que desembocariam em um socialismo peculiar, além do estilo claro, preciso e cristalino que se transformou numa espécie de escola para futuros jornalistas. Este estilo não era desleixado ou maneirista; era construído com uma consciência estética rigorosa e – por que não? – supremo engenho. Sua função: ser o mais acessível possível ao “homem comum” (Orwell adorava essa expressão porque afirmava o seu ódio contra as abstrações teóricas). Ele queria atingir o homem comum não de maneira panfletária ou dogmática, e sim instigá-lo a refletir sobre sua realidade e agir de forma independente.

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Entretanto, Orwell desejava algo mais do que colunas semanais – apesar de os seus ensaios serem atemporais e também serem uma aula de como polemizar sem recorrer a argumentos desconexos ou sentenças inconsequentes. Ele já havia publicado três livros que venderam absolutamente nada. Escrevia romances que eram instáveis na forma e no conteúdo, o que o levava a crer que o pretenso Swift da sua época poderia ir por água abaixo.

Mas, em 1937, quando lutou na Guerra Civil Espanhola ao lado de um partido de tendência trotskista e foi atingido por um tiro no pescoço (que quase o matou), Orwell percebeu o absurdo daquelas ideologias então dominantes. Elas impediam o indivíduo de ter a sua liberdade de pensamento assegurada. Toda aquela loucura em torno de um ideal, Orwell concluiu, seria aprimorada quantas vezes fosse necessário e se transformaria em um monstro descontrolado.

A experiência traumática na Espanha foi o assunto de Homage to Catalonia [Homenagem à Catalunha] (1939), o ponto de virada na carreira literária de George Orwell e, possivelmente, uma das maiores reportagens já escritas. Neste livro, encontram-se depurados tanto o pensamento peculiar que insere Orwell na escola dos grandes humanistas (a mesma de Montaigne, Edmund Wilson e – finalmente – Jonathan Swift) quanto o simples estilo de escrever que se aperfeiçoaria nos dois romances satíricos posteriores que lhe dariam a glória.

Com o início da Segunda Guerra Mundial, Orwell foi correspondente internacional de vários jornais trabalhistas ingleses. Nesta época, manifestaram-se os primeiros sinais graves de uma tuberculose contraída nos tempos de penúria. Mas Orwell continuou na sua odisseia de atiçar “o homem comum enfim”, realizando ao pé da letra a famosa fala de Polônio ao seu filho Laertes, dita em Hamlet: “Seja fiel a ti mesmo”.

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Desde a publicação de The Road to Wigan Pier [O caminho até Wigan Pier](uma espécie de esboço estilístico do que seria Homage to Catalonia, já que foi publicado em 1937), Orwell sentia que, além da monstruosa loucura que estava por vir, essa aberração fracassaria terrivelmente. O problema é que esse fracasso mudaria a história da civilização e afetaria diretamente a sua própria geração. O término da Segunda Guerra Mundial comprovou suas previsões. Porém, demoraria muito tempo para seus contemporâneos perceberem o que acontecia de fato no mundo.

A Revolução dos Bichos, escrito e publicado em 1945, é o primeiro livro explicitamente swiftiano de Orwell. A escrita irônica, elegante e simples; a alegoria próxima do universo infantil, mas que esconde um lado terrível da humanidade – tudo isso acobertava as intenções do seu autor ao descrever a revolução utópica – no caso, a Russa – que termina na insanidade absoluta. Contudo, Orwell sabia que deveria ir mais longe – e mais fundo – no problema. Ele era demasiadamente sutil – tão sutil que A Revolução dos Bichos seria incluído, no futuro, na lista de livros escolares tanto na Cuba de Fidel Castro como no Paraguai de Augusto Strossner (que, por sua vez, era identificado pelos oposicionistas como “Napoleão, o Porco”). Ele apenas precisava atingir o ápice do engenho e, com isso, do estilo.

Se o ambiente de A Revolução dos Bichos se limita apenas a uma pequena fazenda, o de 1984 se espalha pelo mundo. A sensação que o mais indignado dos livros dá ao leitor é a de que o planeta inteiro está numa situação semelhante à do superestado ficcional batizado de Oceania. Aliás, era o que acontecia justamente em 1948, ano em que Orwell escreveu o romance (e eis aí o seu primeiro artifício: o título do livro é o ano em que foi concebido – os dois últimos dígitos foram apenas invertidos). Desta vez, porém, não há animais – somente um solitário Winston Smith que, graças a um sarcasmo orwelliano, possui o nome do famoso primeiro-ministro britânico que lutou contra os nazistas, somado ao sobrenome mais comum na língua inglesa (“Smith” seria o mesmo “Silva” em português).

