Nesta quarta-feira (17), o candidato à Presidência Fernando Haddad (PT) escreveu uma “Carta aberta ao Povo de Deus”, na qual acusa seus adversários de semear mentiras “entre o povo cristão contra candidatos do PT”. Embora Haddad não tenha mentido em sua carta, equilibrando-se no limite da semântica, ele esconde parte fundamental da atuação do PT nos treze anos em que ficou à frente do governo federal.
Na missiva, Haddad afirma que “nenhum dos nossos governos encaminhou ao Congresso leis inexistentes pelas quais nos atacam: a legalização do aborto, o kit gay, a taxação de templos, a proibição de culto público, a escolha de sexo pelas crianças e outras propostas, pelas quais nos acusam desde 1989, nunca foram efetivadas em tantos anos de governo. Também não constam de meu programa de governo”.
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Em pelo menos três temas o candidato esconde partes importantes da história: em relação ao aborto, ao “Kit Gay” e à ideologia de gênero.
Aborto
Em 6 de abril de 2005, a Portaria número 0005 da Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM), subordinada à Presidência da República, instituiu a Comissão Tripartite “para discutir, elaborar e encaminhar proposta de revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez”.
Foram indicados para a comissão seis representantes do Governo Federal, seis do Congresso (três da Câmara dos Deputados e três do Senado) e seis da sociedade civil. Em entrevista dada ao programa Roda Viva da TV Cultura em maio de 2005, Nilcéia Freire, então Secretária Especial de Políticas para as Mulheres do Brasil, afirmou que “o compromisso do governo é com o resultado dessa comissão [tripartite]”.
A Comissão Tripartite finalizou seus trabalhos em 1º de agosto de 2005 e apresentou, em setembro, um anteprojeto de lei que previa a “realização legal do aborto, por decisão das mulheres, em gestações de até 12 semanas, e com até 20 semanas se a gravidez fosse resultante de violência sexual”.
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Antes da conclusão dos trabalhos, no entanto, explodiu no país o escândalo do Mensalão e o governo passou a enfrentar pressões na CPI dos Correios, instalada em maio daquele ano. Havia a expectativa de que o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que era membro da Comissão, propusesse como projeto de lei as recomendações, como era a preferência dos movimentos feministas, mas o senador acabou recuando.
A estratégia do governo foi incorporar, em setembro de 2005, as sugestões ao Projeto de Lei (PL) 1.135/91, que era relatado pela então deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), da base aliada do governo, na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara.
O PL 1.135/91 tramitava desde sua proposição pelos então deputados Eduardo Jorge (PT-SP) e Sandra Starling (PT-MG). Durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, o então deputado José Genoíno (PT-SP) já tinha tentado inscrever na Constituição um direito ao aborto até os 90 dias de gestação.
Diante da ofensiva do governo, parlamentares contrários ao aborto, liderados por um então deputado do próprio PT, Luiz Bassuma, fundaram a Frente Parlamentar em Defesa da Vida - Contra o Aborto. Em 2009, Bassuma seria punido pelo PT com a suspensão de seus direitos partidários, justamente por se opor à descriminalização do aborto, e migraria para o Partido Verde (PV).
Em entrevista dada ao Portal Sempre Família em 2013, Bassuma lembrou que "naquela ocasião [em 2005], todas as esferas do governo eram favoráveis à legalização. Não apenas o presidente da república, que era o Lula, mas os parlamentares que estavam à frente das comissões por onde o projeto iria tramitar eram a favor, assim como o presidente da Câmara. Eles construíram tudo aquilo e o projeto ia tramitar em regime de urgência urgentíssima."
De fato, uma reportagem da Folha de São Paulo de 1º de dezembro daquele ano apurou que “além do apoio político, o governo gastou cerca de R$ 5.000 só com passagens aéreas a membros da comissão tripartite” na articulação com o Congresso pela aprovação do projeto.
Os parlamentares da base aliada fizeram uma ofensiva pela aprovação do relatório da deputada Jandira Feghali, mas recuaram diante da possibilidade de derrota em sessão do dia 7 de dezembro de 2005. Em 2006, houve novas tentativas de votar o projeto, mas acabou arquivado em 2006.
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Em 2008, houve ainda mais duas tentativas de votação na CSSF e na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), mas os parlamentares da base aliada foram derrotados. Em 13 de agosto, o deputado José Genoíno recolheu assinaturas suficientes para recorrer ao plenário da Câmara, mas o projeto nunca foi votado. Em 2012, foi definitivamente arquivado.
Diante da derrota, o governo inscreveu como ação programática na primeira versão do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos “apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”.
Mais uma vez, foi só depois da oposição de parlamentares e da sociedade civil que o governo voltou atrás e o apoio foi suprimido. Em seu lugar, o PNDH-3 passou a prever “considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde”.
