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Viver na ignorância jamais será uma benção, pois equivale a desistir da própria liberdade cognitiva por medo de ser excluído dos projetos dos outros.
Viver na ignorância jamais será uma benção, pois equivale a desistir da própria liberdade cognitiva por medo de ser excluído dos projetos dos outros.| Foto: Bigstock

A expressão “Conhece a si mesmo” foi uma inscrição na entrada do Oráculo de Delfos, dedicado a Apolo (o deus da luz e da verdade) há mais de 2.500 anos. Por meio de suas sacerdotisas, esse oráculo prometia fazer previsões sobre o presente e o futuro. Essa expressão veio a tornar-se sinônima da figura emblemática de Sócrates (479-399 a.C.), que julgava nada saber e atormentava os seus interlocutores com questões difíceis sobre a natureza das virtudes. É também devido a Sócrates que essa máxima de busca pelo autoconhecimento veio a ser associada à atividade filosófica.

Essa máxima encontra ressonância na visão da filosofia como análise gramatical proposta por Peter Strawson (1919-2006). Strawson manteve que, assim como temos um domínio funcional da nossa língua nativa, mesmo sem conhecer de modo explícito as regras da gramática que governam a nossa língua, também podemos ter um domínio prático do equipamento conceitual, mesmo sem ter um entendimento explícito dos princípios que governam a utilização desse equipamento. Portanto, assim como o gramático produz uma análise sistemática das regras gramaticais que seguimos em nossa prática cotidiana, também o filósofo fornece uma análise sistemática da estrutura conceitual geral que dominamos implicitamente na prática cotidiana.

Também movido pela busca de autoconhecimento, Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ofereceu uma visão inteiramente distinta, na qual a filosofia é interpretada como uma atividade terapêutica de clarificação do pensamento que visa curar desarranjos mentais. Ao levantar questões filosóficas, começamos a questionar coisas óbvias e fazer perguntas que parecem não ter respostas porque permitimos que as palavras se desliguem do seu uso corrente ou dos interesses teóricos que constituem o seu significado. Para acabar com esses problemas ilusórios (os desarranjos mentais), devemos nos voltar para o emprego efetivo das palavras e dos conceitos em questão. Desse modo, se o projeto de autoconhecimento filosófico fosse bem implementado, levaria ao fim da própria filosofia.

Penso que tanto a visão de Strawson quanto a de Wittgenstein são equivocadas. A noção de que a filosofia envolve uma tentativa de aprofundamento ou autoconhecimento das nossas crenças parte da pressuposição falsa de que temos todas as crenças relevantes. Na realidade, as crenças sobre a realidade que temos antes do exercício teórico são poucas e rudimentares. Pensar que a filosofia é um empreendimento de autoconhecimento e elucidação dessas crenças implicaria que bastaria extrair ou deduzir os fundamentos que já estariam implícitos em nossos sistemas de crença. Essa suposição passa a falsa impressão de que a análise conceitual filosófica é um procedimento de análise corriqueiro, quase mecânico.

Porquice epistêmica

Isso é falso. Um sistema de crenças que não passou pelo crivo do exercício filosófico não tem crenças sofisticadas e fundamentadas sobre a estrutura mais geral da realidade (metafísica), o nosso conhecimento acerca dessa realidade (epistemologia), a natureza das inferências (lógica), o que é correto fazer (ética) ou como devemos organizar a sociedade (filosofia política). A concepção que se segue dessa crítica é a da filosofia como uma atividade criadora de crenças. O filósofo aumenta o número de nossas crenças, pois nos faz pensar sobre questões que eram tratadas de maneira irrefletida, e tenta fundamentá-las com argumentos e rigor conceitual.

O filósofo não é um agente epistêmico decadente e destruidor de crenças, que duvida de tudo e em nada acredita, mas um construtor que fornece alicerces onde antes só havia achismo e atitudes irrefletidas. Assim, o imperativo da filosofia não é capturado pela visão do filósofo entendido como gramático conceitual, terapeuta linguístico, ou da prescrição de conhecer a si mesmo, mas por uma máxima diferente: “Crie e aprimore a si mesmo”. Ou para ser mais preciso: “Crie e aprimore o seu sistema de crenças”.

