Resumo da reportagem
- ONGs brasileiras relataram 273 mortes LGBT por preconceito em 2022, e alegam que o Brasil é o país que mais mata o grupo por ser quem é, contrariando publicações mais rigorosas da literatura científica.
- A confiabilidade do relatório é questionável devido à falta de detalhes e transparência nos dados.
- Há críticas sobre a metodologia usada, incluindo a coleta de dados e a definição de "crimes de ódio".
Depois de uma checagem em 2019 comprovar que as estatísticas sobre mortes de pessoas LGBT por preconceito no Brasil eram infladas, ONGs nacionais voltam a afirmar que o país é campeão mundial nesse tipo de crime. Um relatório divulgado em maio pelo “Observatório de mortes e Violências LGBTI+ no Brasil”, uma coalizão de organizações dedicadas à causa de minorias sexuais, aponta que 273 lésbicas, gays, bissexuais e transexuais morreram em 2022 no Brasil, vítimas de preconceito. O documento, financiado por fundações internacionais notórias por apoiar ativismo de esquerda, contraria outras estatísticas, como um índice elaborado por um economista sênior do Programa Conjunto das Nações Unidas de HIV/AIDS (UNAIDS), que coloca o Brasil como o segundo mais tolerante nessa temática entre os países de renda baixa a média. Além disso, apenas três dos 273 casos são detalhados no relatório (sendo que dois deles não são conclusivos como casos de preconceito), o que torna difícil uma checagem dos dados.
A Gazeta do Povo pediu acesso à planilha completa das 273 mortes violentas de LGBT referentes a 2022, mas não recebeu resposta. O mesmo aconteceu em 2021, quando a ANTRA, uma das organizações envolvidas no Observatório, se recusou a partilhar de forma aberta seus dados com a reportagem.
De acordo com a publicação, em 2022 foram 228 assassinatos, 30 suicídios e 15 mortes “por outras causas”. O Observatório elaborou o documento com base em “uma base de dados compartilhada” entre três ONGs. Os dados foram “encontrados em notícias de jornais, portais eletrônicos e redes sociais”.
Embora os números causem repercussão e cheguem até mesmo a embasar políticas públicas e leis, os métodos são pouco rigorosos e a checagem por terceiros é pouca ou inexistente. Em 2019, uma checagem independente comprovou que apenas 9% dos 347 casos relatados como homofobia pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) em 2016 tiveram de fato motivações preconceituosas. Metade dos assassinatos analisados na ocasião foi inconclusiva quanto à motivação e o restante não ocorreu por homofobia. O número falso, que foi usado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento que criminalizou a homofobia, voltou a ser citado no relatório de 2023 do Observatório.
Casos incertos
Entre os três casos mencionados no relatório, está o do pernambucano José Cláudio Alves Ferreira, morto aparentemente por ter beijado um homem na frente do suposto assassino, que expressou descontentamento sobre a cena para um vizinho, como noticiou o Portal Agreste Violento. Embora seja preferível tipificar a motivação após um julgamento, é aceitável que a ONG inclua provisoriamente este como um caso de homofobia.
O segundo caso é mais incerto: o esfaqueamento de Josy Kelly, em Arapiraca, Alagoas, em dezembro de 2022. O delegado de homicídio da cidade, Everton Gonçalves, declarou na época ao site G1 que trabalhava não apenas com a hipótese de crime por preconceito, mas também com a possibilidade de latrocínio (assassinato derivado de roubo). A investigação ainda não foi concluída.
O último caso mencionado é de um jovem trans de 22 anos de Guarapuava, Kauê Vestemberg, que cometeu suicídio em janeiro do ano passado. A fonte usada pelos ativistas é uma notícia do site G+, que não dá muitos detalhes das circunstâncias em torno da tragédia.
O relatório critica o G1 e o G+ por terem tratado Josy no masculino e Kauê no feminino, e por mencionarem seus nomes de batismo. Os ativistas também acusam o G+ de “violência transfóbica” por esse motivo. A reportagem do G1, porém, mostra que a própria irmã e os vizinhos tratavam Josy pelo gênero masculino. Quanto a Kauê, faltou o relatório buscar outra fonte: o Portal RSN, também de Guarapuava, afirmou que “o jovem atentou contra a própria vida devido a um término de relacionamento”. Nas redes sociais, amigos e familiares fizeram um alerta a respeito da seriedade da depressão.
Entre os três casos mencionados pelo Observatório das ONGs LGBT, portanto, ao menos dois, um assassinato e um suicídio, são incertos quanto às motivações estarem ligadas a preconceito.
