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O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) durante sessão que votou a urgência da PL 2630, das Fake News, no dia 25 de abril de 2023.
O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) durante sessão que votou a urgência da PL 2630, das Fake News, no dia 25 de abril de 2023.| Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

O Projeto de Lei n.º 2.630, de 2020, conhecido como “PL das Fake News” ou “PL da Censura”, chegou perto de ser votado em maio sob regime de urgência, tendo tido, no entanto, sua votação suspendida após forte comoção social contra o projeto.

Mas, desde o período que antecederia à votação, os apoiadores do projeto já tinham insinuado que, se derrotados, não aceitariam o resultado democrático. Em vez disso, procurariam subvertê-lo utilizando-se, para isso, do seu poder nos dois ramos restantes da República, que são o Executivo e o Judiciário — a nenhum dos quais, no entanto, é dado legislar. Chegou a haver tons de ameaça, com a promessa de que o regramento alternativo seria ainda mais duro, no intuito de intimidar à aprovação do projeto como estava.

Da parte do Executivo, o ministro da Justiça, Flávio Dino, assegurou, segundo o portal Metrópoles, que, em caso de derrota do PL da Censura, o governo Lula já tinha um “plano B” e até mesmo um “C”. Presume-se que esta ordem corresponda à de sua fala ao detalhar os caminhos possíveis: o ministro lembrou “que nós temos a regulação derivada de decisões administrativas, inclusive do Ministério da Justiça” (isto é, não estava falando de outro que não de si mesmo ao prometer que imporia as regras do PL da Censura), e, para além disso, o ministro teria dito, num ato falho, que “há a regulação do Poder Judiciário”.

A fala do ministro pareceu de fato ter lastro nos ânimos do terceiro poder da República. No dia 2 de maio, o ministro do STF Alexandre de Moraes tendo constatado, por jornal, que as empresas Google, Meta, Spotify e Brasil Paralelo estavam realizando campanha contra o PL da Censura, ordenou, sem amparo em lei (porque fora do âmbito de sua competência), a imediata remoção do conteúdo contrário ao projeto e que os presidentes das empresas depusessem à Polícia Federal. Na decisão, que foi proferida no mesmo dia para o qual, mais tarde, estava marcada a votação do PL, o ministro consignou uma frase que chama a atenção: “É urgente, razoável e necessária a definição — LEGISLATIVA e/ou JUDICIAL [assim mesmo, em caixa alta e negrito no original] —, dos termos e limites da responsabilidade solidária civil e administrativa das empresas”. O ministro estava se referindo a um tema legislativo específico que estava para ser votado no mesmo dia.

E que foi temporariamente derrotado no mesmo dia. Mas a situação que se desenhava se concretizou: os agentes dos demais poderes parecem decididos a aplicar inovações pretendidas pelo PL da Censura assim como se tivesse sido aprovado — embora não tenha sido o caso.

Para demonstrá-lo, é primeiro necessária uma rememoração do que é que se pretendia aprovar com o projeto.

O que pretendia o PL da Censura

O projeto pretendia, entre outras disposições, exigir que os provedores de redes sociais, ferramentas de busca ou mensageria instantânea (como Facebook, Google e WhatsApp) elaborassem relatórios periódicos noticiando ao Estado suas ações para reprimir postagens cujo conteúdo contribuísse para o que o projeto chamava de “riscos sistêmicos”, previamente estipulados pelo próprio texto. As descrições são vagas, mas incluem riscos “ao Estado democrático de direito”, “à higidez do processo eleitoral”, de racismo, de preconceito contra idosos e de violência contra a mulher. Merece destaque a nota expressa de que se entende compreendida nisto a malchamada “violência política contra a mulher”, cujo nome é uma hipérbole indevidamente empregada pelo legislador para se referir a condutas não violentas contra contra políticas do sexo feminino que podem incluir até mesmo meras falas — ou, ainda, cortes de microfone.

Caso o Estado não se satisfizesse com o grau de repressão praticado pela empresa provedora, as consequências poderiam ser duras: um “órgão” não especificado (exceto pelo fato de ser ligado ao Executivo, que é também a quem caberia a regulamentação da lei para maior detalhamento) ganharia o poder de decretar o chamado “protocolo de segurança”.