Isso implica que a opinião mais aceita entre pessoas que têm antipatia pela filosofia tem de ser virada de ponta-cabeça. Os filósofos não só aspiram ter mais crenças, como buscam por crenças melhores. A prática da filosofia envolve uma aspiração por perfeccionismo epistêmico e excelência cognitiva. Pelo contrário, são as pessoas que alimentam antipatia pela filosofia que são contrárias ao surgimento de novas crenças e desejam impedir a construção de seu alicerce. Desse modo, a rejeição dos filósofos trata o anseio perfeccionista de embasar as próprias crenças com fundamentos sólidos como "frescura". É a convicção de que devemos alegremente nos contentar com um sistema de crenças reduzido e sem fundamento. É porquice epistêmica. Essa atitude de desleixo epistêmico na qual a justificação das crenças mais básicas é feita sem cuidado pode ser encapsulada em outra máxima: “Não crie, nem aprimore o seu sistema de crenças”.

É provável que a visão da filosofia como uma atividade destruidora de crenças seja também em alguns casos uma reação apressada movida por desconhecimento bibliográfico. De fato, as chances de que muitas das crenças que possuímos previamente ao exercício filosófico permaneçam inalteradas é pequena. Um sistema de crenças robusto e atualizado por raciocínio intenso e constante é inteiramente diferente de um sistema de crenças leigo, destreinado pela filosofia.

Em outras palavras, é o desejo de manter uma versão inicial de crenças rudimentares e sem fundamento, e o receio da atitude investigativa que leva a essa visão da filosofia como uma atividade destruidora de fundamentos. Paradoxalmente, é precisamente o medo ou desprezo pelo componente revisionista da especulação filosófica que leva à ausência de fundamentos e crenças.

Alternativas

As alternativas não poderiam ser mais diferentes. O mundo de construção deliberada de ideias exige comprometimento e profunda responsabilidade pessoal. É uma atividade de escolha consciente a partir da reflexão conceitual sobre quem devemos ser. É uma decisão que coloca a verdade e a honestidade em primeiro lugar e não as aparências ou a opinião dos outros. Ela exige valores reais e integridade. Inversamente, quem opta pelos valores de um grupo de maneira irrefletida não faz escolhas genuínas, mas apenas terceiriza de modo inconsequente o seu sistema de crenças. Essa transferência de responsabilidade reflete um completo descaso com as próprias crenças. É agir às cegas como se os seus valores mais básicos não importassem, motivado por futilidade ou interesse. É abdicar da própria autonomia epistêmica e não acreditar em coisa alguma. É endossar acriticamente o vazio de um profundo niilismo anti-intelectual.

A opção pela autodeterminação epistêmica leva a sistemas de crenças articulados e consolidados, que foram lapidados ao longo de vários anos de estudo e raciocínio. Ela requer paciência, ponderação e trabalho. É uma escolha que nos dá autenticidade e uma visão nítida da realidade. Já o descaso pelas crenças mais básicas nos torna apressados, impacientes e instintivos. Ele nos deixa inseguros e vulneráveis ao escrutínio crítico. Ele tolhe a possibilidade de escolhas alternativas e nos torna superficiais, sujeitos a acidentes históricos de nascimento e todo tipo de provincianismo epistêmico. É um descaso que parece gratuito, mas custa caro, pois nos deixa confusos no escuro da nossa própria ignorância. É a indignidade epistêmica que nos desumaniza e nos deixa desalmados.

A escolha fundamental de determinar as próprias ideias fornece um propósito de vida e nos torna realizados em um processo de aprimoramento contínuo. É um empreendimento que nos dá paz de espírito com o deleite duradouro dos prazeres intelectuais e nos mantém sempre imersos em um estado de fluxo cognitivo e novas descobertas. É uma atividade de contemplação alheia às distrações superficiais movidas por interesses mesquinhos. É uma missão que dá sentido para a vida.

A alternativa é uma vida de aflição em que precisamos procurar distrações constantes, sempre à procura da validação de outros sistemas de crença para impedir o risco iminente do autoexame. É a angústia que preenche a vida com barulho por temer o silêncio da contemplação solitária. Ela nos torna inimigos de nós mesmos e nos deixa com o receio de ter adotado um sistema de crenças postiço, que nunca teve valor ou fundamento.

Ferro & fogo

A dinâmica normativa da construção dos alicerces não é alterada pelo número de agentes epistêmicos e sua discordância. Um sistema de crenças sólido continuará a sê-lo ainda que seja idiossincrático ou inusitado, enquanto um sistema irrefletido não deixa de ser frágil ainda que tenha muitos proponentes. É a construção e o ato de querer construir o sistema de crenças que importa e faz tudo valer a pena. Se os outros discordam ou desaprovam as minhas ideias é porque possuem sistemas de crença diferentes. Eu posso mudar minhas crenças atuais e também posso abandoná-las por outras melhores. O importante é que as crenças são minhas e foram escolhidas conscientemente por mim. O que os outros pensam é um mero detalhe que não tem a menor importância no cômputo geral.

