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A Covid-19 provocou um curto-circuito nas relações entre verdade, ciência, medo e cautela e em como elas afetam indivíduos e instituições.
A Covid-19 provocou um curto-circuito nas relações entre verdade, ciência, medo e cautela e em como elas afetam indivíduos e instituições.| Foto: Pixabay

Você provavelmente conhece alguém que não pegou Covid-19, mas cuja vida foi afetada pela pandemia. Agora isso faz sentido. Essas pessoas foram as mais cautelosas, as que mais se trancaram, as mais rejeitadas por “negacionistas” na Casa Branca ou na própria família. Elas ficaram um ano sem ver os pais. Elas recusaram o ensino presencial para os filhos.

A pandemia afetou a relação delas com os vizinhos, que eram tratados como vetores da doença e até como cretinos morais que ousavam trabalhar no quintal sem usar máscaras. Elas postaram fotos tomando a segunda dose da vacina no Instagram há um mês. Mas ainda usam máscaras duplas e até óculos de proteção nos filhos, porque leram alguma coisa sobre a Covid-19 ser transmitida pelos olhos.

Em certo momento, a pandemia — as análises úteis e práticas em favor da precaução e que justificariam comportamentos restritivos — se transformou num objetivo inequivocamente moral. As análises de risco reais foram ignoradas. Há uma doença mortal por aí. Minhas ações podem contribuir para o fim da doença ou para a transmissão eterna dela.

É como se houvesse um curto-circuito. Ainda que a cautela e as restrições possam ser justificadas por uma consciência ciente dos riscos, a mente humana também é capaz de fazer cálculos baseados na superstição. E uma superstição assustadoramente comum é a que associa ciência e verdade, medo e realismo, cautela e virtude.

Nos indivíduos, podemos observar facilmente esses cálculos em tragédias pessoais de maior ou menos impacto: pessoas que se apegam a um último contato antes de um ente querido ter morrido ou casamentos destruídos pela atmosfera de medo e paranoia. Mas o problema é claramente tão social quanto político.

Depois que o circuito de verdade-cautela-virtude entra em curto, percebemos que é muito mais difícil apresentar boas notícias e novas informações. Perdemos a capacidade de reconhecer o caráter provisório de nossas análises. O fato de uma porção considerável dos vulneráveis terem sido vacinados — em alguns condados mais de 70% das pessoas acima de 65 foram vacinadas – não muda o comportamento na mesma velocidade que as notícias sobre o vírus mudaram na primavera passada.

A situação piora ainda mais porque os custos do comportamento restritivo são difusos. Esses custos estão no ambiente de negócios deprimido para a indústria do entretenimento, alimentação e turismo. Nós também o vemos nos níveis mais altos de depressão por causa do isolamento social prolongado. Muitas pessoas que tinham a opção financeira de se isolar completamente não saem o bastante para perceber que a maioria das pessoas em suas comunidades são livres e sociáveis. Eles se desacostumaram aos riscos e prazeres da vida dos quais os menos temerosos ou trabalhadores mais essenciais nunca abdicaram.

E essa falsa equivalência entre verdade, medo e cautela não aflige apenas indivíduos ou as grandes cidades. Ela aflige nossas instituições. Por isso é que os Centros de Controle de Doenças são coagidos pelos sindicatos dos professores a retardarem a recomendação de reabertura das escolas. Os sindicatos dos professores não têm conhecimento de saúde pública e nada sabem sobre epidemiologia. O que eles têm ao seu lado é a ideia onipresente de que mais precaução não pode nunca causar danos.

A associação entre perigo e permissividade afeta a “classe especialista” que supostamente deveria informar o público. Ao longo de toda a pandemia, autoridades de saúde pública demonstraram que não confiam no público quando se trata de lhe dar boas notícias. Eles parem temer que, se derem a mão, o público quererá o braço. Assim, mesmo durante uma das campanhas de vacinação mais bem-sucedidas do mundo, a diretora do CDC, Rochelle Walensky, alertava para o “apocalipse iminente” há apenas um mês. Mas não há apocalipse algum no horizonte.

E os especialistas também se deixaram corromper. O curto-circuito da pandemia levou a um reforço no pensamento único entre os analistas de saúde pública. Era de se esperar que especialistas variados tivessem recomendações variadas, justamente porque, assim como todo mundo, os especialistas veem os riscos de forma variada. Em vez disso, contudo, os analistas tentaram proteger sua autoridade com uma genuína camada de unanimidade.

Quando o dr. Martin Kulldorff disse que a interrupção da vacina da Johnson & Johnson faria mais mal do que bem, o CDC o expulsou do comitê de segurança vacinal. Quatro dias mais tarde, a vacina da Johnson & Johnson foi disponibilizada novamente, mas a dissidência não podia mais ser ocultada.

Kulldorff foi pioneiro em muitos processos nos quais o CDC avaliou a segurança de vacinas. Mas ele ousou dizer que o ímpeto de vacinar todo mundo era uma superstição semelhante à de se declarar antivacina. Arrogantemente, o Twitter considerou o tuíte dele uma notícia falsa. Tudo foi feito com base na superstição de que só existe uma resposta válida dos especialistas – e não há debates válidos entre eles. O pior crime de Kulldorff, aparentemente, foi expressar suas opiniões pessoalmente, na presença do governador da Flórida, Ron DeSantis.

Eu achava que a era da Covid-19 chegaria ao fim uma vez que as vacinas eliminassem os perigos para os mais vulneráveis – e que a vontade humana de se conectar com os outros se estabeleceria e daria origem a uma nova e turbulenta década. Hoje não tenho tanta certeza. Boa parte do público e algumas de nossas principais instituições internalizaram novos hábitos de pensamento e de vida. O circuito da verdade, ciência, medo e cautela precisa ser desfeito – e reprogramado.

Michael Brendan Dougherty é redator da National Review.

©2021 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês
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