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O ator e diretor Elias Andreato em apresentação virtual paga com o dinheiro público: muita pretensão e poucas visualizações.
O ator e diretor Elias Andreato em apresentação virtual paga com o dinheiro público: muita pretensão e poucas visualizações.| Foto: Reprodução/ YouTube

Em meio à crise grave e generalizada causada pelo coronavírus e pelas medidas de isolamento social necessárias para deter o avanço da doença, um grupo se destaca. Não, não me refiro aos milhões de trabalhadores que continuam suando e se expondo ao vírus para pôr produtos nas gôndolas do mercado. Nem aos médicos e enfermeiras que cuidam dos doentes, muitas vezes sem os materiais mais básicos de proteção. Falo dos artistas.

Ainda no começo da pandemia, em março, a prefeitura de São Paulo inundou as redes sociais com a notícia de que destinaria nada menos do que R$10 milhões para que os artistas daquela cidade repetissem o gesto dos italianos e se apresentassem nas janelas. Por decisão do juiz José Gomes Jardim Neto, da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, contudo, o projeto milionário teve de ser deixado de lado.

Mas a ideia de o Estado socorrer os artistas é anterior a isso. No dia 15 de março já começavam a circular notícias de que a rica Alemanha pretendia ajudar financeiramente os artistas. Mais recentemente, a capital do país, Berlim, anunciou um fundo público que pretende pagar uma generosa ajuda de 5 mil euros (R$30 mil) aos artistas que foram obrigados a interromper suas atividades durante a pandemia.

Não demorou para os artistas brasileiros também reclamarem, com razão, da queda na renda causada pelo fim dos shows, pela paralisação na gravação das novelas e pelo fechamento dos teatros e cinemas. Para eles o governo destinou a mesma ajuda dada aos trabalhadores informais de várias atividades. O auxílio emergencial para os artistas é aquele mesmo de R$600 aprovado pelo Senado.

Mas, apesar do discurso igualitário das celebridades, artista não é igual a todo mundo. Tanto é assim que, logo no começo do manifesto (!) do projeto #culturaemcasa, do governo de São Paulo, o narrador, num tom de voz melancólico, diz que o setor cultural foi um dos primeiros a sofrer com a crise. “Cerca de 650 mil profissionais [ligados à cultura] estão hoje sem renda”, continua o manifesto, escrito para justificar o projeto, orçado em R$1 milhão.

Dentre os 650 mil profissionais contemplados com a oportunidade de ganhar um cachê e ter seu trabalho exposto não há artistas de rua ou de circo, embora eles sejam usados no vídeo-manifesto. Em vez disso, o line up conta com nomes conhecidos, como o da cantora Maria Gadú, que em novembro de 2019 anunciou que iria se aposentar, da cantora Céu, do ator Fábio Porchat, do tremendão Erasmo Carlos e do ator Ailton Graça.

De acordo com a prefeitura de São Paulo, o dinheiro para financiar o projeto veio da redistribuição de recursos destinados a “projetos de difusão que foram suspensos devido à pandemia do coronavírus e que visavam os mesmos objetivos: democratizar o acesso a conteúdos culturais e gerar oportunidades para artistas e técnicos”.

Como todo projeto que se destina a “democratizar o acesso a conteúdos culturais”, o Festival #culturaemcasa não leva em conta o interesse do consumidor. Para se ter uma ideia, a live do ator Elias Andreato, disponível no Youtube, teve, até o momento em que este texto está sendo escrito, 292 visualizações.

Apesar de ser o nome de maior destaque no release do festival distribuído à imprensa, a live de Maria Gadú não foi confirmada.

Sucesso, doação e bebedeira

Enquanto iniciativas estatais como a da plataforma #culturaemcasa fracassam, artistas populares que estão tendo a renda afetada, mas que não dependem do poder público, fazem lives de sucesso, arrecadam doações – e são alvo de agências reguladoras, como o Conar.

É o caso do cantor sertanejo Gusttavo Lima. Com 5,5 milhões de acessos simultâneos, 7,5 horas de duração e patrocinado pela iniciativa privada, isto é, sem sugar os cofres públicos, a live teria arrecadado R$500 mil em doações que, uma vez convertidas em cestas básicas, foram distribuídas numa comunidade carente.

O problema, para o Conar, é que Gusttavo Lima e a Ambev, empresa por trás da iniciativa, não seguiram as regras do mercado publicitário quanto ao consumo de bebidas alcoólicas. Durante a live, que foi de fato dedicada a “todos os cachaceiros desse mundo" e que tinha como figura central um cantor de um estilo muito associado à bebedeira, Lima bebeu, disse palavrão e cantou – para o delírio dos fãs desse tipo de coisa.

Outras lives realizadas sem dinheiro público foram sucesso de audiência e de arrecadação, como as de Hungria, Leo Santana, Luccas Lucco, Xand Avião, Jorge e Mateus e Marília Mendonça.

Abismo

As lives estatais onerosas e sem público e as lives privadas que congestionam a Internet e rendem donativos expõem, mais uma vez, uma antiga divisão da chamada indústria criativa.

De um lado estão os artistas que se veem como Artistas, gênios mesmos, com as estantes cheias de troféus de prêmios desimportantes, um repertório que é estudado nas cadeiras de Letras da USP e aquela sensação de que a sociedade, por meio do Estado, tem obrigação de zelar por sua glória. Eles estão em todos os editais e não recusam um cachê oficial.

De outro estão os artistas com “a” minúsculo mesmo, mas que atraem multidões; que têm um repertório para lá de reprovável, para o qual os intelectuais torcem o nariz arrebitado; que têm esse jeito desleixado e até demagógico de agir diante de uma pandemia. E o mais importante: artistas que sabem que a sociedade não lhes deve absolutamente nada.

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