Trata-se de uma situação em que as empresas provedoras passaram a estar sujeitas a um acompanhamento mais próximo, devendo cumprir notificações de necessidade de remoção de conteúdo (inclusive da parte do Estado), sob pena de potencial responsabilidade civil. Isto porque, conforme o PL, a empresa passaria a responder financeiramente por todo e qualquer dano provocado pelo conteúdo postado pelos usuários em determinado tema.

A este respeito, é relevante apontar que a noção de “dano” tem sido entendida de forma extensiva, abrangendo o chamado dano moral coletivo, que não exige nem a demonstração de perda tangível, nem a identificação de qualquer indivíduo prejudicado. (O instituto foi invocado, por exemplo, contra uma corretora de investimentos para exigir que pagasse R$ 10 milhões de reais em indenização após postar uma foto de sua equipe, a qual desagradou a terceiros por ter uma composição vista como excessivamente homogênea.)

Um aspecto menos conhecido do PL é a imposição de retirada de verbas de publicidade estatal de sítios eletrônicos, inclusive veículos de imprensa, que publicarem conteúdo considerado como incidindo numa lista de condutas. Pode-se dizer que isto representaria erigir a política de Estado a campanha do grupo Sleeping Giants (que chegou a ser citado como “exemplar” na justificativa de um dos projetos de lei apensos, o qual pretendia ir além e proibir qualquer contratação com o Poder Público ou usufruto de benefício fiscal e impor multa). A lista de condutas ilícitas ensejadoras da sanção incluiria, por exemplo, crimes contra o Estado democrático de direito e de infração sanitária (dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias em pandemia).

O plano B

As leis que regulam os processos de licitação no país preveem sanções para empresas que adotarem determinadas condutas, como deixar de entregar documentação necessária ou fraudar a licitação. Entre as condutas previstas, há a previsão residual de “comportar-se de modo inidôneo”.

Três semanas antes da tentativa de votação do PL da Censura, em 12 de abril, o Executivo publicou um ato normativo, assinado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, dando interpretação muito ampliativa do dispositivo para punir, com a penalidade máxima prevista na lei (declaração de inidoneidade para licitar), pessoas físicas ou jurídicas que estimulassem “ações atentatórias aos Poderes da República”.

São raros os casos em que regras de exclusão de licitações são reaproveitadas como instrumento de sanção por atos não relacionados às licitações. Quando isto ocorre, é mediante lei — como, justamente, o PL 2.630, que pretendia prever justamente esta punição. Trata-se, portanto, de uma aplicação do plano B mencionado pelo ministro Dino — embora anterior à derrota do PL.

No dia 26 de junho, os procuradores Yuri Corrêa da Luz e Ana Letícia Absy, do Ministério Público Federal, ingressaram com ação civil pública pedindo a cassação da concessão da rádio Jovem Pan por minar “a confiança cidadãos e cidadãs do país em seus processos cívicos” e na “importância de preservação” do regime democrático. Pediram ainda a aplicação do ato normativo da AGU, com a consequente declaração da Jovem Pan como inidônea para participar de licitações, por acusação de “ estimular ações atentatórias aos Poderes da República” — tudo na linha do que era pretendido pelo PL 2.630, a despeito de não ter sido aprovado.

O plano C

Dois dias depois da derrota do PL da Censura, o ministro Dias Toffoli, do STF, liberou para a pauta de julgamento uma ação que tramitava no tribunal sobre a constitucionalidade da isenção de responsabilidade das plataformas pelo conteúdo postado pelos usuários. Esta ação sempre fora vista como oportunidade para a “regulação” pelo Poder Judiciário, para usar a palavra do ministro Flávio Dino.

Por outro lado, no próprio dia em que seria votado o PL da Censura, o ministro do STF Alexandre de Moraes aplicou, na prática, contra Google, Facebook, Spotify e Brasil Paralelo, algumas das disposições previstas justamente no PL contra o qual estavam se insurgindo, mesmo ainda não vigente.

À maneira do PL (embora não com redação idêntica), ordenou que “informassem” em 48 horas quais providências estavam tomando para remover conteúdo ligado a crimes contra o Estado democrático, desinformação que atingisse a higidez do processo eleitoral, violência política contra a mulher, racismo e atos assemelhados.

A ordem de “Informar” as práticas adotadas facilmente se confunde com uma ordem do ministro para adotar as práticas em si, muito embora inexista previsão legal estipulando para as empresas obrigação do gênero — ao menos ainda.

Hugo Freitas é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

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