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Instituto de Virologia de Wuhan
Fachada do Instituto de Virologia de Wuhan, na China: documentos de diretório interno do Partido Comunista indicam que uma emergência de biossegurança aconteceu em novembro de 2019.| Foto: EFE/ROMAN PILIPEY

Uma investigação das origens do coronavírus da pandemia iniciada a pedido do senador americano Richard Burr, do partido Republicano, encontrou novas informações que corroboram a plausibilidade de um vazamento laboratorial como primeira fonte do surto. Graças ao poliglota Toy Reid, fluente em mandarim, a comissão investigativa encontrou em fontes públicas do Partido Comunista Chinês um documento de 12 de novembro de 2019 indicando que algum incidente sério aconteceu em um laboratório do Instituto de Virologia de Wuhan (IVW). As conclusões estão num relatório preliminar das investigações.

Eis o trecho relevante do documento chinês, que é um despacho de representantes do partido que atuam dentro do instituto:

“uma vez que se tenham aberto os tubos de ensaio, é bem como se tivesse sido aberta a Caixa de Pandora. Esses vírus vêm sem fazer sombra e vão sem deixar rastros. Embora [tenhamos] várias medidas preventivas e protetivas, é ainda assim necessário que a equipe laboratorial opere com grande cuidado para evitar erros operacionais que dão lugar a perigos. Toda vez que isso aconteceu, os membros do Diretório do Partido do Laboratório Zhengdian [parte do IVW] sempre correram à linha de frente, e de fato entraram em ação para mobilizar e motivar outros membros da equipe.”

Reid considerou o contexto de despachos anteriores do mesmo diretório, com tom tipicamente bem mais leve, e explica que nem mesmo um falante comum do mandarim entende o linguajar dos burocratas — vago e cheio de códigos informais para evitar a ira de superiores na ditadura. Ele interpreta o trecho como atípico e muito sério. “Eles estão quase dizendo que sabem que Pequim está prestes a descer [para Wuhan] e gritar com eles”, disse o especialista à revista Vanity Fair e à organização não-governamental de jornalismo investigativo ProPublica, que publicaram reportagem conjunta.

“Pishi” direto de Xi Jinping

De fato, houve uma visita uma semana após o despacho: Pequim mandou Ji Changzheng, que chefia a seção de segurança da Academia Chinesa de Ciências, agência à frente de mais de 100 instituições de pesquisa no país, incluindo o IVW. Ji disse na ocasião que trouxe aos pesquisadores “importantes comentários verbais e instruções escritas” de ninguém menos que Xi Jinping, o ditador (secretário geral) em exercício, junto ao primeiro-ministro Li Keqiang. O documento que registra as palavras de Ji Changzheng também tem linguagem sugestiva: as instruções seriam para lidar com “muitos casos em larga escala de incidentes de segurança domésticos e estrangeiros” e ofereceriam uma “profunda análise” que “revelou vividamente a situação complexa e grave atualmente enfrentada pelo trabalho de [bio]segurança”.

O termo usado para “instruções escritas” é importante, informa Reid: “pishi” é jargão do partido para instruções escritas às margens de relatórios sobre problemas preocupantes. A intenção das “pishi” é uma instrução mais enérgica para oficiais inferiores na hierarquia. Reid acredita que essas “pishi” vieram diretamente de Xi Jinping, pois registros de nove visitas do mesmo oficial a diferentes instituições anteriores não as continham. É possível que um oficial chinês invoque o nome do ditador para impor respeito, mas não era um hábito de Ji Changzheng, e esse hábito, quando existe, geralmente é feito de outra forma: pela citação de discursos anteriores do secretário geral. O oficial não respondeu ao contato dareportagem conjunta da Vanity Fair e ProPublica.