Este pobre-diabo começará sua revolta interior contra o onipresente governo do Grande Irmão por meio de um caderno de “folhas brancas como creme” e uma simples caneta-tinteiro. Durante o transcorrer desta história, Winston será um tolo idealista, um tolo apaixonado e um tolo torturado – mas um tolo que, surpreendentemente, quer pensar por si mesmo. Orwell sente tamanha compaixão pelo seu anti-herói que, quando Winston acaba de fazer amor com Julia, o romancista escreve que aquilo foi, sim, um “ato político” – e essa expressão, quando se trata de George Orwell, é o mesmo que um atestado de nobreza.

A descoberta – ou melhor, a redescoberta – da linguagem por Winston Smith ao iniciar seu diário é a abertura de 1984 – e é também o eixo central de toda a obra orwelliana. Antes de ser um jornalista político ou um polemista combativo, ele era um estilista. A literatura lhe custava muito caro. E Orwell sabia que ela se faz somente com engenho. Por isso, é perfeitamente compreensível que muitos ainda acreditem que A Revolução dos Bichos seja uma “fábula infantil e educadora para aprimorar a moral das crianças” e que 1984 seja “o livro sombrio, sisudo e pessimista” que os intelectuais apregoam por aí. Nada mais errado.

Humor surpreendente

Anthony Burgess foi, talvez, o único escritor que percebeu – sempre com sua verve desmistificadora – a verdadeira intenção de George Orwell em 1984. No livro 1985 (a ironia do título é óbvia), o autor de Laranja Mecânica não hesita em afirmar que o romance dos romances apocalípticos seria – pasmem! – um romance cômico. Claro que seu humor não é escrachado, do tipo que se gargalha com prazer. Ele é tragicômico, macabro, muitas vezes imperceptível – mas isso muda totalmente o sentido da obra.

Assim, ficam mais compreensíveis certas passagens insólitas, como o corte de 25 gramas na ração de chocolate (?!) ou o momento em que Winston Smith é repreendido por uma mulher teutônica por meio da famosa “teletela” enquanto pratica um exercício físico matutino. Entretanto, ao concluirmos que o livro é cômico, isto não torna as coisas mais fáceis de lidar com um assunto tão indigesto. Pelo contrário: trata-se de mais um ponto que comprova o engenho orwelliano.

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Orwell gostava de confundir os leitores, misturando ficção e realidade em uma linha tênue e indefinida. Isto é uma das regras da literatura – a de contar mentiras com um fundo de verdade. Gabriel Garcia Márquez afirmou uma vez que “um único fato verdadeiro dá legitimidade ao trabalho ficcional”; Burgess repete a mesma coisa com outras palavras: “o romance é feito com as experiências do cotidiano”. Ora, e 1984? Não é uma ficção científica? O que esse livro deve ter de verdadeiro, de cotidiano? Vamos nos lembrar do notório detalhe dos dois últimos dígitos invertidos do título 1984. Não podemos também nos esquecer de um velho lema satírico dos tempos de Gil Vicente: “ridendo castigat morens” – é rindo que se consertam os costumes. Orwell apenas seguiu a etiqueta do bom satirista: engenho, sutileza e uma atenção aguçada ao que ocorre no mundo.

Em 1948, George Orwell já era um escritor famoso, graças ao sucesso de A Revolução dos Bichos, e conhecia plenamente o que havia acontecido com os expurgos stalinistas. Somado a isto, a Segunda Guerra Mundial exibiu a sofisticação de um governo insano como o nazismo, considerado “especialista” em tecnologias avançadas nas áreas do armamento industrial, transportes e comunicações. Perguntar se o governo da Oceania é uma crítica ao stalinismo ou ao nazismo é se desviar do assunto principal do livro – a descrição precisa de que as “visões democráticas” que moldaram a perspectiva da geração de Orwell, em seus tempos de combatente na Guerra Civil Espanhola, terminaram em arame farpado. Com isso em mente, um bom leitor notará que a Oceania é nada mais, nada menos que uma mistura satírica desses dois sistemas totalitários – nos quais “Guerra é Paz” e “Ignorância é Força” são slogans plagiados de Goebells e a descrição do Grande Irmão – “aquele bigodudo” – não passa de um pastiche de Stalin.