Uma política de preservação de crenças rudimentares a ferro e fogo é descabida e prepotente. Assim como não há qualquer razão para pensar que as nossas crenças mais superficiais sobre a física, a biologia ou a química são superiores ao conhecimento de ponta oferecido nessas disciplinas, também é ingênuo pensar que crenças apressadas de senso comum são melhores do que as crenças obtidas por meio de treino conceitual, leitura da bibliografia relevante e raciocínio intenso.

O amadorismo anti-intelectual que cultua o homem de ação e detesta atitudes filosóficas sofre de soberba epistêmica e presunção infundada. É desrespeitoso com uma tradição destemida de racionalidade que foi lapidada por mais de 2.700 anos e está no berço da civilização ocidental, sendo em parte constitutiva dos seus principais valores. Tem uma atitude de rebeldia subversiva que expressa ingratidão histórica, esquizofrenia ideológica e decadência cultural. É partidário de um radicalismo maligno e cúmplice da perversão dos nossos valores culturais de autonomia intelectual.

O curioso é que a terceirização do próprio sistema de crenças apenas torna o agente epistêmico ainda mais refém de ideias de filósofos cujos nomes ele desconhece. Como John Maynard Keynes sabiamente observa: “Homens práticos que acreditam ser imunes a qualquer influência intelectual, são em geral escravos de algum economista morto”. A mesma observação vale para os filósofos, que acabam por afetar de modo decisivo como vivemos por meio de agentes culturais indiretos (escritores, cineastas, jornalistas, legisladores, etc).

Ativismo judicial

Foi a reflexão de Montesquieu que consolidou a divisão dos poderes e foram as ideias de Dworkin que consolidaram as práticas de ativismo judicial. O mundo humano é cultura, e a cultura que respiramos é em parte construída com os calhamaços “que ninguém lê”, não o achismo de senso comum. Ignore-os por sua conta e risco. Se não assumir a responsabilidade pelo seu sistema de crenças, outros assumirão essa responsabilidade por você.

Por outro lado, é inegável que pode ser até mesmo perigoso que pessoas destreinadas desejem ampliar as suas crenças por meio de exercício filosófico mal feito. Isso pode causar danos profundos na sua visão de mundo. Isso é evidenciado pelo ativismo político desvairado de pessoas que ignoram noções básicas de ética e filosofia política. A única coisa pior do que a falta de nuance descarada são as convicções ideológicas de pessoas destreinadas. A prática arquitetônica epistêmica séria exige treino e dedicações consideráveis, e é improvável que qualquer pessoa que não é investida na atividade filosófica tenha as condições exigidas para solidificar as próprias crenças do modo apropriado.

O cenário do leigo com pretensões de rei filósofo é o mesmo do filósofo picareta que queima o filme da profissão. Sob o pretexto do aperfeiçoar as próprias crenças, o que ocorre em alguns casos é uma verdadeira deformação intelectual. Isso explica o curioso fenômeno de teorias obviamente tolas que só intelectuais aceitariam. Nesse caso, um agente epistêmico estaria em melhores condições se nunca tivesse lido ou pensado sobre o assunto.

Porém, a resposta para essa preocupação não é abdicar de quaisquer pretensões à dignidade epistêmica, mas observar que a cinzelação de crenças pressupõe uma técnica logicamente disciplinada, e lembrar que em toda as profissões há bons e maus profissionais. Uma pessoa que endossa teorias tolas ou repete essas ideias por oportunismo, ou foi vítima de estelionato cognitivo. Em ambos os casos se comporta como um agente epistêmico irrefletido, um antifilósofo.

A decisão existencial de escolher o próprio sistema de crenças envolve os riscos da marginalização e da incompreensão, mas a alternativa envolve se rebaixar cognitivamente e ela é simplesmente impensável. Nenhuma pessoa educada deseja ser mais ignorante, pois o uso mais elevado das faculdades mentais amplia a nossa realidade e gera prazeres intelectuais que são superiores a prazeres imediatos. Somente alguém que nunca fez o uso mais elevado e intenso das suas faculdades mentais abandonaria voluntariamente o seu emprego.

Viver na ignorância jamais será uma benção, pois equivale a desistir da própria liberdade cognitiva por medo de ser excluído dos projetos dos outros. É a fraqueza de vontade que segue o caminho mais fácil do vício de abdicar de sua autonomia cognitiva para agradar os outros. É a corrupção moral que teme optar pelo caminho mais longo e árduo da virtude de pensar por si próprio.

* Matheus Silva é filósofo.

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