Três especialistas independentes em comunicações das autoridades chinesas (além de Reid) foram ouvidos pela reportagem de Vanity Fair e ProPublica. “Eles nos disseram que os despachos do IVW de fato sinalizam que o instituto passou por uma emergência intensa de segurança em novembro de 2019”, resume a publicação. “Todos concordaram que parecia urgente, fora de rotina e relacionado a algum tipo de emergência de biossegurança. Dois também concordaram que parecia que as pishi foram feitas pelo próprio Xi”, informa a revista.

Outros sinais de emergência laboratorial

Os documentos não esclarecem qual dos laboratórios do IVW foi afetado. Há mais documentos, além de depoimentos de cientistas ocidentais que trabalharam no local, indicando que os virologistas do instituto trabalhavam sob uma muito intensa pressão do Partido Comunista por produtividade, um problema que já gerou fraudes em pesquisas feitas na China. Artigos científicos de Shi Zhengli, da chefia do instituto e conhecida como “Mulher Morcego” por sua pesquisa com coleta de vírus no animal, revelam francamente que experimentos perigosos em coronavírus eram realizados em níveis de biossegurança insuficientes para os padrões internacionais.

Shi Zhengli recebeu verbas de pesquisa dos Estados Unidos por meio de uma ONG intermediária, a EcoHealth Alliance. A França também investiu no IVW após uma visita do ex-presidente Jacques Chirac em 2004, gastando 44 milhões de dólares na construção de um laboratório com o maior nível de biossegurança, o nível BSL-4, que começou a operar em 2018. Cientistas ocidentais ouvidos pela reportagem revelaram que havia um problema crônico de escassez de insumos e produtos de limpeza, e também falta de expertise dos chineses em conduzir um laboratório do tipo. Os chineses perguntavam aos ocidentais por e-mail, por exemplo, qual material de limpeza seria mais adequado para não corroer as paredes de aço inoxidável do laboratório.

Em novembro de 2020, sete inventores do instituto submeteram um pedido de patente para um novo desinfetante que reduziria a corrosão do aço que pode “levar ao vazamento de microrganismos altamente patogênicos para o ambiente externo ao laboratório, resultando na perda de vidas e de propriedade e sérios problemas sociais”, linguagem estranhamente específica. Um consultor de assuntos chineses para empresas ocidentais disse à reportagem que quando oficiais chineses descrevem a solução para um problema, “é assim que você descobre o que deu errado”.

Outro pedido de patente informativo foi o feito pelo virologista militar Zhou Yusen em 24 de fevereiro de 2020. Tratava-se de uma vacina contra a Covid-19 baseada em reproduzir partes do vírus como a proteína de espícula de sua superfície. O relatório preliminar da investigação do senador Burr ouviu especialistas que afirmaram que o único jeito de Zhou ter feito esse trabalho com tamanha velocidade (oficialmente a pandemia só começou em dezembro de 2019) foi se ele já tivesse acesso à sequência do material genético do vírus em novembro de 2019. Shi Zhengli afirma que a sequência só foi obtida por seu laboratório em 2 de janeiro de 2020. Vanity Fair e ProPublica também consultaram especialistas em produção de novas vacinas, dois de três concordaram com o relatório que esse ritmo de produção de vacina é impossível.

Não se tem, ainda, evidência conclusiva de que a Covid-19 nasceu em um laboratório chinês. Porém, há um conjunto de indícios sugestivos: o fato de Wuhan, metrópole em que seguramente houve os primeiros surtos, conter os principais laboratórios de estudos dos coronavírus no país e no mundo. O fato de que o padrão dos primeiros surtos de outras viroses com origem direta em animais, como a gripe asiática do começo dos anos 2000, causada pelo vírus SARS-CoV-1, ter deixado rastros mais claros de como aconteceu o salto de animais para humanos. A grande demora, em comparação à gripe asiática e à síndrome respiratória do oriente médio (causada por um terceiro coronavírus), para encontrar o reservatório animal. A estação fria em que houve o primeiro surto, quando morcegos estão inativos. E características moleculares do SARS-CoV-2 não encontradas em seus parentes mais próximos, como noticiado pela Gazeta do Povo.

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