Um grupo de cientistas que tem defendido a origem completamente natural da pandemia de Covid-19, sem passagem por laboratório ou vazamento acidental, desde o começo dos surtos, chamou a atenção nesta quinta-feira (16) para uma nova evidência que interpretam como indicativa de que o vírus usou os cães-guaxinins como hospedeiros intermediários entre morcegos e humanos. A passagem viral teria acontecido no Mercado de Frutos do Mar Huanan, em Wuhan, China.
O material genético do vírus SARS-CoV-2 misturado ao DNA de cão-guaxinim foi recuperado de dados de amostras coletadas no mercado no começo de 2020. As sequências de ambos os materiais genéticos foram depositadas sem alarde há semanas no maior banco de dados de vírus do mundo (GISAID) por cientistas do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças.
Materiais genéticos como o RNA e o DNA são longas moléculas cujos blocos construtores, quatro tipos de moléculas menores para cada um, são representados em computadores por sequências de letras. São diferenças nesse “texto” que fazem uma espécie ou organismo geneticamente diferente de outro.
Tão logo foram publicadas, as sequências foram removidas pelos chineses. Uma bióloga francesa, Florence Débarre, do Centro Nacional de Pesquisa Científica, encontrou as sequências no banco e alertou os colegas na noite do dia 9. Uma publicação de fevereiro de 2022 dos chineses, que analisara as mesmas amostras, concluíra que “nenhum hospedeiro animal do SARS-CoV-2 pode ser deduzido” delas. De fato, os chineses testaram dezenas de milhares de animais na tentativa de encontrar o reservatório animal no começo da pandemia, sem sucesso até agora.
“Esses dados não dão uma resposta definitiva de como a pandemia começou, mas todo dado é importante para nos impulsionar na direção dessa resposta”, disse nesta sexta (17) Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde. Ele criticou a China por não ter compartilhado esses dados antes. A descoberta já estava sendo discutida com cientistas americanos e chineses na OMS desde terça-feira (14).
A revista The Atlantic, a primeira a dar a notícia, ouviu os cientistas que acreditam que essa evidência é “crucial” para a defesa da origem zoonótica. “Isso realmente dá força ao caso da origem natural”, diz Seema Lakdawala, virologista da Universidade Emory no estado americano da Geórgia. “Indicação bem forte de que os animais no mercado estavam infectados. Na verdade, não há outra explicação que faça qualquer sentido”, comemorou Angela Rasmussen, virologista da Universidade de Saskatchewan, no Canadá, partidária enfática da origem zoonótica.
Rasmussen faz parte de um grupo que está preparando um artigo com base nesses dados liderado por Kristian Andersen, virologista do Instituto Scripps de Pesquisa, na Califórnia. Andersen é o primeiro autor de um artigo de março de 2020 encomendado por Anthony Fauci, ex-líder de combate à pandemia no governo Trump e Biden, para refutar a possível origem laboratorial, como descobriram congressistas recentemente em investigação que desenterrou e-mails de ambos. O cientista líder do estudo reconhece que os novos dados não são “evidência direta de cães-guaxinins infectados no mercado”.
Outro envolvido na nova análise é Michael Worobey, biólogo da Universidade do Arizona que publicou em novembro de 2021 um artigo na revista Science defendendo a origem no mercado Huanan. A Gazeta do Povo analisou o artigo e apontou seus problemas na época. Um dos principais era a falta de animais infectados, o que poderia mudar com as novas evidências.
Não é pela mistura ou co-ocorrência de material genético de um vírus com um animal que normalmente se julga a história de contágio do vírus de uma espécie para outra. Na verdade, a co-ocorrência poderia ser uma mera contaminação da amostra no ato de coleta. Os cientistas geralmente analisam a sequência viral de diferentes hospedeiros, e determinam a história de mudança (evolução) nessa sequência que tornou possível a passagem. Já se sabia que os cães-guaxinins são vulneráveis ao vírus da Covid, mas eles podem pegar de humanos, assim como já aconteceu com cães e gatos. Portanto, é preciso esperar mais informações da análise.
O cão-guaxinim (Nyctereutes procyonoides) é um membro da família dos canídeos nativo do Leste da Ásia. Há debate entre zoólogos sobre sua exata posição na classificação entre os carnívoros, alguns propõem que é um membro da família dos procionídeos, que inclui os guaxinins e os quatis. A espécie é mais ativa à noite, onívora, se alimentando de pequenos animais, peixes, plantas e carniça. O uso de sua pele é um dos motivos pelos quais ele é vendido em mercados de animais silvestres na China.
Reação
Cientistas que defendem a plausibilidade do vazamento laboratorial antes que o tabu contra ela na imprensa caísse (por volta de maio e junho de 2021) reagiram no Twitter com ceticismo à notícia da Atlantic. Richard Ebright, professor de bioquímica na Universidade Rutgers e especialista em segurança laboratorial que apontou a falta de segurança nos laboratórios do Instituto de Virologia de Wuhan, de onde ele suspeita que o vírus vazou, disse que a reportagem é “negligência jornalística”. Ao ver o nome dos autores da nova análise dos dados deletados pelos chineses, ele comentou que eles são “inevitavelmente comprometidos e, conforme sua narrativa falsa colapsa, cada vez mais desesperados”.
Rossana Segreto, pesquisadora independente e coautora do estudo que levou à primeira matéria detalhada da Gazeta do Povo sobre a hipótese do vazamento laboratorial, em novembro de 2020, comentou que “é claro” que os cães-guaxinins podem ter pego o vírus de humanos, e levantou a possibilidade de contaminação das amostras. Alex Washburne, autor de um artigo que propõe que o vírus da Covid tem marcas suspeitas de manipulação por enzimas em laboratório, se manifestou chamando seus colegas para analisar os dados.
Matt Ridley, biólogo e escritor britânico que co-escreveu o livro “Viral” (2021) sobre o possível vazamento, aplaudiu o ex-presidente do Centro Chinês de Controle de Prevenção de Doenças, George Gao, por ter dito que não havia nada de novo nesses dados. Para Ridley, a abordagem cautelosa de Gao “é um problema para esses cientistas [ocidentais]. É a segunda vez que eles tentam driblá-lo”, dando a entender que a primeira vez foi o artigo da Science. “Foi ele quem disse, em maio de 2020, que o mercado provavelmente não foi a fonte” da pandemia.
A matéria da revista não toca, por exemplo, nas evidências moleculares como a presença do “sítio de clivagem da furina” no SARS-CoV-2, uma estrutura molecular importante para o vírus infectar humanos que não está presente em nenhum de seus parentes mais próximos, mas que a EcoHealth Alliance, ONG que intermediava verbas entre governo americano e os chineses em Wuhan, pediu em projeto de pesquisa para inserir no material genético de coronavírus em laboratório. Nem responde aos outros indícios indiretos apontados pelo jornalista científico Nicholas Wade, principal responsável pela ruptura do tabu midiático em maio de 2021.
The Atlantic também não ouviu nenhum cientista que considere a origem laboratorial mais provável, opinião compartilhada pelo FBI e pelo Departamento de Energia americano. Nenhuma das duas hipóteses — origem zoonótica e origem laboratorial — conta no momento com evidências diretas e inequívocas. Entre as evidências indiretas para a última, documentos chineses falam em algum incidente no laboratório de Wuhan, em novembro de 2019, que foi “como se tivesse sido aberta a Caixa de Pandora”.
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