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Segundo C. S. Lewis, o que bota medo e às vezes paralisa um país é a postura do povo diante de seus melhores e maiores ideais.
Segundo C. S. Lewis, o que bota medo e às vezes paralisa um país é a postura do povo diante de seus melhores e maiores ideais.| Foto: Pixabay

Os leitores de “Aquela Fortaleza Medonha”, de C.S. Lewis, talvez se lembrem de uma revelação surpreendente nos últimos capítulos do romance: o personagem do sr. Dimble revela que “descobrimos que a história arturiana é, na maior parte, uma história real”.

Ele esclarece dizendo que o reino arturiano de Logres, do século VI, foi “uma época em que algo que está sempre tentado prosperar neste país quase conseguiu”. Esse Logres nunca desapareceu da Inglaterra. Na verdade, diz Dimple, depois de aprendermos a realidade de Arthur e Logres “começamos a ver toda a história inglesa sob um novo prisma. E percebemos o assombro”.

Esse conceito do assombro do Reino Unido é fundamental para a trama do romance e sua revelação, já no fim do romance, revela muitas pontas que pareciam soltas. Num sentido mais amplo, porém, o assombro explica como o conflito entre o bem e o mal se prolonga numa cultura ou nação.

Quando expõe sua descoberta sobre Logres, Dimble se reúne com os demais membros do seu grupo em torno do diretor de St. Anne; eles estão discutindo o afastamento do diretor, um nome chamado Elwin Ransom, Sr. Fisher-King e Pendragon em momentos diferentes da Trilogia Cósmica, trilogia que este romance conclui. O diretor aguarda ser levado ao “Terceiro Paraíso”, ou Perelandra, e alguns membros da empresa começam a questionar como Logres se conecta a todas as aventuras espaciais que levam a esse ponto culminante. É uma boa questão.

Ao fim de “Aquela Fortaleza Medonha”, os leitores, bem como os personagens podem se perguntar como Merlin pode vir a ser um personagem importante num livro que se passa em meados dos anos 1940, cujos livros anteriores levam os protagonistas a Marte (Malacandra) e Vênus (Perelandra), e cujos vilões são um grupo de tecnocratas. Em sua crítica do romance escrito em 1945, George Orwell fala de como “o sobrenatural insiste em aparecer”, já que uma característica central da trama é o plano de N.I.C.E. de exumar o corpo de Merlim para usar sua “mágica pré-cristã” a fim de empregá-la em seu projeto diabólico de destruir a vida orgânica no planeta.

Orwell preferia que o romance se ativesse aos conflitos materiais entre o bem e o mal, e não a uma disputa sobrenatural entre “Deus e o demônio”, prejudicado pelo conhecimento do leitor quanto a “que lado sairá vencedor”. Os leitores que conhecem os romances da década de 1940 de Orwell entenderão essa crítica, já que em “A Revolução dos Bichos” (1945) e “1984”(1949) o bem não conta com nenhum apoio sobrenatural e o mal vence. Por outro lado, o romance de Lewis e a trilogia que ele conclui, usa o sobrenatural no conflito, e o resultado é um triunfo cômico, ainda que às vezes caótico, do bem.

O assombro do Reino Unido por Logres faz parte da explicação de Lewis sobre como um grupelho de nadas consegue vencer a eficiente, organizada e influente N.I.C.E. Orwell tem razão ao dizer que essa vitória seria impossível sem a invasão do sobrenatural. Só que a forma e os canais utilizados por esse sobrenatural são misteriosos até a explicação de Dimble sobre Logres ao fim do romance. Ele esclarce para o grupo (e leitores) que “algo que podemos chamar de Britânia está sempre assombrado pelo que podemos chamar de Logres. Não perceberam que somos dois países? Depois de todo Arthur, um Mordred; por trás de todo Milton, um Cromwell”.

Dimble diz que, depois de voltar de Perelandra, Elwin Ransom foi chamado ao leito de morte de um homem em Cumberland que era “Pendragon, o sucessor de Arthur… Depois descobrimos a verdade. Houve um Logres secreto no âmago do Reino Unido o tempo todo”. E os Pendragons, com os grupinhos ao redor, “deram o empurrãozinho para tirar a Inglaterra do sono entorpecido ou para tirá-la da revolta para a qual o Reino Unido a seduzia”.

Quando, ao longo da explicação, Dimble se torna exageradamente exuberante ao elogiar Logres, o Diretor o repreende. E Dimble, então, admite que “esse assombro não é exclusividade nossa. Todo povo tem quem o assombre. A Inglaterra não é especial – é bobagem essa coisa de nação escolhida”.

Ele chega a dizer que o assombro de cada nação surge do fato de que, ainda que existam regras universais do bem, a forma como cada pessoa ou nação se adequa a essas regras é única. “O trabalho de curar Tellus [Terra] depende de se cuidar daquela faísca, de encarnar aquele espírito que ainda está vivo em todas as pessoas e é diferente para cada uma delas”. Para dar um exemplo, Dimble cita o assombro da França, “a razão, o esclarecimento divino” e a “ordem do Céu” da China.