Enfim, o ano de 1984 é 1948 pelo avesso – e a tal da “ficção científica apocalíptica” de que tanto falam não passa de um romance sobre a civilização pós-Segunda Guerra Mundial. Contudo, o livro não corre o menor perigo de estar datado – e por quê? Porque o tema central de 1984 (e de toda a obra de George Orwell) é também um aviso a todos nós: defenda suas liberdades, seja a de dizer que dois mais dois são quatro quando todos afirmam ser cinco, seja a de escrever um diário em uma língua arcaica – ou ter mais uma chance para amar.

Pois, segundo a perspectiva de Orwell, os grandes responsáveis pelos maiores obstáculos à causa da liberdade individual eram os seus colegas de profissão – os intelectuais. Orwell os desprezava por completo. Segundo Joseph Epstein, em um texto memorável sobre o criador do Grande Irmão, “tornar-se um intelectual era, para ele, tornar-se alguém que era um hipócrita, um estúpido, um sujeito desumanamente corrupto e espiritualmente falido”. Não à toa, Orwell afirmou uma vez que “apenas um homem ‘educado’, em especial com toques literários, sabe ser intolerante com os outros”. Assim como seu querido Shakespeare – que ele defendeu soberbamente de um ataque furioso feito por ninguém menos que Léon Tolstói, o exemplo maior do tipo afetado que ele combatia em seus ensaios e livros –, Orwell não era um “filósofo ou um cientista”, mas tinha curiosidade suficiente para amar “a superfície da terra e o processo da vida”. E a maior prova disso é como seus romances – mal interpretados justamente pelos intelectuais que os cooptaram para a posteridade – nos fazem gargalhar, mesmo que o riso seja um tanto amargo.

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Portanto, sua sátira é trágica, mas estranhamente alegre. Na cena final de 1984, em que Winston Smith “descobre” seu amor pelo Grande Irmão enquanto está paralisado em um bar decadente, apesar de todo o derrotismo há uma frase essencial: “Havia logrado a vitória sobre si mesmo”. O sentido é claramente ambíguo e irônico, como deve ser toda a boa sátira que se preze – e aqui voltamos ao engenho de um otimista disfarçado. Winston descobriu tudo isso completamente lobotomizado; porém, ele tentou, sozinho, praticar essa descoberta – e só isso já vale a sua existência pessoal, assim como a existência de qualquer ser humano que defenda sua liberdade interior, não importa a época ou a condição. O importante é o homem – o centro, o vértice do furacão, o início da espiral, o ápice do engenho do estilo.

Ironia póstuma

George Orwell morreu em 1950 da tuberculose que o afligia há muito tempo, aos 46 anos de idade. Sua fama literária foi louvada em inúmeros obituários e até hoje enciclopédias lhe reservam longos verbetes ou, pelo menos, algumas linhas. Mas, como todo bom satirista, ele nos reservou uma surpresa para o final, descoberta em 1997: antes de falecer, um Orwell doente e apaixonado por uma espiã britânica, Celia Kirwan, escreveu uma lista de nomes de colegas que teriam relações com o Partido Comunista, com o intuito de informar o Departamento de Pesquisa de Informação quem eram os verdadeiros inimigos da Inglaterra durante o início da Guerra Fria.

As pessoas denunciadas eram do naipe de Orson Welles, Bernard Shaw e Charles Chaplin, na época os sujeitos mais improváveis do mundo de terem qualquer conexão com o “bigodudo”. Quando essa notícia foi divulgada, inúmeros fãs de Orwell – inclusive o escriba que dedicou algumas horas para escrever este pequeno ensaio – ficaram surpresos pelo fato de o homem que produziu uma das poucas obras realmente coerentes do século XX ser, afinal de contas, um grande dedo-duro. Porém, como no conto “Tema do Traidor e do Herói”, de Jorge Luis Borges, talvez tudo isto estivesse planejado de alguma forma que desconhecemos; talvez tenha sido o engenho da vida o que nos deu a reviravolta final – a do escritor possuído pela própria paranoia que criou em sua literatura e assim contaminou o resto do globo terrestre. E é esse inusitado presente que nos faz, sem dúvida, rir com gosto – enquanto nossos corpos são arranhados no arame farpado do nosso estado de exceção disfarçado de democracia.

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015).

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