Falha metodológica
Em notícias de crimes, há muitas distorções que podem inviabilizar o uso estatístico dos dados. Centros urbanos tendem a ter mais cobertura jornalística que zonas rurais, por exemplo. E o fenômeno precisa estar bem definido: suicídios são mesmo comparáveis a homicídios para serem postos juntos? Basta ser gay e ser morto em uma sociedade em que preconceito contra gay existe para se alegar que a morte foi por causa do preconceito, ou é preciso determinar plausivelmente uma motivação preconceituosa?
A cada sete mil casos de crime de ódio (mais precisamente, crime motivado por preconceito) que ocorrem por ano nos Estados Unidos, menos de 10% são cobertos pela imprensa, relata o cientista político Wilfred Reilly em seu livro “Hate Crime Hoax” (“Fraude de Crime de Ódio”, em tradução livre), de 2019. Além disso, alerta Reilly, 15% ou mais dos casos noticiados são falsos.
O resultado das distorções e falta de rigor com os métodos é que, quando ONGs LGBT ou a imprensa que repete seus números acriticamente dizem que as mortes por homofobia ou transfobia cresceram de um ano para outro, ou diminuíram, nenhuma tendência desse tipo pode ser afirmada. Devido à falta de uma amostra exata que determine o fenômeno, seria semelhante a afirmar que a popularidade de um presidente subiu ou desceu de um ano para outro perguntando em um único condomínio ou perguntando em um condomínio diferente a cada ano. Não há critério de comparação, uma vez que o rigor é muito baixo.
Quem fez o relatório
As ONGs responsáveis pelo documento são a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a Acontece (Acontece Arte e Política LGBTI+) e a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos). O Grupo Gay da Bahia (GGB), que diz que produz esses relatórios há mais de 40 anos, não ganhou crédito neste, mas tem seus números aproveitados pelos autores. O Observatório informa em seu site que foi fundado por iniciativa do Acontece e do GGB em janeiro de 2020.
Entre as fontes de financiamento listadas no relatório, estão a Embaixada dos Países Baixos (Holanda) e o Fundo Brasil de Direitos Humanos, uma organização sem fins lucrativos. No mês de maio, o Fundo Brasil abriu um edital no valor de R$ 800 mil para financiar até 20 organizações dedicadas à causa LGBT.
Em um demonstrativo financeiro de maio de 2022, o fundo lista 15 fontes de recursos recebidos, que somam R$ 13,3 milhões a serem aplicados em projetos naquele ano. Entre as fontes, 11 são organizações internacionais. As que mais doaram foram a Fundação Ford (49,5%), a Fundação Open Society (9,2%, do bilionário George Soros) e a Fundação Oak (12,2%) — as três notórias por financiar ativismo de esquerda no Brasil. Menos de 0,7% dos recursos vieram de doações de pessoas físicas.
Os ativistas acusam o Estado brasileiro de “descaso” com a violência contra LGBT e alegam que a falta de mais dinheiro público na causa prova que há um preconceito “institucional” no país, especialmente nos órgãos de segurança pública e no judiciário.
Brasil entre os mais tolerantes
Em um artigo publicado em 2018 no European Journal of Public Health, Erik Lamontagne, economista sênior do Programa Conjunto das Nações Unidas de HIV/AIDS (UNAIDS), propôs com colegas o Índice de Clima Homofóbico para mensurar as atitudes contra gays nos países. A nota é baseada na homofobia institucional, como a presença de leis intolerantes, e na homofobia social, que diz respeito às crenças e atitudes da população.
Enquanto as ONGs brasileiras alegam que seu país é o que mais mata LGBT no mundo, o índice sofisticado de Lamontagne colocou o Brasil na segunda posição entre os mais tolerantes e inclusivos com renda baixa a média, perdendo somente para a Colômbia, e na 20ª posição mundial no ranking geral. O Sudão ficou na última posição entre 158 países, acompanhado por Afeganistão e Arábia Saudita.
Cirurgia plástica e overdose
O termo “homofobia”, que era utilizado como um termo geral denotando preconceito contra minorias sexuais, foi trocado por “LGBTIfobia” pelo Observatório, que afirma que este é um problema “estrutural”.
Embora seja comum tratar assassinatos, suicídios e acidentes como mortes violentas, o relatório dos ativistas inova: “Também consideramos como violentas as mortes ocorridas em função da busca por procedimentos estéticos devido à pressão estética”, explicam, além “do uso de substâncias ilícitas e outros óbitos com causas não identificadas”.
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