Kit Gay
Nesta semana, uma reportagem da Gazeta do Povo mostrou que, embora haja mentiras sendo espalhadas sobre o chamado “Kit Gay”, ele de fato foi elaborado e seria distribuído nas escolas a partir do segundo semestre de 2011, se parlamentares contrários e a sociedade civil não tivessem feito oposição ao projeto.
O Kit Gay é como ficaram conhecidos a cartilha “Escola Sem Homofobia” e materiais anexos desenvolvidos pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT), a Pathfinder Brasil, a ECOS-Comunicação em Sexualidade e a Reprolatina-Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva. A cartilha orientava professores em atividades de combate à homofobia a ser desenvolvidas pelos alunos e trazia indicações de filmes e vídeos que promoviam a ideologia de gênero.
Como consta do próprio documento, o projeto contou com orientação técnica da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC) e com financiamento de emenda parlamentar aprovada pela Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, por iniciativa da deputada Fátima Bezerra (PT-RN).
Haddad, que era ministro da Educação à época, chegou a se encontrar com os parlamentares críticos do projeto e aceitou receber sugestões, mas negou que tivesse alterado o conteúdo do material. Foi só quase um mês depois que a presidente Dilma Rousseff (PT) decidiu pela suspensão do material. "O governo entendeu que seria prudente não editar esse material que está sendo preparado no MEC”, declarou o então ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho.
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Ideologia de gênero
O Kit Gay não foi um projeto isolado do PT, mas era parte de uma iniciativa mais ampla do Ministério da Educação, o Projeto Escola sem Homofobia, gestado a partir das diretrizes lançadas no Programa Brasil sem Homofobia, de 2004, e da I Conferência Nacional de Políticas Públicas para a População LGBT, ocorrida em junho de 2008, sob coordenação da Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República.
O documento inaugural dos esforços da gestão petista nessa área, o “Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação”, de 2004, já propunha ações integradas na área de educação, como “fomentar e apoiar curso de formação inicial e continuada de professores na área da sexualidade” e “estimular a produção de materiais educativos (filmes, vídeos e publicações) sobre orientação sexual e superação da homofobia”.
As ações são pensadas para combater a violência física e moral contra a população LGBT, mas trazem um conjunto de ideias controversas que tentam separar o que se chama de “identidade de gênero” de seu substrato biológico. É isso que se chama ideologia de gênero.
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Segundo o caderno de propostas da 3ª Conferência Nacional de Políticas Públicas de Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, ocorrida entre 24 e 27 de abril de 2016, em Brasília, identidade de gênero seria “uma experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos e outros)”. Segundo o mesmo documento, a teoria queer “propõe a desconstrução das identidades sexuais via discurso”.
Fernando Haddad declarou apoio às recomendações da Conferência, porque assinou o termo de compromisso com a “Plataforma LGBTI+ Eleições 2018”, que prevê “Implementar a Política Estadual LGBTI+, em consonância com as deliberações das 1ª, 2ª e 3ª Conferências Estaduais e Nacional LGBT, com as devidas atualizações”. Consultada sobre o tema, a campanha de Fernando Haddad não respondeu até o fechamento desta reportagem. O espaço continua aberto.
Uma das propostas aprovadas pela 3ª Conferência é “formar equipes multidisciplinares para incluir nas diretrizes do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) a perspectiva da diversidade sexual, de gênero e de identidade de gênero dos diversos arranjos familiares, incluindo nos programas de constituição de acervos das bibliotecas escolares obras científicas, literárias, filmes e outros materiais que contribuam para a promoção do respeito e do reconhecimento da diversidade de orientação sexual e identidade de gênero para os públicos infanto-juvenil e adulto”.
Outra proposta é “Alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e do Plano Nacional de Educação (PNE) para a inclusão da obrigatoriedade do debate de gênero em todos os níveis de ensino abordando as dimensões de gênero, orientação sexual e identidade de gênero com vistas a materialização pedagógica nãomachista, não-sexista, não-misógina, não-racista, não-LGBTfóbica e a criação da Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações de Gênero”.
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O compromisso também envolve apoiar o projeto do Estatuto da Diversidade Sexual, que oferece ameaças graves à liberdade de expressão, de imprensa e de discussão de ideias, à liberdade religiosa e que enfraquece o poder familiar de pais e mães, ao prever que a alteração do nome e da identidade sexual no registro, sem necessidade de ação judicial ou representação por advogado, no caso de crianças, pode ser suprida judicialmente, se negada pelos pais ou responsáveis.
"Segundo o filósofo Ryan Anderson, autor de um livro sobre o tema, "no centro da ideologia de gênero está a radical afirmação de que sensações determinam a realidade. A partir dessa ideia surgem demandas extremas para a sociedade lidar com afirmações subjetivas da realidade”.
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