O esclarecimento de que não há povo escolhido era importante em 1945, depois de o mundo se dividir diante da pretensão de certos estados de serem considerados especiais e superiores. Mas o conceito mais amplo do assombro também era pertinente em 1945. Muitos dos países do mundo tinham de confiar o bastante em seu caráter virtuoso a fim de justificar a guerra contra agressores que ameaçavam tirar sua autonomia e cultura.

Mas esses mesmos países tinham também de evitar se considerar privilegiados e superiores aos demais. Se uma nação cair nessa armadilha, depois de vencer os inimigos ela se sentirá tentada a destruir os outros países. Em “Aquela Fortaleza Medonha”, a tentação do Reino Unido é obter o poder por meio da ciência sem limites e da eficácia perfeita. O Logres que assombra o Reino Unido deve ser “a faísca que ilumina os ideais da nação” e que resiste a essa ameaça, mas os leitores são alertados de que o Reino Unido “se reerguerá”.

As mesmas tentações se apresentam e são contidas. Se uma pessoa entende que os ideais específicos de um país estão escondidos ou “assombram” ou combatem os poderes destrutivos em ação no país como um todo, essa pessoa é livre para reafirmar esses ideais, condenando as tentações de se afastar desses ideais. Hoje, assim como em 1945, é preciso equilibrar os bons ideais da nação com a humildade consciente dos fracassos dessa nação que, de qualquer forma, não pode se dizer privilegiada ou superior às demais.

Os Estados Unidos de 2020 são um país estranho para si mesmo – seus fracassos estão evidentes, em diversões graus, em suas diferentes facções. Ainda que muitos compartilhem da crença de que algo deu errado, há pouco consenso quanto ao que há de errado. A fim de encontrarem consolo e orientação nesses tempos, alguns recorrem à literatura do passado. Um poema que tem despertado um interesse renovado é “Let America Be America Again” [Deixe a América ser América de novo], de Langston Hughes, publicado pela primeira vez em 1936 e depois numa versão ampliada em 1938.

Num artigo de 2020 para a American Scholar, Louis P. Masur nota que esse poema começou a circular nas redes sociais depois da eleição presidencial de 2016 e novamente depois da morte de George Floyd.

Não é de se surpreender que esse poema ressoe nos Estados Unidos de hoje. Escrito por um dos principais literatos negros dos Estados Unidos, o poema expressa o desejo por uma América que ainda está por vir e também pede que o país “seja o sonho que costumava ser”. Uma leitura política do poema permite que se encontre sentidos vagos que se adequam perfeitamente à pauta do leitor. Mas uma leitura mais cuidadosa do poema revela um “assombro” peculiar aos Estados Unidos.

Hughes tinha visitado a União Soviética em 1932 e boa parte de sua literatura nos anos 1930 flerta com as ideias comunistas. Alguns, como os que fizeram parte do comitê McCarthy responsável por interrogar Hughes em 1953, leram “Let America Be America Again” à procura apenas de sinais de afiliação comunista. (Hughes nunca entrou para o Partido Comunista e o que ele realmente pensava sobre o comunismo é desconhecido).

Outros viram esse poema como uma vergonha para Hughes e algo como “o Tom Joad de John Steinbeck bêbado falando sobre Marx”. Em 2004, bem antes de Donald Trump surgir com seu slogan “Make America Great Again”, a campanha de John Kerry tentou usar o título do poema como slogan eleitoral. William F. Buckley considerava essa escolha questionável, lendo o poema de Hughes à luz de seus outros poemas mais notadamente comunistas. Buckley dizia que Hughes evocava “uma América perceptível sob uma ótica nova e diferente” – uma ótica pertencente a Marx, Lenin e Stalin.

Talvez faça bem aos leitores ficarem de olhos bem abertos para poesias que podem ser usadas como slogans políticos. Talvez Hughes mais do que tenha apenas flertado com o comunismo nos anos 1930. E talvez esse poema não seja o melhor de Hughes. Mas ainda assim “Let America Be America Again” encontra eco em norte-americanos que se sentem decepcionados e privados do sonho prometido pela América.

Se uma pessoa aplicar a ideia de Lewis sobre o “assombro” nacional aos Estados Unidos, ela talvez diga que nosso país é assombrando por nossos próprios ideais de justiça e liberdade que possibilitam a “busca pela felicidade” universal. O poema de Hughes tira o véu que cobra o sonho que assombra os Estados Unidos. “Let America Be America Again” mostra que o apelo do sonho americano é constante e presente, apesar das traições repetidas.

O poema começa com uma sentença simples que é também o título acompanhado por um imperativo paralelo: “Que seja o sonho que costumava ser”. Este é o primeiro dos “que seja” nas três primeiras estrofes do poema, entre as quais se encontra referências ao “pioneiro da planície/ buscando um lar onde ele seja livre” e “aquela terra forte do amor/ onde reis não reinam e tiranos não tiranizam”.

Três frases interrompem o fluxo das estrofes do “que seja” com uma voz fazendo objeção à celebração da liberdade e das oportunidades representadas pela América. A voz diz “a América nunca foi América para mim” e “Nunca houve igualdade para mim/ Nem liberdade nessa “terra dos livres”. O narrador original, então, se dirige a essa voz que “resmunga” perguntando “quem é você?”

Não é uma única voz que responde, e sim várias vozes. Muitas das frases seguintes começam com “Eu sou”, e cada uma delas se identifica com uma pessoa diferente que foi excluída da “terra dos libertos”: os “brancos pobres, enganados e afastados” e “os negros exibindo cicatrizes da escravidão” dão início a uma lista que inclui os “vermelhos”, os “imigrantes”, os “jovens (...) presos a essa corrente interminável/ De lucro, poder, ambição e propriedade da terra”. A esses também se juntam os agricultores, os operários, o “negro, servo de todos”, o homem que não progride, o miserável, o sonhador “do nosso sonho mais simples/ no Velho Mundo enquanto ainda servo de reis”, o imigrante recente, o africano levado para a América a fim de construir o “lar dos livres”.

A essa lista, então, são acrescentadas as vozes de “milhões que precisam de ajuda hoje”, os grevistas, os que não receberam por seu trabalho. Mesmo que não se soubesse a data de publicação do poema, seria fácil situá-lo nos anos da Grande Depressão, quando o desemprego foi superior aos 20%, o clima ruim e os preços baixos destruíram a agricultura e o Movimento pelos Direito Civis era coisa de um futuro remoto.

O poema é uma obra de seu tempo, mas capta uma verdade perene sobre os Estados Unidos: apesar dos ideais de justiça e liberdade e a busca pela felicidade, há muitos norte-americanos que tiveram o caráter formado pela injustiça, escravidão e adversidades. Essa característica infelizmente perene do poema é o que está por trás de sua popularidade recente. Em 2020, muitos ouvem suas próprias vozes ecoando como uma só voz dos “milhões que não têm nada para nos recompensar/Exceto o sonho que hoje está quase morto”.

O poema de Hughes termina com uma volta ao imperativo do título, mas concedendo que esta “é a terra que ainda não foi”. As vozes múltiplas se unem numa afirmação em conjunto:

Ah, sim
Sou direto ao dizer
A América nunca foi América para mim
E ainda assim juro –
A América será!

Assim, o poema termina com uma afirmação do sonho americano compartilhado por muitos, mas que ainda está por ser realizado. Essa reafirmação da América que poderia ser provavelmente atrai os leitores atuais que querem encontrar uma saída para os conflitos que tomam conta da política e cultura norte-americanas. Assim, o poema é compartilhado e recebe likes, e os críticos que liam o poema como uma declaração de amor banal ao marxismo foram esquecidos ou apagados, o que talvez seja também justo.

Porque os críticos do passado ignoraram o verdadeiro apelo do poema. Independentemente das crenças políticas do autor (que são vagas) e dos méritos artísticos (questionáveis) do poema em si, “Let America Be America Again” apela para o sonho de justiça e liberdade para todos e da garantia do direito de viver, ser livre e buscar a felicidade. Cada uma das vozes oprimidas do poema busca uma coisa boa que, como o Logres de Arthur em “Aquela Fortaleza Medonha”, assombra os Estados Unidos.

O assombro descrito na obra de Lewis explica como o poder de uma nação sempre tenta essa mesma nação a se afastar de seus ideais bons. Essa característica única, ou “seiva”, como Lewis a chama, permanece viva dentro de cada nação, alimentada por um punhado de gente de fé que se recusa a ceder às tentações do poder.

Em “Aquela Fortaleza Medonha”, o grupinho de Logres parece apenas esperar o momento certo para agir. Mas sem um comprometimento real para com os ideais de Logres, a espera pode se transformar em inação e apatia, e o momento certo de atacar os males que afligem a nação pode passar batido.

Todas as nações precisam se lembrar de que são assombradas por seus melhores ideais, e o poema de Langston Hughes serve como um lembrete desses para os Estados Unidos. Todas as nações precisam lembrar que, apesar de dignos, nem mesmo seus melhores ideais lhes dão o direito de se verem como o povo escolhido, e o romance de C.S. Lewis, que recebeu o subtítulo de “Um conto de fadas para adulto” funciona como um lembrete disso. Ler essas duas obras à luz uma da outra pode restaurar a confiança na bondade do sonho norte-americano e renovar a humildade nacional naqueles que delas precisam.

Bethany Getz é professora e PhD em literatura.

© 2020 The Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês
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